(HP 15/10/1993)
SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES
O que há de comum entre Rambo, Charles Bronson em Desejo de Matar (1,2, 3,4, etc), a troupe do juiz Nicholas Marshal, que faz seu proselitismo no horário nobre global, Michael Jackson e Madonna?
Muita coisa. A mais de fundo é que são representantes típicos da estética da barbárie, o modelo estético predominante na chamada “indústria cultural” do império. Um modelo produzido sob medida – e, no caso, não interessa se os artistas que o criaram e reproduzem têm ou não consciência disso – para servir aos interesses de um império apodrecido, agonizante e genocida.
Não é por mero acaso que o Super-Homem, herói que em 50 anos de atribulada carreira jamais empregou seus fantásticos poderes para tirar a vida de um de seus desafetos sequer, tenha sido retirado de circulação de modo brutal. Morto e sepultado pelos detentores de seu direito de publicação, sem choro nem vela. Exatamente pelas mesmas razões que condenaram ao ostracismo, um a um, os mocinhos do velho Oeste.
Essa mesma inadequação entre os velhos “heróis éticos” e a necessidade do império de obter adesões ou de no mínimo entorpecer razões e sentimentos para os atos de pirataria e selvageria explícita que, desde Hiroshima, passaria a empregar em escala crescente produziu também a revisão do Batman, hoje atuando à margem da lei e comprazendo-se em promover o espancamento de vilões, com requintes de perversidade.
Outro que não teve melhor sorte foi o Capitão América, cujo arsenal se resume a um escudo. Mergulhou na mais completa crise de identidade, só superável pela morte, aposentadoria compulsória, ou a troca do escudo por lançadores de mísseis e bombas “inteligentes”.
Símbolo dessas transformações é a vertiginosa ascensão do Justiceiro. Um psicopata sem rebuços que ganhou revista própria, para fazer sua apologia dos “grupos de extermínio”, e inspirou a metamorfose do Batman.
Essas alterações têm todas um mesmo sentido. Extirpar dos “personagens positivos” qualquer vestígio de humanidade. A missão reservada ao herói não é mais a de contrapor-se aos deuses ou ao destino, revelando nesse choque tanto a grandeza quanto a vulnerabilidade da condição humana. Tampouco é a de defender o mundo contra o mal, afirmando na luta contra ele os valores do bem. Agora trata-se de infligir ao “mal” uma dor maior do que a que ele foi capaz de provocar. O espectador das peripécias entre heróis e vilões deve ser levado a identificar-se não com o espírito de justiça, a solidariedade, a coragem, o amor e o compromisso dos primeiros com o avanço da Humanidade, mas com a mórbida e pervertida compulsão, que apossou-se deles, de chacinar os segundos.
O núcleo da estética da barbárie é o culto da revanche como pretexto para o massacre. Nada a ver com aquela revanche ingênua e cândida, baseada no cruel preceito bíblico pré-cristão do “olho por olho, dente por dente”. Porque esse, apesar de representativo de um padrão de civilização rudimentar, não está isento de um certo sentido de justiça e equidade. Para as necessidades do império, a revanche deve assumir necessariamente a forma do massacre, da chacina. Não se trata, pois, de simples manifestação de atraso, mas de claro sintoma de degeneração e apodrecimento.
O ex-boina-verde Jonny Rambo (Stalonne), na primeira de suas aparições na tela, vinga-se das agressões e humilhações sofridas nas mãos de um sherife inescrupuloso (Brian Dennehy), liquidando não menos que uma centena de policiais e membros da guarda nacional – a tiro, a faca e com as próprias mãos. De quebra, faz voar pelos ares um quarteirão inteiro da cidadezinha que não lhe dispensou acolhida hospitaleira.
“Não estou aqui para livrar Rambo de vocês, mas para livrar vocês de Rambo”, diz o coronel Trautman aos supostos perseguidores de seu ex-pupilo. A preocupação da “Máquina de Matar” em abrir caminho para a fuga é praticamente nula, no máximo protocolar, como faz questão de esclarecer seu ex-comandante. O que realmente importa, o que, de fato, interessa é o estrago que Rambo provoca, a título de vingança, nos que lhe causaram mal. É sobre isso o filme. Aliás, não só o primeiro da série, mas todos os demais. Não há diferença substancial que a fúria de Rambo esteja direcionada contra o sherife implicante ou contra vietnamitas, soviéticos, árabes ou brasileiros. Assim como também não muda muito o fato de que a “vítima” da “injustiça” que acionará a contagem regressiva para a entrada em cena da “Máquina de Matar” seja ele próprio ou algum de seus “amigos”. A estrutura dramática é idêntica. O objetivo perseguido é o mesmo. Induzir o espectador a identificar-se com o massacre e a chacina como formas necessárias da revanche.
