Uma multidão de moradores da capital iemenita, Sana’a, acompanhou os amigos e parentes dos 14 iemenitas assassinados, a maioria alunas de uma escola situada na cidade, em mais um ataque a estudantes perpetrado pela aviação saudita que agride o país com caças e armas fabricadas e fornecidas pelos Estados Unidos.
O apoio direto de Washington a esta agressão começou em 2015, durante o governo Obama, que além de manter as vendas de armas, atuou com aberto suporte de inteligência, logística, que inclui até o abastecimento de caças que vão bombardear o Iêmen, durante o voo, treinamento militar, incluindo cursos para pilotos e a presença de tropas na região.
O enterro coletivo aconteceu na manhã de quarta-feira.
O bombardeio que atingiu a escola Al-Rai localizada no bairro Sawan, que atende a 2.100 alunas, aconteceu no domingo.
O canal de TV saudita, al-Hadath, justificou o crime em declarações dadas uma hora após o bombardeio, dizendo que se tratava de um ataque a um campo de treinamento militar e, citando como fonte o governo fantoche de Aden (cidade iemenita na qual os sauditas mantêm o governo deposto pelo povo iemenita), “esclareceu” que a escola foi atingida por uma suposta explosão de um depósito de munição vizinho a ela.
A agência da ONU para apoio à infância, Unicef, denunciou o “ataque em Sana’a que matou 14 crianças e feriu 16, a maioria em idade abaixo dos nove anos”.
“O número de crianças mortas e seriamente feridas desde o início de 2019 chega a 400”, acrescenta a declaração da UNICEF.
14 MORTOS E 100 FERIDOS
No entanto, o Ministério da Saúde do governo revolucionário iemenita, que computa o número de mortos em 14, afirma que mais de 100 pessoas ficaram feridas na agressão e denunciou, após a declaração da Unicef, que “a ONU mantém um silêncio que encoraja os ataques da Arábia Saudita”.
O ataque teve um agravante de que aconteceu no dia da chegada do enviado especial da ONU, Martin Griffiths, à capital do Iêmen, onde ele se encontrou com o líder do movimento revolucionário Ansarullah, Said Abdul Malek al-Houthi. A ONU tenta promover um acordo de paz no Iêmen.
A procissão-funeral com as alunas mortas foi acompanhada por ministros do governo popular iemenita. O ministro da Informação, Dhaifullah al-Shami, encabeçou a delegação ministerial.
Al-Shami, falou após as orações do funeral, ressaltando que o ataque mostra tanto a desumanidade dos criminosos como seu desespero diante da firmeza dos professores e alunos iemenitas em defender sua nação.
Ele enfatizou que “nem os professores nem os alunos se dobrarão. Este sangue derramado servirá de alimento espiritual para que sigamos na luta contra o agressor saudita”.
Al-Shami também condenou o silêncio da comunidade internacional diante do sofrimento imposto aos iemenitas: “Isso é cobertura aos crimes dos agressores externos e dos mercenários que negociam com o sangue dos seus compatriotas”.
“O crime não foi enterrado com as vítimas”, afirmou o representante do Ministério da Educação, Saleh al-Qudami.
“É impossível enterrar os crimes sauditas para sempre, em especial um crime como este. Os nossos combatentes farão com que paguem no campo de batalha. Agora o exército iemenita vai bater duas vezes mais duramente, mas nos combates, não no ataque a escolas deles, da forma covarde como fazem”, prosseguiu Qudami que condenou o pedido da ONU para que a Arábia Saudita investigue o crime. “Ao invés de investigar eles vão se ocupar em planejar outro delito”, alertou.
CRIANÇAS TRAUMATIZADAS
Said, pai da aluna Sâmia, de 12 anos, diz que a filha, que estava na escola Al-Rai quando duas bombas explodiram nas proximidades, uma região residencial, não consegue parar de chorar. Ela contou ao repórter do portal Middle East Eye (MEE) que ficou aterrorizada quando viu colegas morrerem e outros padecerem feridos com paredes do prédio desabando em torno dela. (Os nomes são pseudônimos pois ela, assim como o pai pediram para permanecerem anônimos)
O pai dela correu para o prédio atingido depois de ver “fumaça subindo da região onde está a escola”. Ele conta que foi difícil chegar ao local, lotado de gente e autoridades e que, no desespero, viu “pessoas trazerem os corpos dos mortos e dos feridos”.
“Eu tentava reconhecer, descobrir se minha filha estava entre eles”, acrescenta.
“A cena era terrível. Pessoas chorando, sirenes de ambulâncias enchiam o ar”.
Finalmente o pai viu Sâmia: “Alguém estava tentando acalmar a ela e a outras alunas, mas ela estava aos gritos”.
Ela se sente a salvo em casa agora, diz o pai, mas acrescenta: “Minha filha está chorando a maior parte do tempo e não consegue dormir bem. Ela viu os corpos das suas colegas mortas, viu sangue no chão e fala disso o tempo todo”.
Ele afirma que “aquelas que morreram ou ficaram feridas não são as únicas vítimas do bombardeio. Há muitas crianças sofrendo de traumas psicológicos e minha filha é uma delas”.
