Já que Bolsonaro tanto falou (a rigor: berrou) contra uma suposta perseguição política a ele, na investigação de seu filho, Flávio Bolsonaro – e de seu faz-tudo, Fabrício Queiroz – vamos resumir uma pequena parte da investigação.
Assim, o leitor poderá melhor julgar sobre certas alegações de perseguição política, que são apenas uma tentativa de fuga das leis e da Justiça.
Em 3 de janeiro de 2018, quando o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) encaminhou o Relatório de Inteligência Financeira nº 27.746 (RIF 27.746) ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), não estava investigando as transações do filho de Bolsonaro.
O RIF 27.746 era um calhamaço de 420 páginas sobre o poço de corrupção escavado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) por Picciani, sequazes e associados – e em período curto (janeiro de 2016 a janeiro de 2017).
Nesse levantamento, foram identificados, pelo COAF, 75 funcionários com movimentações financeiras suspeitas em suas contas bancárias – e mais 470 (quatrocentos e setenta) outros funcionários que eram remetentes ou destinatários dos recursos.
Para facilitar a investigação, o COAF dividiu o conjunto dos investigados em 22 grupos, classificados por suas ligações com deputados estaduais específicos.
Foi, então, que, no vigésimo grupo (Núcleo nº 20, nos termos do COAF), apareceram as movimentações de um certo Fabrício José Carlos de Queiroz, lotado como “auxiliar I” no gabinete do deputado estadual Flávio Nantes Bolsonaro.
Flávio Bolsonaro não estava sendo investigado – e continuou sem investigação sobre ele, até que os dados revelados na investigação de Queiroz forçaram os promotores a incluí-lo, ainda que de maneira secundária.
Como já escrevemos e publicamos muito sobre as movimentações de Fabrício Queiroz, neste artigo nos deteremos especificamente no que foi encontrado sobre o filho de Bolsonaro.
O que embasou a quebra de seu sigilo foram, antes de tudo, seus supostos negócios imobiliários.
Trata-se dos seguintes imóveis:
- Apartamentos nº 206 e nº 505 na Rua Mal. Ramon Castilla, 199, Botafogo;
- Salas 1001 a 1012 na Av. Afonso Arinos de Melo Franco, 222, Barra da Tijuca;
- Apartamento nº 813 na Rua Barata Ribeiro, 96, Copacabana;
- Apartamento nº 603 na Av. Prado Júnior, 297, Copacabana;
- Apartamento nº 603 na Av. Sernambetiba, 3.600, bloco 04, Barra da Tijuca;
- Apartamento nº 501 na Rua Pereira da Silva, 197, bloco 02, Laranjeiras;
- Sala nº 4.030 na Av. Ayrton Senna, 3.000, parte III, Barra da Tijuca.
Segundo declarou, Flávio Bolsonaro pagou, ao todo, R$ 9.425.570,22 (nove milhões, quatrocentos e vinte e cinco mil, quinhentos e setenta reais e vinte e dois centavos) por esses imóveis – 19 ao todo, se contarmos as 12 salas do item que mencionamos em segundo lugar.
Ao vendê-los, Flávio Bolsonaro, entre 2010 e 2017, obteve um ganho de R$ 3.089.835,29 (três milhões, oitenta e nove mil, oitocentos e trinta e cinco reais e vinte e nove centavos).
Um extraordinário lucro de 1/3 ou 33%.
Mas isso não é o mais extraordinário.
PANAMÁ
De dezembro de 2008 a setembro de 2010, Flávio Bolsonaro – na época, deputado estadual do Estado do Rio de Janeiro – comprou as doze (12) salas, mencionadas acima, em um condomínio comercial de luxo, o Barra Prime, na Barra da Tijuca.
Segundo declarou, por essas doze salas pagou R$ 2.662.430,22 (dois milhões, seiscentos e sessenta e dois mil, quatrocentos e trinta reais e vinte e dois centavos).
Em outubro de 2010, essas salas foram vendidas para uma empresa de nome MCA Exportação e Participações Ltda por R$ 3.167.405,51 (três milhões, cento e sessenta e sete mil, quatrocentos e cinco reais e cinquenta e um centavos).
Flávio Bolsonaro teve um ganho, portanto, de R$ 504.975,29 (quinhentos e quatro mil, novecentos e setenta e cinco reais e vinte e nove centavos).
Mais de meio milhão de ganho em uma compra e revenda não é algo comum, nesse caso, em que a mercadoria são 12 salas comerciais. Mas ainda não é um escândalo.
Porém, o que mais chamou a atenção do COAF e dos promotores que investigavam a corrupção na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) não foi esse ganho, mas a empresa que comprou as salas de Flávio Bolsonaro.