O bombardeio criminoso e genocida, promovido pelo império, contra alvos civis, hospitais, fábricas de leite em pó, mulheres e crianças, seja no Iraque, na Somália, Panamá, Harlem, Los Angeles ou qualquer outro ponto do planeta, encontra aqui a sua justificativa. Desde que se consiga mostrar que não foi “Rambo” quem começou a briga – e para isso existe o monopólio da mídia – não há nenhum “acordo de Genebra”, nenhuma barreira ética, que deva limitar a intensidade e a extensão do “troco”. Pelo contrário, este deve ser avassalador, e sobretudo perverso, para que fique como exemplo a todo aquele que ousar desafiar o império. A repulsa, a indignação que a chacina provoca em qualquer pessoa normal, comum, deve ceder lugar à complacência – no limite, ao sadismo. Isso requer cidadãos emocionalmente mutilados, embrutecidos, alienados, anestesiados por overdoses desses “produtos culturais”. É interessante observar que essa apologia do massacre via de regra não é sustentada por argumentos racionais, o que reserva à estética da barbárie um papel mais importante aos propósitos de manutenção da agonizante ordem imperial do que pode parecer à primeira vista.
O mecanismo de identificação do espectador com os Rambos que ocupam diuturnamente as telonas e telinhas é elementar, mas nem por isso desprovido de eficácia. No começo da história nossos “heróis” ou seus protegidos, com licença da expressão, entram na porrada. São maltratados, humilhados, espezinhados. Charles Bronson, que acabou engolido pelo seu personagem em Desejo de Matar, um ex-pacato arquiteto que se tornou apóstolo da filosofia do linchamento, tem a mulher assassinada e a filha covardemente estuprada pelos malfeitores. No quarto filme da série, para criar um clima propício à sofisticação bélica, ao pleno emprego de um arsenal que chega a incluir uma metralhadora ponto 50 que produzirá o aumento das habituais quinze ou vinte “execuções” para cerca de cento e cinquenta, vários amigos de Bronson passam a metade do filme sofrendo as mais seletas iniquidades nas mãos de uma gang de punks que atormenta o bairro.
O espectador que se sente esmagado pela arrogância do patrão, a grossura do chefe, o baixo salário, a falta de segurança, a incompreensão dos vizinhos, não tem dificuldade de sintonizar-se com aqueles que ele percebe estarem sendo, como ele próprio, injustamente oprimidos e sufocados. É aí que mora o perigo… Fisgado pelo “martírio” do “herói”, identificado com o que no primeiro momento aparenta ser uma louvável ação para restabelecer a justiça e a liberdade, o espectador, cujo espírito crítico é intencionalmente confundido por toda a sorte de recursos cênicos, o seguirá na frenética viagem pela senda de uma vingança, que não se detém diante de qualquer limite legal ou ético, até atingir a plenitude do banho de sangue “purificador”. Nela, cada ato do “herói”, cada uma de suas dezenas de ações de extermínio vai sendo crescentemente estetizada como um meio de obtenção de prazer da dor infligida ao “inimigo”.
Nicholas Marshal é um juiz que nunca consegue prender nenhum criminoso, porque a lei, segundo os cânones da estética da barbárie, existe “para dar proteção aos bandidos”. Por certo que não aos peixes gordos: banqueiros, magnatas, proprietários de corporações e monopólios que amealham suas fortunas as custas do saque, da ruína, da miséria, fome e morte de milhões de seres humanos, provocando a degradação social que abre caminho à proliferação dos bandidos pés-de-chinelo, amadores e free-lancers do crime, cuja impunidade tira o sono do intimorato magistrado. Então, quando pendura sua toga no cabide, o jovem e branco Nick vira o líder de um esquadrão de “justiceiros” composto por uma mulher, um velho e um negro, para que todos os segmentos da sociedade se vejam ali representados. Cada episódio da série é uma aula de como barbarizar pequenos canalhas através de meios torpes como a tortura, o embuste e a fraude. Que esses bois de piranha possam servir para desviar os olhos do público dos responsáveis pelo estado atual de calamidade, são os mais sinceros votos dos patrocinadores.
Nove entre dez thrillers, o gênero mais produzido hoje nos EUA, dedicam-se a estetizar essa pungente tese de que o braço vingador do sistema tem de passar por cima da lei, para atingir os “bandidos” e chaciná-los, antes que o caos reine absoluto. É evidente que qualquer relação que isso possa ter com as necessidades reais do império de violentar as leis, para fazer prevalecer os interesses de meia dúzia de parasitas sobre o de milhões, resultado de uma concentração de capitais cada vez mais pervertida e alucinada, não passa da mais absoluta coincidência.
