CARLOS LOPES
Uma parte razoável de nossa História está contida – e revelada – nas memórias de seus participantes.
Isso não foi verdade no século XIX, mas é verdade para o século XX, sobretudo para o período posterior ao golpe de Estado de 1º de abril de 1964.
Talvez o problema seja a inexistência de grandes historiadores, após o falecimento de Nelson Werneck Sodré, em 1999.
Mas por que João Francisco Lisboa, Capistrano, José Honório Rodrigues, Nelson Werneck Sodré, não encontraram, ainda, sucessores de envergadura semelhante?
Historiografia pressupõe determinadas definições ideológicas. Não é possível expor a verdade – pois, ao fim e ao cabo, trata-se disso –, mais ainda, a verdade histórica, sem definições claras em relação ao objeto estudado, à história humana.
Heródoto tinha uma ideia das cidades gregas em oposição ao Império Persa – ou Tucídides, no caso de Atenas e Esparta durante a Guerra do Peloponeso.
Para se descobrir e se expor a verdade não é necessário que esta seja preconcebida – pelo contrário -, mas é necessário acreditar que a verdade existe.
Mais explicitamente: é necessário reconhecê-la.
Mais do que isso, é necessário acreditar que a exposição da verdade faz alguma diferença para o mundo prático, o mundo comum em que vivem os seres humanos.
Há muito, Guerreiro Ramos bateu-se contra uma sociologia “neutra”, que seria científica pelo seu apoliticismo.
Se isso é verdade na sociologia, mais ainda na historiografia.
O fracasso das tentativas de confinar a historiografia à vida privada demonstram que não é possível chegar a nenhuma espécie de verdade pela despolitização deliberada na abordagem histórica – o que conduz, e somente pode conduzir, a um reacionarismo típico de eunucos ideológicos.
Quando João Francisco Lisboa escreveu, em 1852, que “a revolução é um fato dominante em toda a história da humanidade”, estava, ao mesmo tempo, afirmando uma verdade e estabelecendo uma premissa para sua abordagem da História (cf. João Francisco Lisboa, Obras, vol. I, S. Luís, 1864, pp. 434-435).
Quando a própria existência da verdade é negada, quando há um abafamento da polêmica, a historiografia torna-se impossível ou insuportável – o que, no fundo, é a mesma coisa.
Assim, as memórias adquirem um valor – uma importância – inestimável, sobretudo nesses momentos de confusão ideológica.
Essas reflexões foram-me despertadas pela leitura de “Alma em Fogo: Memórias de um militante político”, de Aldo Arantes (ed. Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2013).
O título vem do “Fausto”, de Goethe:
“Aquilo que não sentes não/ deves pleitear. É preciso que/ o queiras tendo a alma em/ fogo; com inspiração sincera e/ peito a te inflamar, os corações/ dominas da assistência logo”.
A trajetória de Aldo Arantes, no movimento estudantil, levou à sua eleição para presidente da UNE, em 1961.
Um mês após a sua posse, o presidente Jânio Quadros renunciava – e começava a tentativa de golpe de Estado, que consistia em impedir que o vice-presidente eleito constitucionalmente, João Goulart, assumisse a Presidência da República.
Aldo descreve a sua ida para Porto Alegre, onde o governador gaúcho, Leonel Brizola, e o comandante do III Exército, general Machado Lopes, lideravam a resistência ao golpe.
Depois da posse de Jango, Aldo empreende a experiência da “UNE Volante”:
“A UNE Volante era composta de 25 pessoas, com 20 integrantes do CPC [Centro Popular de Cultura] e cinco diretores da UNE, incluindo seu presidente. Teve início em março e foi até maio de 1962. Partiu de Porto Alegre e esteve em quase todas as capitais brasileiras, com exceção apenas de Rio, São Paulo e Cuiabá.
“Além de fazer suas apresentações, o CPC organizava núcleos nos estados. Realizávamos assembleias estudantis para discutir sobre as conclusões do Seminário de Reforma Universitária” (Alma em Fogo , p. 86).
Como não pretendemos tirar do leitor o prazer de ler o livro, não nos estenderemos mais sobre isso (a gestão de Aldo na UNE foi, além disso, abordada recentemente por Haroldo Lima, em um interessante artigo: Aldo Arantes, maior liderança jovem de uma geração).
Após 1964, Aldo esteve 12 anos na clandestinidade. Preso, em 1976, durante o que ficou conhecido como “Chacina da Lapa” – onde foram assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond -, foi selvagemente torturado.
Depois da Anistia, eleito deputado federal, Aldo foi um dos homens que elaboraram a Constituição de 1988.
Existe, porém, algo que talvez seja difícil de apreciar, para a maioria das pessoas, nas memórias de Aldo Arantes.
Para explicar o que quero dizer, peço licença aos leitores para mencionar algumas referências pessoais.
Nasci em uma família de comunistas, desde meu avô materno, passando pelos meus pais.
Em casa, conversava-se um bocado sobre determinadas personalidades, digamos assim, “de esquerda” (aliás, também se conversava sobre algumas “de direita”), muitas vezes em uma linguagem quase cifrada (o Partido Comunista estava na ilegalidade desde 1947 e meu pai fora um dos condenados por resistir à invasão, pela polícia, em 8 de janeiro de 1948, da “Imprensa Popular”).
Jamais ouvi, nessa época e até muito depois, nada sobre a “esquerda católica”. Era como se ela não existisse. Elementos progressistas da Igreja Católica – especialmente D. Helder Câmara – eram respeitados, mas nada havia sobre uma “esquerda católica”.
As memórias de Aldo Arantes recuperam este “fio da história”.
