O ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu pedir explicações ao ministro Alexandre de Moraes sobre o inquérito que investiga “fake news” contra integrantes do STF – que levou à proibição de matéria da revista “Crusoé” e do site “O Antagonista”, que menciona o presidente do Tribunal, Dias Toffoli.
Moraes é o relator do inquérito, aberto por Dias Toffoli.
Se existisse alguma dúvida sobre essas decisões, tomadas pelo presidente do STF e pelo ministro Alexandre de Moraes, esta poderia ser dirimida com a pose de Bolsonaro, ao dizer que “minha posição sempre será favorável à liberdade de expressão, direito legítimo e inviolável”.
Quando até um corifeu da ditadura, da censura e da tortura consegue espaço para encenar seu amor à “liberdade de expressão, direito legítimo e inviolável”, alguma coisa está errada.
Não se trata de que alguém acredite ou não em Bolsonaro. O problema é outro: permitir, ou dar pretexto, a esse tipo de repugnante encenação já é demais.
Bolsonaro não é apenas um adversário “teórico” da liberdade de imprensa: somente em 2018, ele moveu 23 ações contra jornalistas ou empresas jornalísticas, com o único objetivo de “tentar tirar de circulação notícias negativas e posts críticos da internet” (cf. Eduardo Goulart de Andrade, Bolsonaro é o político que mais tenta censurar publicações na internet, The Intercept Brasil, 23/10/2018).
Mas, recapitulemos o caso de agora.
Em primeiro lugar, não foi o STF que tomou decisões tão desastradas. Foram Toffoli e Alexandre de Moraes.
No último dia 14 de março, Dias Toffoli instaurou inquérito para investigar “a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares” (cf. STF, Portaria GP nº 69, 14/03/2019).
Independente dos aspectos formais (juízes, desembargadores e ministros do STF e STJ, no sistema jurídico da Constituição de 1988, não podem investigar, o que é função da polícia e do Ministério Público) é preciso reconhecer que a campanha a que se referiu Toffoli existia – e existe.
Também é evidente de onde essa campanha partia (e parte): dos porões (porões?) do bolsonarismo (v. Entidades defendem STF contra ataques de ‘milícias digitais’).
Inclusive do filho dileto de Bolsonaro, que, como seu irmão, que queria fechar o STF com um cabo e um soldado, é outro adepto da Lei e do Estado de Direito Democrático.
Essa campanha, com o objetivo de dobrar o STF a objetivos escusos – sobretudo ditatoriais, mas também corruptos (depois do Queiroz e outros heróis, inclusive os plantadores de laranja, é preciso ser parvo para acreditar na honestidade do clã do Planalto) – foi condenada enfaticamente, entre outros, pelo decano do STF, Celso de Mello (v. Procuradora Geral: “Não vejo risco para a Lava Jato na decisão do STF”).
Com base nessa indignação, que perpassava o STF, Toffoli abriu o inquérito – sem remetê-lo ao Ministério Público, isto é, à Procuradoria Geral da República (PGR).
Mas nem isso nem o que aconteceu em seguida vão no sentido de reforçar o STF contra as milícias digitais bolsonaristas.
Surpreendida, a titular da PGR, Raquel Dodge, enviou, no dia seguinte à portaria de Toffoli que instaurou o inquérito, um pedido de informações, que, simplesmente, foi ignorado pelo presidente do STF:
“… assim que instaurado por ato de ofício este Inquérito, no dia 15.03.2019, encaminhei a manifestação anexa para pontuar as graves consequências advindas da situação ali retratada. Transcorrido período superior a 30 (trinta) dias desta instauração, não houve, sequer, o envio dos autos ao Ministério Público, como determina a própria lei processual penal” (cf. PGR, Inq. 4781, nº 509/2019).
Enquanto isso, Toffoli designou o ministro Alexandre de Moraes como relator do inquérito – sem que a designação passasse pelo sorteio habitual.