Outro dos parentes, Ibrahim, cuja casa foi parcialmente danificada no ataque, disse que sua neta de 10 anos de idade ficou ferida pelos estilhaços da bomba que atingiu a escola. “Nós somos civis. O sangue destas crianças deveria ser uma mensagem bastante para que os sauditas parassem com a guerra”.
O psicólogo Sayun Fadhel, que trabalha como consultor em Sanaa, declarou ao MEE que só o som do bombardeio já pode ser o bastante para causar estresse pós-traumático por longo tempo nas crianças que viveram o ataque e que “quando a criança vê sangue e cadáveres é um desastre”.
“Se a criança não recebe o tratamento apropriado e apoio psicológico já, ela pode sofrer os efeitos do trauma no futuro e esta é a situação das crianças no Iêmen”, acrescenta Fadhel.
ESCOLAS E HOSPITAIS SOB BOMBARDEIO
O ataque com caças pelos sauditas e aliados dos Emirados Árabes, não é o primeiro, eles têm atingido escolas, hospitais, festas de casamento, cerimônias religiosas, matando milhares de civis iemenitas.
No conjunto, as mortes de civis já chegam a 90 mil, com milhões sofrendo com a fome e a escassez de remédios. Segundo a agência Associated Press, o chefe do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, Mark Lowcock, denuncia que “80% da população do Iêmen – 24 milhões de pessoas – necessitam de ajuda humanitária e que, desses, 10 milhões estão a um passo de níveis catastróficos de fome”.
CONGRESSO DESAUTORIZA APOIO DE TRUMP À AGRESSÃO
No dia 6 de abril, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou uma resolução desautorizando o governo a prestar apoio militar aos países envolvidos com o morticínio no Iêmen.
Em março, o Senado Federal já havia aprovado medida equivalente. “O presidente terá que encarar a realidade de que que o Congresso não vai mais ignorar suas obrigações constitucionais quando se trata de política exterior”, afirmou o deputado democrata, Eliot Engel, eleito por Nova Iorque e que preside o Comitê de Assuntos Estrangeiros da Câmara.
Se Trump vetar a proposta, provavelmente não haverá votos no Senado para derrubar o veto presidencial, mas a decisão é um marco pois é a primeira vez que o Congresso vota para contrariar uma ação presidencial entre as dezenas de intervenções armadas mundo afora patrocinadas pela Casa Branca, todas elas sem aval do parlamento, que tem se deixado atrofiar em seus poderes, uma vez que a Constituição norte-americana determina que ações militares internacionais exigem aprovação parlamentar para ações militares no Exterior.
A decisão das duas casas legislativas já estava proposta e foi ganhando força à medida em que os crimes de guerra sauditas iam vindo à tona. Até que a notícia do hediondo esquartejamento do jornalista saudita, Jamal Kashoggi, que escrevia com opiniões oposicionistas ao reinado de Bin Salman para o Washington Post, veio à tona. Kashoggi foi torturado e morto em uma das salas do consulado da Arábia Saudita em Istambul por um esquadrão montado especialmente para a ação e que entrou e saiu clandestinamente da Turquia. Há informações seguras de que o próprio monarca acompanhou diretamente a carnificina.
Os senadores Chris Murphy, democrata de Connecticut e o ex-candidato à legenda democrata para concorrer à presidência, Bernie Sanders, apresentaram fotos de crianças esquálidas quando defenderam a proposta no Senado.
“É uma mácula moral sobre esta nação, cada dia em que continuamos a tomar parte nesta guerra”, declarou o senador Murphy.
O senador Sanders destacou que “chegamos ao limite. Os Estados Unidos não deveriam apoiar uma guerra catastrófica conduzida por um regime despótico com uma política externa irresponsável”.
Entre os senadores que apoiaram a proposta, houve diversos do partido de Trump. O senador Mike Lee, republicano que fez campanha entre os colegas a favor da resolução, enfatizou que “já passou da hora de acabar com o envolvimento dos Estados Unidos nesta guerra não autorizada, injustificada e imoral que já causou um imenso sofrimento humano”.
Caminhando no sentido contrário ao sentimento da maioria dos deputados e senadores, Trump tem feito da Arábia Saudita seu aliado central, em especial no ataque ao Irã. Foi para Riad, capital saudita, a primeira viagem oficial como presidente. Lá celebrou os bilhões em vendas de armas e participou da dança das espadas com os nobres do país.
Mesmo com o posicionamento dos deputados e senadores, a Casa Branca mantém declarado alinhamento com a criminosa e retrógrada monarquia.
Em comunicado cínico e lunaticamente distante da realidade, a porta-voz do Pentágono, Rebecca Rebarich, disse que cortar o apoio norte-americano aos sauditas “iria piorar os problemas e dificultar o trabalho da ONU em favor da paz”.
“Temos que seguir atuando com nossos parceiros para minimizar as baixas civis”, concluiu.
Assim que a resolução foi aprovada, repórteres presentes a coletiva na Casa Branca perguntaram a Trump se ele a acataria. “Vou dar uma olhada nela”, foi a resposta dele.