Militante da Juventude Universitária Católica (JUC), Aldo descreve o quadro de crescentes tensões com a hierarquia católica – que tiveram como marco de ruptura, exatamente, a sua expulsão da JUC.
A partir daí, aqueles jovens formaram a Ação Popular (AP), depois incorporada no PCdoB.
No prefácio do livro, também de Haroldo Lima, isso é brevemente sintetizado:
“O golpe de 1964, com sua obsessão anticomunista, seu palavreado moralista e sua truculência mórbida pôs fim à movimentação renovadora que vinha surgindo na política brasileira. Fez uma razia em tudo o que era progressista, que falasse em povo e em interesses nacionais. Para aquele grupo, basicamente de jovens, que acabara de fundar a Ação Popular, o caminho foi abruptamente fechado. Alguns foram presos, outros passaram um tempo escondido. Aldo Arantes, sua companheira Dodora, também fundadora da AP, e mais Betinho, saíram furtivos pelo Paraguai, e foram parar no Uruguai” (cf. Alma em Fogo, p. 22).
E, mais adiante:
“Nesse processo, deu-se sua [da AP] aproximação com o PCdoB, que se intensificou após o aparecimento da Guerrilha do Araguaia. Terminou a AP se incorporando ao PCdoB, em 1973. Aldo Arantes esteve na linha de frente de todas as mudanças políticas e ideológicas havidas na AP. Depois da incorporação, passou a ser, comigo e com Renato Rabelo, da Comissão Executiva do Partido” (idem, p. 24).
Em sua dedicatória, Aldo inclui também os seus companheiros da AP, assassinados, que não se incorporaram ao PCdoB.
Aldo é, aliás, justo, mesmo com aqueles de quem discordou no passado, até onde posso julgar por um conhecimento muito posterior (um exemplo: Jair Ferreira de Sá, principal dirigente da AP antes da incorporação ao PCdoB).
Por fim, há outro aspecto que queríamos ressaltar.
Como os militantes que foram obrigados a entrar na clandestinidade, para continuar a luta contra a ditadura, levavam a vida além dos aspectos políticos?
Uma vez, bebi algumas cervejas na Casa do Pará, que ficava em uma cobertura na Avenida Antonio Carlos, no Rio de Janeiro, com meu amigo Nelson Chaves – que, aliás, esteve preso com Aldo Arantes no presídio do Barro Branco.
Nelson, para mim, naquela época, era “Ricardo”. Ele fora um dos presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça, em janeiro de 1971, e “banido” do país pela ditadura – o que significava, naquela época, uma sentença de morte, se, como Nelson fez, o “banido” voltasse clandestinamente ao Brasil.
Saímos, depois das cervejas, em direção à Cinelândia, onde eu esperaria um ônibus.
Nelson era daquelas pessoas absolutamente sociáveis. No caminho, apareceram quatro ou cinco pessoas que animadamente o reconheceram, chamando-o, cada uma, por um nome diferente.
Lembro de um autor de peças infantis que, ao ver Nelson, berrou: “Jofre!”.
Eu já estava achando que seria preso, quando Nelson me deixou no ponto de ônibus…
Pois eram esses aspectos da vida de um “clandestino”, que me deixavam curioso.
Aldo, em suas memórias, fala bastante da vida de seus filhos, criados na clandestinidade, com outros nomes – pois sua companheira, Maria Auxiliadora (Dodora), também estava na clandestinidade.
Como explicar isso às crianças?
Os trechos sobre o relacionamento com os filhos são, no melhor dos sentidos – sem traço de pieguice – comoventes.
Mas existe também aquilo que, hoje, parece divertido.
O leitor pode imaginar o sr. Henrique Meirelles, presidente do BankBoston e do Banco Central (no governo Lula), ministro da Fazenda (de Temer), hoje secretário da Fazenda (do governo Doria), pichando muros contra a ditadura, sob a orientação da Ação Popular?
Pois é, leitor, o Meirelles já foi assim, quando estudava na Politécnica da USP.
Está lá, nas memórias do Aldo.
REMEMORAÇÕES
Voltemos ao assunto inicial.
Existe uma diferença – menos sutil do que, a princípio, parece – entre autobiografias e livros de memórias.
Ao ler a “Autobiografia”, de Benjamin Franklin, torna-se quase explicável que seu filho, William, tenha preferido o lado inglês na Guerra de Independência dos EUA, apesar (ou por causa?) dos sábios conselhos, em contrário, de seu pai.
Apesar de suas contribuições, Franklin era um narciso (p. ex., eis um trecho de sua “Autobiografia”, que, na primeira parte, é uma carta ao filho: “Tendo conseguido passar do estado de pobreza e de obscuridade, em que nasci e cresci, para um estado de riqueza e de alguma reputação neste mundo, […], talvez os meus descendentes queiram conhecer os meios que utilizei, com a benção de Deus […], e, portanto, muito adequados para ser imitados”).
Autobiografias, em geral, são satélites que giram em torno do ego do autor.
Livros de memórias são algo diferente, pois as memórias são, principalmente, a lembrança dos outros – e dos acontecimentos de que o autor e esses “outros” foram parte.
Um exemplo são as memórias de Kim Il Sung, “No Transcurso do Século”.
Como é possível conhecer a Coreia, sem ler as memórias de seu principal líder no século XX?
As memórias de Aldo Arantes, tal como as de Gregório Bezerra – para citar mais um exemplo – é uma dessas obras indispensáveis ao conhecimento do Brasil.
Agradeço ao amigo Adalberto Monteiro o presente, que me fez, deste belo livro.