A gota d’água para a eclosão do levante social foi o corte dos subsídios, sugerido pelo FMI, o que levou o preço do pão a triplicar
As lideranças sudanesas que encabeçaram as semanas de protestos que levaram à deposição do presidente Omar Bashir anunciam a formação de um Conselho Civil e exigem que o poder – hoje nas mãos dos militares que, em meio ao descontentamento popular, depuseram Bashir – seja transferido ao Conselho.
A Associação de Profissionais do Sudão (APA), cujas lideranças estão entre as que lideraram a revolta que pôs fim aos 30 anos de governo de Bashir, informa que os nomes dos integrantes do Conselho Civil serão anunciados no domingo.
“Os nomes dos membros de um conselho civil encarregado dos assuntos do país serão anunciados em uma entrevista coletiva no domingo, às 19h locais (12h em Brasília)”, diz o comunicado da Associação de Profissionais Sudaneses (SPA), o grupo que lidera os protestos.
“Exigimos que este Conselho Civil, que será integrado por representantes do Exército, substitua o Conselho Militar”, disse à AFP Ahmed al Rabia, dirigente da APA.
Os protestos tiveram início no dia 6 de abril, quando uma multidão de sudaneses ocupou a frente do Quartel General do Exército do Sudão exigindo a saída de Omar Bashir.
As manifestações já vinham acontecendo há 4 meses e o estopim foi a retirada do subsídio ao trigo, o que levou à triplicação do preço do pão, medida sugerida pelo FMI e capaz de causar fome generalizada para uma população já empobrecida.
Nos protestos, a multidão chegou a incendiar o escritório central do partido que governava o país, o Partido do Congresso Nacional, na cidade de Atbara, ao norte do Sudão.
Confrontos ocorreram também na cidade de Porto Sudão, que fica à beira do Mar Vermelho e ainda nas cidades de Barbar e Nohoud. As forças policiais e militares que, de início, reprimiram o levantamento de barricadas e ataques a prédios, começaram a se negar a atacar as manifestações.
Além do aumento do preço do pão e outros itens básicos, os manifestantes se ergueram contra a participação sudanesa ao lado da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes na agressão ao Iêmen desde a tomada do poder pelos revolucionários do movimento iemenita Ansurallah. Os sudaneses participam com tropas e os manifestantes consideravam que os soldados do país estavam sendo usados como “bucha de canhão” pelos comandantes sauditas, a serviço dos interesses americanos na região.
Jornalistas do Sudão começaram a informar recentemente de pequenos motins contra a continuidade da participação nas hostilidades na Península Arábica e o atraso nos pagamentos prometidos aos enviados ao combate no Iêmen.
A DEPOSIÇÃO
No dia 11 de abril, os comandantes militares anunciaram a deposição de Bashir, a composição de um Conselho Militar de transição com a previsão de convocação de eleições diretas em dois anos. As lideranças não aceitam a substituição do presidente por integrantes do atual comando militar, considerando que seria a continuação do regime anterior e exigem a dissolução do Conselho Militar e a entrega do poder ao Conselho Civil.
Entre os que participaram do levante popular, o Partido Comunista Sudanês, que declara que “nos protestos as massas estavam expressando sua recusa em viver sob o regime arbitrário”.
“As massas em Atbara, Shendi, Madani, Kosti, Damazin e nas periferias da capital condenam o orçamento de fome e pobreza e exigem seus plenos direitos”, acrescentou o comunicado dos comunistas logo no início dos protestos.
O comunicado chamou seus quadros a organizarem a luta “nos locais de moradia, trabalho e estudo” e a “coordenar as atividades de protesto em todas as cidades”.
Agora, o apoio ao anúncio do Conselho Civil já se dá desde a sexta-feira com centenas de milhares dirigindo-se ao prédio do Ministério da Defesa, entoando palavras de ordem: “Liberdade e Revolução são as escolhas do povo” e “Governo Civil, Governo Civil”.
“Vamos ficar nas ruas até que o poder seja repassado às mãos da autoridade civil”, afirma a jovem manifestante (24 anos), Samia Abdallah.
Entre as questões colocadas, estão as conhecidas ligações dos integrantes do Conselho Militar de Transição, em especial o líder, Abdel Fattah al-Burhan, à Arábia Saudita e Emirados, o que sinaliza para a intenção de continuarem com a participação na agressão ao Iêmen, o que é contestado pelos manifestantes civis.
A crise econômica sudanesa é atribuída à corrupção como também ao desgaste da Guerra civil que levou à divisão do país, com a criação do Sudão do Sul onde estão algumas das principais reservas de petróleo do país, impactando negativamente o restante do país. Os Estados Unidos também decidiram impor sanções econômicas ao Sudão, alegando “crimes de guerra” do Exército do Sudão e “apoio ao terrorismo”, desde 2011. Os EUA também comandaram uma campanha internacional para levar o presidente Omar Bashir, a um tribunal penal internacional, apesar das informações de que os próprios governos norte-americanos estimularam o separatismo de olho nas ricas reservas sudanesas.
Mesmo depois dos acordos, com os quais o Sudão reconheceu o Sudão do Sul, em 2011, somente em 2017 os Estados Unidos levantaram parte das sanções.
A busca de alternativas de superação das dificuldades econômicas através da atração de investimentos chineses (que hoje detêm 40% da Companhia Operacional de Petróleo do Grande Nilo) e apoio econômico dos Emirados em troca da participação na guerra do Iêmen, não foram suficientes para enfrentar as dificuldades dos setores mais empobrecidos.
FMI E O ESTOPIM DA CRISE
O governo sudanês vem recebendo orientação do FMI desde o início dos anos 1990, organismo com o qual aprofundou a relação. O FMI anunciou em 2014, a aceitação pelo Sudão de seu monitoramento no “Programa de Apoio Monitorado” (SMP, sigla em inglês).
Segundo a Agência de Notícias Brasil-Árabe (ANBA), entre os intuitos do programa estava possibilitar que o Sudão voltasse a pagar a dívida externa com a vaga promessa de “assim conseguir novos créditos”.
Mas a gota d’água foi quando o governo de Bashir aceitou cortar os subsídios do trigo e combustíveis o que, segundo os técnicos do FMI, economizaria 5% dos recursos do Tesouro e assim “se faria dinamizar a economia”.
O que aconteceu, como está se vendo, foi a explosão social e a derrocada do governo.