A MCA Exportação e Participações Ltda tem como sócia a Listel S.A., uma “holding de instituições financeiras” com sede no Panamá, conhecido bordel fiscal e destino de dinheiro ilícito.
O que seria isso?
Uma internalização e lavagem de dinheiro sujo, através de uma compra imobiliária?
COPACABANA
Em 2012, Flávio Bolsonaro comprou um apartamento na avenida Prado Júnior, em Copacabana.
Segundo declarou, seu desembolso foi de R$ 140.000,00 (cento e quarenta mil reais) em novembro daquele ano.
Pois em fevereiro de 2014, Flávio Bolsonaro vendeu o mesmo apartamento por R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais).
Seu ganho, portanto, foi de R$ 410.000,00 (quatrocentos e dez mil reais) – ou seja, 292,85% de lucro em 15 meses.
Enquanto isso, a valorização média dos imóveis na avenida Prado Júnior, durante esses 15 meses, foi de 11,18%, pelo Índice FipeZap de Preços de Imóveis (cit. no pedido de medida cautelar de quebra de sigilo e fiscal do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, p. 36).
O ganho de Flávio Bolsonaro, portanto, foi 26 vezes maior (ou +2.519,41%) que a valorização média dos imóveis localizados no mesmo local.
CORNUCÓPIA
Na mesma data em que comprou o apartamento da Prado Júnior, Flávio Bolsonaro adquiriu outro, também em Copacabana, na rua Barata Ribeiro.
Por esse, Flávio Bolsonaro, segundo sua declaração, pagou R$ 170.000,00 (cento e setenta mil reais).
Um ano depois, ele o vendeu por R$ 573.000,00 (quinhentos e setenta e três mil reais).
O ganho, portanto, foi de R$ 403.000,00 (quatrocentos e três mil reais).
Ou seja, um lucro de 237% (duzentos e trinta e sete por cento).
No mesmo período, a valorização média dos imóveis, no local, foi de 9% (nove por cento).
Portanto, também aqui, um ganho 26 vezes maior (ou +2.533,33%) que a valorização média dos imóveis do local.
Porém, há mais.
Tanto o apartamento da Prado Júnior quanto o da Barata Ribeiro foram, como dissemos, adquiridos na mesma data.
Mas não apenas na mesma data.
Os dois apartamentos foram vendidos para Flávio Bolsonaro pela mesma pessoa, o norte-americano Glenn Howard Dillard.
Dillard não era o dono dos apartamentos, apenas um intermediário.
Posteriormente, Dillard foi processado pelo dono do imóvel da Prado Júnior, o também norte-americano Charles Eldering.
Eldering denunciou que Dillard vendera o apartamento sem a concordância dele – e não lhe entregara dinheiro algum pela venda.
“… Charles Eldering alegou ter sido ludibriado por Glenn em negociações de imóveis realizadas como investimentos na sociedade Linear Enterprises Consultoria Imobiliária, composta pelo procurador Glenn, pelo investidor Charles e por Paul Daniel Maitino, proprietário do apartamento localizado na Rua Barata Ribeiro, que também foi vendido pelo procurador ao deputado estadual Flávio Bolsonaro e sua esposa na mesma ocasião.
“(…) Após perceber a fraude quando tentou visitar seu imóvel no ano de 2015, Charles Eldering foi informado por Glenn que o valor da venda dos imóveis não teria sido repassado porque o procurador perdeu os recursos ao aplicá-los no financiamento de seu novo empreendimento, a empresa Prolist MLS (Realest Tecnologia S.A.) que acabou gerando prejuízos” (MPRJ, doc. cit., p. 38).
Devido a esse processo, apareceu o subfaturamento das compras de imóveis do filho de Bolsonaro:
“… apesar de o procurador [Dillard] ter sido contratado pelos norte-americanos Charles Eldering e Paul Maitino para investir recursos no mercado imobiliário visando lucro, Glenn Dillard revendeu os imóveis para o investigado Flávio Bolsonaro com inexplicável deságio de cerca de 30% (trinta por cento) nas duas transações”.
Todos esses movimentos são característicos, diz o COAF, de lavagem de dinheiro.
LARANJEIRAS
Outra transação de Flávio Bolsonaro é mais conhecida – e igualmente suspeita.
Trata-se do apartamento comprado por ele no bairro de Laranjeiras.
Em outras oportunidades, examinamos essa questão sob o ângulo dos 48 depósitos – todos de R$ 2 mil – que o COAF detectou na conta de Flávio Bolsonaro (v. Quem fazia os depósitos na conta de Flávio Bolsonaro?).
