Um dos nomes mais importantes da música popular brasileira e, em particular, do samba, a cantora Beth Carvalho morreu nesta terça-feira, aos 72 anos, no Rio de Janeiro.
Sofrendo da coluna há anos, problema que a deixou cada vez mais imobilizada nos últimos tempos, a cantora estava internada no Hospital Pró-Cardíaco, na Zona Sul da cidade, desde o início de 2019.
De personalidade forte, guerreira, engajada nas lutas do povo, conhecedora e frequentadora dos redutos de sambistas nos mais distantes bairros, principalmente do Rio, mas também de São Paulo, a cantora foi responsável por descobrir e revelar importantes talentos da música, o que a fez ser carinhosamente reconhecida e chamada pelo público e pelos artistas de Madrinha do Samba.
Participante assídua dos encontros musicais que se realizavam embaixo de uma tamarineira na sede do bloco Cacique de Ramos, no subúrbio da Zona Norte fluminense, a cantora extraiu dali e lançou para o Brasil os talentos do grupo Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Sombra e Sombrinha e Jorge Aragão, só para citar alguns.
Dali, não apenas deu voz àqueles talentos escondidos, como trouxe à tona a musicalidade única dos pagodes de fundo de quintal, levando para seus shows, em produções primorosas à altura daquelas manifestações genuinamente populares, a riqueza do banjo, de tan-tans e repiques.
Mas a essa altura já tinha ido atrás de outros tipos de ouro, quando em 72 procurou Nelson Cavaquinho para gravar “Folhas Secas” e em 75, Cartola, para lançar “As Rosas Não Falam”. Dos dois cantou quase tudo, em gravações e apresentações memoráveis.
Da família de esquerda – seu pai, João Francisco Leal de Carvalho, que era advogado, foi cassado pelo golpe militar em 1964 – herdou a combatividade, o amor e a briga pelas mais autênticas e ricas manifestações da nossa cultura, e a participação engajada nos mais importantes momentos da vida cultural e política do país.
Iniciou sua carreira cantando bossa nova no movimento Música Nossa, gravou com Taiguara e participou de quase todos os importantes festivais de música que, na época, eram espécies de palco de resistência da juventude e de artistas que viriam a escrever uma das páginas mais marcantes da nossa música.
Em 1968 estourou com “Andança”, de Edmundo Souto, Paulinho Tapajós e Danilo Caymmi, no Festival Internacional da Canção, e fez sucesso em todo o país.
Já envolvida com o samba, ainda na década de 60 participou do show “A Hora e a Vez do Samba”, ao lado de Nelson Sargento e Noca da Portela.
Em 50 anos de carreira, Beth gravou 31 discos, 2 DVDs e levou o samba para o mundo e até para o espaço sideral.
Se apresentou em Angola, Atenas, Berlim, Boston, Buenos Aires (no Luna Park projeto “Sin Fronteiras” da cantora e amiga Mercedes Sosa), Espinho, Frankfurt, Munique, Johannesburgo, Lisboa (no show do jornal comunista “Avante”, para um público de 300 mil pessoas), Lobito, Luanda, Madri, Miami, Montevidéu, Montreux, Nice, New Jersey, Nova York (no Carnegie Hall), Newark, Paris, Punta del Este, São Francisco, Soweto, Varadero (Cuba), Zurique, Milão, Padova, Toulouse e Viena.
No Japão, país em que nunca se apresentou, vendeu milhares de cópias de CDs e teve sua carreira musical incluída no currículo escolar da Faculdade de Música de Kyoto.
Sua gravação da música “Coisinha do Pai”, de Jorge Aragão, foi tocada para “acordar” um robô em Marte, em 1997. A programação foi feita pela engenheira brasileira da Nasa Jacqueline Lyra.
Mangueirense assumida e apaixonada era, no entanto, querida por todas as escolas de samba. Foi homenageada pela Portela como a intérprete que mais gravou os compositores portelenses. Foi enredo da Escola de Samba Unidos do Cabuçú, na inauguração do Sambódromo, com o qual a escola foi campeã e subiu para o Grupo Especial, e da Acadêmicos do Tatuapé, de São Paulo, entre outras escolas de samba espalhadas pelo país.
“Acho que o samba está de luto, a música do Brasil está de luto, a Mangueira está de luto. Acho que não é exagero nenhum a gente dizer que perdemos hoje a maior sambista da história do Brasil. Perdemos uma descobridora de talentos, uma mulher sambista, uma mulher que estava sempre do lado do povo, cantando as coisas do povo. Morre o corpo e fica a memória e a obra, que é imortal”, afirmou o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira.
Beth Carvalho foi casada com o jogador de futebol Edson de Souza Barbosa com quem teve sua única filha, Luana Carvalho.
Em nota, o empresário da artista, Afonso Carvalho, informou que ela morreu às 17h33 desta terça, “cercada de amor por seus familiares e amigos”.
ANA LÚCIA