
“[Caxias foi] o inimigo visceral da sangueira, da chacina, das violências inúteis que hão desonrado a mór parte dos homens de guerra, cioso de poupar até o sangue aos próprios adversários”
(Vilhena de Moraes, O Duque de Ferro, ed. Calvino Filho, 1933, p. 30)
O comandante militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, declarou, sobre a fuzilaria, em Guadalupe, que matou o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo:
“Houve uma fatalidade. O pessoal tem colocado assassinato, não é. Os soldados que estavam em missão na parte da manhã tinham sido emboscados. Quem como eu já esteve em uma situação dessa, de muita tensão, muito difícil. A gente, para julgar o que aconteceu, tem que esperar as investigações.
“Eu fui comandante das tropas no Haiti em 2012. Fiquei um ano comandando 19 países e situações extremamente graves: tiroteio quase todo dia… Posteriormente fui o responsável pela segurança da Copa do Mundo, e depois trabalhei junto ao ministro da Defesa na Olimpíada. São situações que a gente vivencia, extremamente difíceis e complexas… É uma fatalidade”.
Infelizmente, ao invés de considerar inadmissível o que houve em Guadalupe, o comandante do Sudeste preferiu relegar os acontecimentos à “influência inevitável do fado” – isto é, do destino -, que é como o clássico dicionário Caldas Aulete define a palavra “fatalidade”.
Vejamos os fatos.
Foram disparados cerca de 200 tiros contra o carro de uma família que ia a um chá de bebê – uma família de brasileiros e trabalhadores, que escolheu o caminho exatamente porque se sentiu mais protegida pela vigilância do Exército no perímetro da Vila Militar.
Oitenta e três (83) balas atingiram o carro, matando o músico Evaldo Rosa e ferindo seu sogro.
Luciano Macedo, que tentou ajudar – e, efetivamente, ajudou – os atingidos, inclusive o filho de Evaldo, de sete anos, a esposa e a amiga da esposa que estava no carro, morreu depois de levar três balas nas costas.
Não houve tentativa de parar o carro ou identificar seus ocupantes.
Os atiradores dispararam no carro – e esvaziaram o pente de balas das suas armas – sem nenhuma espécie de aviso.
Trata-se de uma “fatalidade” estranha, pois um dos soldados recusou-se a atirar – e outros preferiram não mirar no carro (daí a diferença entre os disparos e as balas que atingiram o alvo).
Por quê?
Porque reconheceram, sem dificuldades, que a ordem de atirar no carro era absurda. Ou, dito de outra forma, porque não queriam assassinar uma família – não é esse o dever do Exército.
Era, portanto, uma “fatalidade” perfeitamente evitável.
Isto é, nada teve e nada tem de fatalidade.
Da mesma forma, a declaração do general de que “não foi um assassinato”.
As palavras existem para designar os fatos e as coisas.
Como diz, outra vez, o Caldas Aulete, assassinato é a “ação ou resultado de assassinar”.
E assassinar é “tirar a vida de (pessoa) voluntariamente”.
Mas, diz o general, “os soldados” – não aqueles, mas os “que estavam em missão na parte da manhã” – “tinham sido emboscados”.
Essa emboscada, aliás, ainda não apareceu, não foi descrita nem testemunhada nem provada ainda. Mas acreditemos na palavra do general, da qual não temos razão para desconfiar: se ele disse isso, no mínimo, foi o que lhe contaram.
Desde quando uma “emboscada” realizada por bandidos sobre outros soldados, justifica uma fuzilaria sumária contra brasileiros trabalhadores?
Pois aqui existe outro elemento: os que atiraram em Evaldo Rosa e Luciano Macedo não estavam em guerra.
Nem mesmo estavam em situação análoga a do povo haitiano, depois da intervenção dos EUA – aliás, é preocupante (para nós, que apoiamos a missão de paz no Haiti), a lembrança do general sobre seu comando nesse país. O que tem aquilo que as tropas brasileiras fizeram no Haiti com aquilo que uma patrulha fez em Guadalupe, ao lado de Deodoro, no Rio de Janeiro?
Mesmo que os que atiraram no carro de Evaldo estivessem em guerra, nem assim uma ação desse tipo seria admissível.
Um participante da Guerra do Paraguai, em 1869, relatou:
“Terminado o combate, o marquês de Caxias tinha por costume visitar o campo de batalha; ele se detinha com interesse em certos pontos do terreno ou perto dos nossos feridos ou dos do inimigo. Houve quem o visse mandar apear o seu cirurgião junto de alguns feridos que ainda davam sinal de vida, a ver se era possível salvá-los. Em Surubihy, disse ele um dia, em uma ocasião semelhante: — ‘Se o salvarem, é uma vítima de menos…’ E ordenou a um dos oficiais que o acompanhavam que ficasse, para fazer transportar o ferido para onde pudesse ser prontamente socorrido” (cit. in Vilhena de Moraes, O Duque de Ferro, ed. cit., p. 130).
Ou, muito antes, o então conde de Caxias, na Guerra do Uruguai, dizia, em ordem do dia assinada em seu quartel general, a 4 de setembro de 1851:
“Soldados!
“Não tendes no Estado Oriental outros inimigos senão os soldados do general Manoel Oribe, e esses mesmos enquanto iludidos empunharem armas contra os interesses de sua pátria: desarmados ou vencidos, são americanos, são vossos irmãos, e como tais os deveis tratar.
“A verdadeira bravura do soldado é nobre, generosa e respeitadora dos princípios da humanidade.”
Imaginemos o que Caxias acharia daqueles que atiraram contra o seu próprio povo.
Bolsonaro, por exemplo, depois de dias sem fazer comentário algum (v. O capitão do mato e o crime de Guadalupe), disse que o acontecido foi “um incidente”.
E arrematou com a afirmação de que “o Exército não matou ninguém”.
O que é verdade.
Mas Bolsonaro está apenas se escondendo atrás da instituição do Exército.
Realmente, não foi a instituição, o Exército, que matou Evaldo Rosa.
Foram alguns militares influenciados pela ideologia do “atira primeiro e pergunta depois”, cujo principal expoente é, precisamente, Bolsonaro, que, aliás, não tem outro projeto para o Exército que não seja transformá-lo em uma “milícia” voltada contra o seu próprio povo – o nosso povo.
Não há nada mais oposto, mais antagônico, ao espírito do Exército de Caxias.
C.L.