O CEO da Boeing, Dennis Muilenburg, abandonou abruptamente a coletiva de imprensa que era parte da convenção anual dos acionistas da corporação na segunda-feira (29) em Chicago, ao ser perguntado por um repórter: “Trezentas e quarenta e seis pessoas morreram. Você pode responder algumas perguntas sobre isso?”
Na véspera, o Wall Street Journal publicara que a Boeing teria desativado uma função de segurança padrão no Boeing 737 Max sem avisar as companhias aéreas, exatamente a que informava aos pilotos sobre possíveis defeitos nos sensores – o que se acredita foi o que aconteceu na queda do voo 610 da Lion Air, na Indonésia, em outubro do ano passado, e do voo 302 da Ethiopian Airlines, em março.
Nos dois casos, minutos após a decolagem, com desesperadas tentativas dos pilotos de recobrarem o controle sobre os aviões, que eram novinhos em folha.
Grande aposta da Boeing, o novíssimo 737 Max respondeu por 30% dos lucros da corporação no ano passado, que cresceram 24%, para US$ 10,5 bilhões, e vinha sendo o avião mais vendido da gigante aeroespacial.
A ordem de mantê-lo no solo em vigor no mundo inteiro desde 13 de março já custou US$ 1 bilhão em provisão, além da suspensão ou cancelamento de encomendas e da redução do ritmo de produção.
PAGUE A MAIS PARA NÃO CAIR
Como revelou o WSJ, o sistema de alerta foi desativado pela Boeing e só era habilitado no 737 Max com pagamento adicional, como uma opção de segurança a mais.
A FAA – órgão regulador de aviação dos EUA – e a Southwest Airlines, uma das afetadas, só souberam da alteração um ano depois que o 737 Max entrara em serviço – e quando o primeiro acidente já havia ocorrido.
Ainda segundo o WSJ, só então a Boeing solicitou a reativação do sistema de alerta – o que não ocorreu.
De acordo com a publicação, as autoridades da FAA e do setor aéreo insistem que entender o motivo para o desligamento dos alertas é central para esclarecer os problemas de segurança do modelo.
Só em março, após o segundo acidente, a Boeing teria atualizado o software defeituoso e os procedimentos para pilotar o avião. Mas a Reuters registrou que a associação que representa os pilotos da American Airlines informou à FAA que considerava “insuficientes” os remendos providos pela Boeing.
Veio também à tona que a FAA chegou a discutir com a Southwest Airlines o aterramento dos jatos 737 Max em dezembro passado, depois de descobrirem que o alerta de desacordo de sensores havia sido desativado. Se houvesse sido feito, poderia ter evitado 157 mortes na queda na Etiópia,
OPÇÃO “A SER CONSIDERADA”
Em resposta à pergunta da Reuters sobre “possível aposentadoria” do 737 Max, o porta-voz da FAA disse que “é uma opção a ser considerada”.
À agência de notícias britânica, a Boeing disse que estava preparando nova atualização do software e um pacote de treinamento em que o sistema de correção de ângulo da aeronave é abordado.
Na coletiva, Muilenburg teve o desplante de falar em “cadeia de eventos” e “múltiplos fatores contribuintes” e até insinuou que a culpa era dos pilotos. Como se os ‘fatores contribuintes’ decisivos para a ‘cadeia de eventos’ não tivesse sido exatamente as opções tomadas pela Boeing para lucrar mais, e mais rapidamente, com o novo modelo.
“ELO COMUM”
Em sua explanação, Muilenburg chegou a admitir como “elo comum” entre os dois acidentes a ativação do sistema antiestolagem MCAS por causa de “dados errados do ângulo de ataque” [de subida] do avião. Mas rechaçou qualquer falha de design do 737 Max ou algum malfeito da Boeing.
O executivo-chefe ignorou a rumorosa questão de porque o MCAS foi projetado pela Boeing para ser ativado com base nos dados de um único sensor de ângulo de ataque da aeronave, quando em aviação o padrão é a redundância nos sistemas críticos para evitar que o mau funcionamento de um único sensor leve a uma tragédia.
Como o WSJ sublinhou, a Boeing jamais disse à companhias aéreas ou a seus pilotos que o recurso encontrado nos 737 anteriores – que avisa o piloto quando dois sensores de ângulo de ataque estão enviando dados conflitantes – havia sido desativado no novíssimo modelo.
O que é ainda mais grave quando se sabe que, como argumento de venda do 737 Max, na disputa com o modelo concorrente da Airbus, o 320neo, a Boeing asseverava que, como a maioria dos pilotos estava familiarizada com o 737 e não seria necessário treinamento adicional, colocar em serviço seu avião saía mais barato.
Mas o que o relatório preliminar sobre o desastre da Ethiopian, divulgado há um mês, revelou, foi que os pilotos do voo 310 levaram mais de quatro minutos para perceberem que dados incorretos de um dos sensores de ângulo de ataque estavam levando o dispositivo MCAS a empurrar para baixo o nariz do jato.
PERGUNTAR NÃO OFENDE?
Sobre isso, um repórter indagou do executivo-chefe da Boeing porque ele tinha “colocado um sistema MCAS nos aviões sem avisar as companhias aéreas ou os pilotos e por que não dissera aos pilotos que o ângulo de ataque não estava de acordo com a luz de advertência desativada”.
A escapatória de Muilenburg foi negar que o MCAS fosse um sistema separado que exigisse treinamento adicional de pilotos. Mas foi ficando cada vez mais difícil sair pela tangente.
Quando outro repórter levantou a questão do sensor único para controle do MCAS, contrariamente ao padrão habitual de circuitos duplos ou triplos quando não pode haver falha, e destacou as reclamações de companhias aéreas sobre o processo de certificação e o dispositivo antiestolagem, cinicamente Miulenburg se saiu com a frase de que “esses aviões voavam nas mãos dos pilotos” – como se fosse esse o problema.
MERGULHO IRRECUPERÁVEL
Teve que engolir o repórter lhe lembrando que o MCAS do voo da Ethiopian “foi ativado 21 vezes”, empurrando o nariz do avião para baixo “até o ponto de um mergulho irrecuperável” e que não haviam conseguido recuperar o controle do avião após “haverem seguido o protocolo da Boeing”.
A desfaçatez mostrada por Muilenburg levou um jornalista do Seattle Times a perder a paciência: “o design final do MCAS foi profundamente defeituoso e seus engenheiros estão corrigindo e testando a correção hoje. Corrigindo falhas muito específicas, que são claras nos vôos”. E disparou: “então você pode admitir que o design foi falho?”
Mas, claro, o forte de Muilenburg, não é exatamente esse tipo de questão. Desde que assumiu o comando da Boeing em 2015, reduziu os custos graças ao corte da força de trabalho em quase 7% e, no ano seguinte, mais 6%. Estendeu o arrocho aos trabalhadores dos fornecedores, exigindo cortes de preços de 10% ou mais, se utilizando do seu poder de monopólio.
Sob seu comando, a Boeing em 2017 bateu recordes de lucros, fluxo de caixas e entrega de aviões civis e o próprio Muilenburg amealhou quase US$ 18,5 milhões só nesse ano. As ações da corporação quase triplicaram na bolsa de Wall Street desde a eleição de Trump. Após a queda do voo da Ethiopian, já retrocederam 10%. Também foi cancelada uma recompra de ações e ainda não é possível ver qualquer luz no final do túnel.
Familiares das vítimas querem respostas sobre as 346 mortes e porque não foram evitadas. Diante de tudo isso, não deixa de ser oportuna a indiscreta pergunta de um repórter: “você já pensou em se demitir?”
A.P.