Ou sobre como a versão de Flávio sobre os depósitos foi desmentida pelos fatos – isto é, pelos documentos (v. Escritura desmente versão de Flávio Bolsonaro sobre dinheiro em sua conta) .
Resumindo:
Segundo disse Flávio, na tentativa de explicar os 48 depósitos de R$ 2 mil, ele trocou uma cobertura em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, por um apartamento na Urca e um imóvel comercial na Barra da Tijuca, pertencentes a Fábio Guerra, conhecido jogador de vôlei de praia – e mais um pagamento de R$ 600 mil em dinheiro, pois o valor da cobertura de Flávio Bolsonaro seria R$ 2,4 milhões, enquanto a soma dos valores dos imóveis de Guerra seria R$ 1,8 milhão.
Flávio Bolsonaro teria, então, recebido R$ 550 mil de Guerra, como sinal da transação, sendo R$ 100 mil em espécie, em mãos. Esse seria o dinheiro que ele depositou em sua conta na agência do Itaú Unibanco da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), dividido em 48 envelopes, contendo R$ 2 mil em cada um.
A história, inverossímil pela própria natureza, foi desmentida pela escritura do imóvel, onde as datas não coincidem com a versão de Flávio Bolsonaro.
Entretanto, aqui, queríamos destacar outro aspecto. Nas palavras dos promotores:
“O imóvel foi adquirido pelo deputado estadual Flávio Nantes Bolsonaro em 22 de dezembro de 2016 por R$ 1.753.140,00 (um milhão setecentos e cinquenta e três mil, cento e quarenta reais) e vendido em 23 de agosto de 2017 por R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) ao ex-jogador de voleibol Fábio Guerra (…).
Houve, então, “uma inexplicável valorização de R$ 646.860,00 (seiscentos e quarenta e seis mil, oitocentos e sessenta reais) em apenas oito meses enquanto o valor do m2 da região sofreu desvalorização no mesmo período”.
Com efeito, o preço do metro quadrado, na região desse imóvel, caiu -3,34%, enquanto o apartamento de Flávio Bolsonaro se valorizava em +36,89%.
O padrão, portanto, é o mesmo das compras e vendas anteriores.
Comentam os promotores:
“Esse método de valorização artificial em transações imobiliárias com objetivo de dissimular evolução patrimonial incompatível de criminosos é tão comum que a doutrina criou uma tipologia própria no processo de lavagem de dinheiro que pode se amoldar, em tese, às transações suspeitas do ex-deputado estadual” – e os promotores citam um texto da jurista Carla Veríssimo de Carli, onde se define a “valorização artificial de bens ou falsa especulação com ativos”.
A definição da jurista, que é geral – não se refere a um caso específico –, realmente parece uma descrição das operações de Flávio Bolsonaro:
“O lavador [de dinheiro sujo] adquire o bem pelo seu valor de mercado (valor real), contudo registra no instrumento do negócio jurídico (contrato ou escritura) um valor (nominal) bastante inferior ao da aquisição, pagando a diferença informalmente (“por fora”, “por debaixo do pano/da mesa”).
“Após a compra, o lavador pode ou não aguardar algum tempo, realizando ou não benfeitorias no bem, ou incorporação imobiliária, e o revende a terceiro, registrando agora no instrumento do negócio jurídico seu valor real, pagando inclusive o tributo devido (no Brasil chamado de ganho de capital, atualmente de 15% sobre o ganho) sobre a diferença entre o valor desta revenda e o valor da compra”.
FRACASSO
Se as operações de Flávio Bolsonaro são lavagem, resta saber: lavagem de quê?
De onde vinha o dinheiro que era lavado através dessas atividades supostamente imobiliárias?
Esta é, aliás, a pergunta implícita nas investigações.
Ela é o equivalente de outra pergunta: de onde vinha o dinheiro que era depositado na conta de Queiroz?
Pois o desvio nos salários dos funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro não explica toda a movimentação da conta de Queiroz.
Os promotores têm razão ao apontar que uma das coisas que mais chamam atenção é a insistência de Flávio Bolsonaro em tentar impedir as investigações.
Para um esquema dessas tentativas, o leitor poderá consultar o resumo gráfico, elaborado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, sobre o caso: Histórico de tramitação do procedimento investigatório envolvendo Fabrício Queiroz.
Tão suspeitas – ou mais – quanto essas tentativas de Flávio Bolsonaro de abafar o caso, são os berros de seu pai.
Que nada disso tenha conseguido abafar o caso, não é, aqui, a questão. Este não é um artigo sobre a incompetência atávica da família Bolsonaro.
C.L.
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