Nessa altura, a revista “Crusoé” e o site “Antagonista” divulgaram um documento, entregue por Marcelo Odebrecht ao Ministério Público, em que havia o seguinte e-mail, com o esclarecimento correspondente:
Adriano Maia era o diretor jurídico da Odebrecht.
Na época (2007), Toffoli era Advogado Geral da União no governo Lula.
Ser chamado de “amigo do amigo de meu pai” – isto é, amigo de Lula – não é algo, em princípio, comprometedor.
Todo mundo sabe que Toffoli era amigo de Lula – a quem deve, aliás, a sua carreira.
Certamente, a palavra “fecharam” pode ter vários significados.
O e-mail trata das hidrelétricas do Rio Madeira. Toffoli, na época, chefiava uma equipe que tratava da regularização legal dessas hidrelétricas, que enfrentavam dezenas de ações na Justiça.
Mas a matéria da “Crusoé” não esclarece nada sobre o que foi “fechado” entre o diretor jurídico da Odebrecht e o Advogado Geral de Lula. Apenas levanta um conjunto de dados, todos meramente circunstanciais. É mais uma matéria sobre insinuações do que sobre fatos – e é inexata em uma questão importante: não era verdade que “uma cópia do material foi remetida à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para que ela avalie se é o caso ou não de abrir uma frente de investigação sobre o ministro”.
Raquel jamais recebeu essa cópia – e esse foi o pretexto para que o ministro Alexandre de Moraes proibisse a “Crusoé” e o “Antagonista” de veicular a matéria.
Em sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes, depois de mencionar que “os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem” não podem ser feridos por intervenção externa, diz o seguinte:
“É exatamente o que ocorre no caso em análise, em que há claro abuso no conteúdo da matéria veiculada. A gravidade das ofensas disparadas ao presidente do STF provocou a atuação da PGR, que publicou nota de esclarecimento negando pontos da reportagem.”
Na verdade, como esclareceu o juiz Luiz Antônio Bonat, da 13ª Vara Federal de Curitiba, o documento existe – e estava com a força-tarefa da Lava Jato no Paraná.
O fato seguinte foi o arquivamento do inquérito pela Procuradoria Geral da República (PGR). Segundo Raquel Dodge, essa é uma prerrogativa da PGR, pelo artigo 129 da Constituição, porque somente o Ministério Público, e não o STF, é “titular da ação” – e cita um parecer explícito do decano do STF, Celso de Mello, sobre esse assunto.
Mas o presidente do STF, Dias Toffoli, prorrogou por mais 90 dias o inquérito, ignorando a decisão da PGR.
O que foi publicado até agora, como dissemos, não é grande coisa contra Toffoli.
Então, por que essa reação que, inclusive, como disse a procuradora geral, extrapola o sistema jurídico?
Pois, além do caso da “Crusoé”, as declarações, citadas pelo ministro Alexandre de Moraes, para basear a investigação de oito indivíduos, parecem configurar um quadro de quase perfeitos débeis mentais.
Será que não é uma perda de tempo ficar atrás desses sujeitos?
Sobretudo considerando, como disse o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), que não é um crime ter uma opinião ruim, mesmo expressa em termos pejorativos, sobre o STF ou sobre a Presidência da República ou sobre o Congresso.
No entanto, sempre é possível especular que existe algo que não apareceu – e que se quer esconder – como móvel da reação de Toffoli e Moraes. Mas não há prova disso. A própria especulação é um resultado da atitude inusitada dos ministros.
Resta, agora, voltar à questão: em que ajudam ao país decisões que servem para confundir Bolsonaro, ou bolsonaristas algo estupidificados, com democratas, na mesma posição?
Por uma coincidência impressionante, são os adversários da Operação Lava Jato que se solidarizaram com Toffoli e Alexandre de Moraes.
Com certeza, a lei vale – ou deve valer – para todos.
C.L.