Lucas Figueiredo foi também autor do livro “O operador – Como (e a mando de quem) Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT”
Durante a campanha presidencial de 2018, tive a oportunidade e o prazer de conhecer um grande profissional de comunicação. O jornalista Gustavo Nolasco, um morador de Belo Horizonte, cruzeirense e conhecedor das boas cachaças.
Trabalhamos juntos na campanha eleitoral do ex-deputado João Vicente, filho do ex-presidente João Goulart, destituído pelo golpe militar de 1964. Aprendi muito com a experiência de Nolasco e, como bons mineiros, ouvimos e contamos muitos “causos” sobre as terras que “os mares não conseguem beijar”.
Foi ele quem primeiro me sugeriu a leitura da obra de seu amigo e nosso conterrâneo, Lucas Figueiredo, sobre Tiradentes e a Inconfidência Mineira. O livro, “O Tiradentes Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier”, editado pela Companha das Letras, acabara de ser lançado.
Lucas já havia publicado livros sobre os porões da ditadura e, agora, mergulhara como poucos nos porões da monarquia portuguesa. Foi também autor do livro “O operador – Como (e a mando de quem) Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT”, da Editora Record, onde se detém nos primórdios dos esquemas monopolistas que assaltaram o Estado brasileiro.
A indicação da obra de Lucas Figueiredo sobre Tiradentes por parte de Nolasco surgiu de uma prosa que tivemos sobre a importância da revolta ocorrida nas montanhas de Minas. Tanto ele quanto eu estávamos com grandes expectativas em relação aos novos escritos. Até porque, a Inconfidência Mineira é nada menos do que o início da revolução de libertação do Brasil.
Percebemos que éramos dois grandes interessados pelo movimento revolucionário liderado por Tiradentes. Falamos bastante sobre as dificuldades que o leitor brasileiro encontra em acessar trabalhos sérios sobre esse tema.
É de se salientar que a divulgação da verdade dos fatos históricos relacionados às lutas de libertação, quase sempre não interessa aos colonizadores. Quando divulgam, o fazem, na maioria das vezes, distorcendo a verdade.
A luta se manifesta, muitas vezes agudamente, muito tempo depois dos fatos ocorridos, quando do registro histórico sobre eles. Os poderosos, quando derrotados, frequentemente tentam “rever” a história. Sempre com o objetivo de denegrir os patriotas e os revolucionários. (Leia aqui)
Se até os golpistas e serviçais do Departamento de Estado do EUA, que derrubaram Jango com tanques na rua em 1964, se acharam no direito de inventar histórias da carochinha sobre o golpe, como fizeram recentemente – após a chegada de alguns de seus puxa-sacos ao poder – imaginem o que não se inventou de mentiras e calúnias contra os ‘subversivos’ inconfidentes de 1789.
A inconfidência foi o movimento que lançou as bases de um programa de independência do Brasil, que propugnava o rompimento com o regime colonial português em crise, que defendia deitar por terra a monarquia e instalar a República Brasileira, acabar com a criminosa escravidão, difundir a indústria, o ensino público e interiorizar a capital…
Todo esse vigoroso projeto de nação foi levado à frente em condições extremamente difíceis. As reuniões dos inconfidentes eram clandestinas, não havia registros, qualquer delação poderia – como acabou ocorrendo – significar a prisão, o exílio ou a morte.
Por isso, os únicos documentos que servem de fonte primária aos pesquisadores são os Autos da Devassa, dois relatórios elaborados simultaneamente pelas forças da repressão de Minas e do Rio de Janeiro. Todos os depoimentos dos conjurados estão nesses autos.
Esses documentos, que a mando de Martinho Melo e Castro, ministro de Assuntos Ultramarinos de Portugal, foram unificados num só, permaneceram sigilosos durante todo o Império e a Velha República.
Somente em 1936, dentro do projeto de resgate político e histórico da Inconfidência Mineira, Getúlio Vargas, comandante da revolução que destronou a oligarquia cafeeira, mandou publicá-los.
Elaborado pelos colonizadores, os relatórios retratam os fatos ocorridos no final do século XVIII, com o viés de quem detinha o poder.
Figueiredo aborda as dificuldades com as quais qualquer pesquisador se depara quando pretende obter informações verdadeiras a respeito do movimento de 1789.
“Todo pesquisador que se atreve a estudar o universo da Conjuração Mineira e seus personagens vê-se diante do mesmo dilema: até onde é possível confiar nos documentos do século XVIII referentes a esse evento histórico?”, indaga Figueiredo. “(…) os cerca de 350 depoimentos de réus e testemunhas foram colhidos em circunstâncias controversas, com uso de forte pressão psicológica e até mesmo ‘tratos’ (isto é, tortura)”, prossegue o autor. “Em suma, são várias as camadas de embuste sobrepostas umas às outras”, conclui.