Esses mitos são reproduzidos à exaustão. Com ligeiras modificações, são martelados, bombardeados maciça e incessantemente sobre o distinto público, sem qualquer misericórdia. Por isso, quando pesquisas de opinião realizadas pelos monopólios de imprensa afirmam, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que metade da população americana se diz favorável a uma intervenção da CIA para “assassinar Saddam Hussein”, o que é verdadeiramente espantoso não é o grau de paranoia e demência que campeiam por aquelas plagas, mas o nível de sanidade que, apesar de tudo, metade da população consegue manter.
Estética é comunicação pelos sentimentos, ela não se dirige diretamente à razão, como um conceito ou um argumento. Ela lida com o imaginário, com símbolos, desejos. Porém, mesmo quando se proclama “apolítica”, o seu sentido sempre será o de produzir uma vivência emocional no espectador, que interfira em sua percepção da realidade, que o torne propenso a adotar ou rejeitar determinadas atitudes e idéias. A estética do império é a da barbárie porque a barbárie é a condição de existência do império, no estágio de degeneração em que mergulhou. Seu núcleo é a apologia da revanche, da chacina, da lei do cão, porque são esses os valores que mais favorecem e melhor se ajustam aos interesses das 150 famílias que monopolizaram em suas mãos as riquezas mundiais. Não é à toa que o Super-Homem tenha sido tirado de circulação. Sua humanidade, e também a da galeria de vilões encabeçada por Lex Luthor, estava se tornando altamente subversiva para os padrões atuais do imperialismo. Conservadores eles eram. Mas não “máquinas de matar”, delirantes, psicopatas, sádicas, como as que ora vão sendo cínica e cuidadosamente glamourizadas.
Michael Jackson não é Rambo, mas em compensação não consegue ser nem homem nem mulher, nem preto nem branco, nem adulto nem criança. Essa aura de indefinição é cem por cento intencional. Foi esculpida a doloridos golpes de bisturi, que retalharam a carne do ex-crioulo, para transformá-lo nesse lamentável Frankenstein “pós- moderno”. Madonna cultiva um tipo de indefinição semelhante. Pode ser loura ou morena, lésbica ou ninfomaníaca, ou qualquer coisa que o marketing dos escândalos burocraticamente programados considere oportuno para a ocasião. Tanto a camaleoa quanto Jackson, a rigor, não são nada. Suas músicas também não dizem ao que vem. São pretexto para efeitos especiais espetaculares, iluminação feérica, gelo seco, lantejoulas, lasers, computação gráfica, espuma multicolorida. A diferença é que Jackson poderia ter sido cantor, se quisesse. E Madonna jamais se interessou em aprender a cantar, nem a dançar. Atriz de terceira categoria, alcançou o estrelato, representando o papel de cantora e dançarina, unicamente através de golpes de marketing.
É essa indefinição, esse não-ser, que constitui a razão de ser de ambos, e do lugar que ocupam na estética da barbárie, como envoltório do núcleo constituído pelas “máquinas de matar”. A ausência de qualquer traço definido nesse excipiente impede o conflito entre ele e o núcleo, o que de outro modo certamente ocorreria, visto que é praticamente impossível ser algo diferente das “máquinas” sem contrapor-se a elas. Só mesmo as abobrinhas engalanadas têm o condão de conviverem sem problemas com as engrenagens da morbidez genocida. E quanto mais identificado estiver o espectador com a indefinição, maior a possibilidade dele ser pego pelas sangrentas engrenagens.
Há uma considerável distância entre a imagem que o império procura fazer de si próprio e a realidade. A compulsão para a chacina é fato. Mas também é fato que a suposta intrepidez, destreza e invencibilidade de Rambo não passa de uma fantasia para compensar a desabalada carreira de tio Sam no Vietname; o pavor e a recusa de lutar no chão, exibida no Iraque; as bordoadas que está levando da Somália; o chega pra lá que tomou do Haiti… A verdade é que o material humano que constitui a base da força bélica do império, dado o seu baixo nível de convicção e motivação, é o mais ordinário possível. Fica pois um certo tom de farsa nas peripécias das indefectíveis “máquinas de matar”, o que não tem como deixar de limitar sua eficácia junto aos espectadores.
Tudo isso deve ser levado em conta por aqueles que desejam combater o império em todos os níveis, inclusive no plano estético, opondo à estética da barbárie uma outra, diametralmente oposta, baseada no amor, no trabalho, na luta, no compromisso com o coletivo, na percepção de que o imperialismo, a despeito dos males que ainda pode causar, é, crescentemente, um tigre podre de papel.
São Paulo, outubro de 1993.
Super Homem matou o general Zod, seu compatriota, no início da nova trilogia da DC.
Leia com atenção, caro Marx. O autor está se referindo ao Super-Homem das revistas em quadrinhos, até a década de 60.