Mas, tanto o autor desta vibrante obra sobre Tiradentes, quanto nós, que publicamos o livro “Pátria Livre Ainda que Tardia” (Editora Nelpa), fizemos estudos nos Autos da Devassa, como se garimpássemos as informações. Principalmente, como relata Figueiredo, com um “olhar muito crítico e muito atento”.
Ele destaca: “o documento é traiçoeiro, mas, com um garimpo paciente, é possível extrair dele uma história – ou melhor, várias histórias”. O autor explica que checou, cotejou e conferiu pacientemente as mais diversas informações comparando-as com outras fontes e conseguiu “desatar muitos nós”.
Poucas obras fizeram um estudo tão vasto da vida do alferes de Minas como a “biografia” de Tiradentes, de Lucas Figueiredo. Ele descreve muitas facetas da vida do militar. A riqueza dos detalhes é impressionante.
Além da descoberta de episódios até então pouco conhecidos sobre a juventude e os hábitos do alferes – como o fato dele possuir um relógio inglês de excelente qualidade – e de ter tido um papel destacado na repressão aos ladrões e criminosos da Mantiqueira, Figueiredo aborda muito bem as articulações políticas feitas por ele no movimento independentista.
Certa feita, ao traduzir um texto de Rui Mauro Marini sobre Tiradentes, passei a achar que Marini, apesar de não ser historiador, tinha produzido, com seu texto “Tiradentes ontem e hoje”, de 1968, o melhor resgate histórico sobre a Inconfidência até então. Elaborado durante o exílio de Marini no Chile, o texto só existia em espanhol. Nós o traduzimos. (Leia aqui)
Marini, no meu ponto de vista, havia suplantado o também brilhante trabalho de Luis Wanderley Torres “A áspera estrada para a Liberdade”.
Mas, certamente, o trabalho apresentado agora por Lucas Figueiredo é mais completo, mais abrangente e mais rigoroso do que tudo o que foi feito até aqui sobre o tema.
Mesmo autores como Kenneth Maxwell, com quem polemizo em meu livro, citado acima, reconhecem a importância dessa obra, e até prefaciaram o livro de Figueiredo. “Esperamos muito tempo para saber a verdade sobre Tiradentes. E, agora, graças ao livro cuidadoso, elegante e inovador de Lucas Figueiredo, nós a temos”, disse Maxwell.
Esse “reconhecimento” de Maxwell de que, agora está em condições de conhecer a verdade sobre Tiradentes pode ser vista como uma certa autocrítica de seu livro “A Devassa da Devassa”.
Diferente do autor anglo-americano, que simplesmente repetiu acriticamente o que diziam os monarquistas sobre Tiradentes, Lucas, com sua “biografia de Tiradentes”, além de aprofundar a pesquisa sobre a vida pessoal do alferes, descreveu com muita exatidão as circunstâncias de sua atuação e a força de sua liderança.
Como poucos, ele mostrou a crise do sistema colonial baseado na extração mineral e apontou com precisão o grau de consciência que o alferes tinha dessa situação.
Isso é muito importante porque nós sabemos que é na interpretação dos fatos históricos onde ocorre uma luta renhida sobre qual versão deve prevalecer.
Os colonizadores – e seus “historiadores” – costumam caracterizar os inconfidentes como uma “elite infame”, como “infiéis”, “caloteiros de impostos”, “lunáticos”, etc. Para eles, seu principal líder, nosso Herói Nacional, não passava de um boquirroto, de um bode expiatório.
Os exploradores do Brasil odiavam os inconfidentes. Tinham que destruir sua imagem e sua influência. Isto era fundamental para seguirem com sua dominação.
Seu ódio a Tiradentes e a seus companheiros tinha um motivo: foram eles que lançaram o chamamento ao povo para acabar com sua vida mansa e com a mamata que eles tinham no Brasil.
Era natural que eles não quisessem que os revoltosos fossem vistos como líderes ou como heróis. Para eles, tinham que ser simples bandidos, traidores e assim deviam ser tratados.
Por isso a luta pela versão verdadeira dos fatos relativos à inconfidência segue até hoje. Livros como este de Lucas Figueiredo contribuem de forma significativa para o esclarecimento da verdade histórica.
Uma análise detida daquele período evidencia que o alferes tinha uma consciência política muito mais avançada do que um bom número de autores conseguiu aquilatar até agora.
Figueiredo, diferente de Maxwell e outros autores, que foram muito influenciados pelas versões dos monarquistas – particularmente por Joaquim Norberto – perceberam claramente que Joaquim José da Silva Xavier foi uma das maiores figuras da nacionalidade.
Foi o grande líder da Inconfidência e não um simples “bode expiatório da elite mineira”. Ele conseguiu liderar amplos segmentos da sociedade na busca da independência e do desenvolvimento nacional.
Mais do que isso, Figueiredo alinhava bem em seu texto a participação ativa também de outros personagens como José Joaquim da Maia, que, junto com Tiradentes, articulou o apoio à revolução brasileira dos franceses, que fariam pouco depois uma intervenção cirúrgica em Maria Antonieta, e os promotores da independência americana, dois dos principais movimentos revolucionários da época.
A subestimação da participação e do papel de Tiradentes em todo esse processo, faz com que alguns autores não consigam entender o papel revolucionário que ele cumpriu e nem mesmo a amplitude do movimento de Minas Gerais. Não entendem o que foi a Inconfidencia e nem enxergam o papel de vanguarda do alferes. Figueiredo e seu livro recolocam tudo em seu devido lugar.
A Carta Régia de D. Maria I, de 1785, proibindo fábricas no Brasil, abriu a crise. Este foi o momento em que os “de baixo” decidiram não mais aceitar as ordens dos “de cima”. Os brasileiros perceberam que o Brasil era um país muito grande para continuar preso na camisa de força do colonialismo português. Viram que a prioridade na extração de ouro das Minas Gerais para enviar tudo para a Europa estava fadada a afundar o país.
A falência da coroa portuguesa e sua submissão aos ingleses, impedindo a industrialização, tanto sua, quanto de suas colônias, agravaram ainda mais a crise do modelo. Estava aberta uma situação revolucionária.
O alferes, o estudante Joaquim da Maia, a maior parte dos inconfidentes, além dos comerciantes do Rio, artesãos e fazendeiros, decidiram não mais se submeter à rapina colonial.
Já em 1785, como consequência dessa situação, ocorria a reunião secreta de brasileiros em Coimbra, onde foi firmado o “Pacto dos 12” pela independência. Dela participaram, entre outros Joaquim da Maia e José Álvares Maciel. Tudo isto está no depoimento do médico Domingos Vidal Barbosa, que lá também esteve.
Neste mesmo ano, de Paris, para onde se deslocou, Álvares Maciel manda uma mensagem para seu cunhado Paula Freire, comandante das tropas de Minas e chefe de Tiradentes, pedindo que este enviasse um emissário com informações sobre a situação política e econômica do Brasil.
Essas informações, que foram pedidas por Thomas Jefferson e pelos líderes da Revolução Francesa, foram obtidas por Tiradentes junto ao cartógrafo José Joaquim da Rocha, como confirmou o depoimento do delator Basílio de Brito Malheiros. Tudo isso é tratado no livro por Lucas Figueiredo.
A pesquisadora gaúcha Isolde Helena Brans revela, em seu livro “Tiradentes Face a Face”, uma cronologia onde o alferes faz todos os movimentos táticos em sintonia com um plano estratégico elaborado pelos revolucionários. “De julho de 1787 até janeiro de 1788 será o tempo de espera, pedido por Thomas Jefferson na conversa com Maciel e outros.
Quando são apresentadas, em 1788, por Jefferson, as condições para o apoio, (pagamento de soldados, compra de trigo de bacalhau americanos, além da venda de carne pelo Brasil), Tiradentes já toma providências imediatas para atendê-las. Pede à Rainha autorização para a construção de um armazém no porto do Rio de Janeiro. Provavelmente para viabilizar o comércio do trigo e a venda das carnes.
No depoimento de Antônio Carlos de Oliveira Lopes, ele mostra que o alferes fez vários movimentos para levantar fundos para a revolução. Desde criar um moinho e canalizar as águas dos rios Maracanã e Andaraí para coloca-las a serviço da população, até seguir a sugestão dada por Jefferson de se apoderar do carregamento dos impostos em ouro da coroa.
“A fragata que recolherá os quintos chegará nos próximos dias, precisamos nos apressar”, diz o alferes a Silvério dos Reis, ao encontrá-lo, pouco antes de sua traição.
Se as ações do comandante da revolta não forem analisadas no contexto desta cronologia, muitas delas tornam-se incompreensíveis. Não era para se enriquecer que o alferes estava tentando fazer obras no Rio. Era para levantar recursos para a revolução.
Este é um ponto fundamental a ser entendido. Tiradentes organizou toda a luta da libertação do Brasil. Por isso pagou com a própria vida.
O livro de Lucas Figueiredo teve o mérito de descrever todos esses fatos com seriedade. Toda essa atuação revolucionária de Tiradentes está nas páginas da “biografia”.
A contribuição deste livro para o entendimento da verdade dos fatos sobre a inconfidência, portanto, é muito grande.
Seu trabalho, e a riqueza de detalhes trazidas à luz por ele, nos permite dizer que esta obra é uma das maiores já realizadas até agora e passa a ser uma fonte indispensável para as pesquisas sobra a Inconfidência Mineira.
“O Tiradentes Uma Biografia de Joaquim José da Silva Xavier” é uma leitura obrigatória para todos aqueles que gostam do Brasil e almejam conhecê-lo melhor.
SÉRGIO CRUZ
A palavra do autor
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