Já faz algum tempo, recebi do Sindicato dos Economistas do Distrito Federal (SINDECON-DF), através de seu presidente, meu amigo Flauzino Antunes Neto, um grande presente: o livro “Entre Crises – 40 anos de economia do Brasil”, de Dércio Munhoz.
Como disse, já faz algum tempo.
Tenho, desde então, planejado escrever algo sobre o livro de Dércio. No entanto, a multiplicidade de coisas a fazer aqui, na redação do HP, e até em outros lugares, impediu-me de realizar essa intenção. Não é um caso único: na verdade, estou com uma fila de livros de que necessito dizer algo, a maioria deles, presentes de amigos.
Espero saldar parte dessa dívida – parcialmente, em dimensão muito pequena – com essa introdução ao artigo que Dércio Garcia Munhoz publicou na “Revista de Conjuntura”, do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal, sobre a política monetária e fiscal dos últimos anos, e a Operação Lava Jato. No entanto, não preciso dizer mais sobre isso, pois o leitor poderá ler o texto de Dércio abaixo, nesta página.
Resta, no entanto, dizer que Dércio Garcia Munhoz é um dos grandes economistas do país – e considerando que, na sua profissão, é muito difícil, hoje, encontrar alguém que possa ser qualificado de “grande”.
O que faz a obra de Dércio especialmente importante é sua ligação com o Brasil, sempre pensado enquanto nação – não é algo simples, pois muitos que assim acham que fazem estão longe de conseguir essa ligação com o país, sem a qual a análise econômica (ou política ou histórica) torna-se charlatanismo ou, o que é mais ou menos a mesma coisa, reacionarismo.
Por quê?, perguntará o leitor mais jovem.
Porque a ciência não admite a fuga da realidade, a omissão da verdade. Aqueles que, aberta ou disfarçadamente, negam a nação, apenas fogem da realidade e omitem a verdade.
Naturalmente, a nação não existe sem os homens e mulheres que a formam. Por isso, é uma construção contínua. Ela não está pronta, não está acabada. Exige o esforço daqueles que a compõem. Sobretudo nos tempos de hoje.
Neste sentido, a obra de Dércio Garcia Munhoz (por exemplo, “Dívida Externa: a Crise Rediscutida” ou “Economia Agrícola – Agricultura: uma Defesa dos Subsídios”) é um esforço para construir a nação.
Seu novo livro – estou atrasado na resenha, daí esse “novo” -, “Entre Crises – 40 anos de economia do Brasil” é um panorama da economia brasileira desde o pós-II Guerra Mundial até a crise das economias imperialistas de 2008, com um desenho das nossas perspectivas para o século XXI.
Bem, leitores, confiram o artigo abaixo. Vejam de que é capaz o professor Munhoz – sua lucidez e coragem.
E que me desculpem os amigos do SINDECON-DF, pelo atraso.
C.L.
DÉRCIO GARCIA MUNHOZ
A intensificação da ação repressiva do Estado sobre práticas ilícitas que vinham prosperando na execução de contratos governamentais teve o efeito de um verdadeiro tsunami, envolvendo a apuração de atos passados, e mesmo recentes, com incontáveis e até então insuspeitas ramificações, e com incontáveis reflexos.
Como logo se concluiu que o problema se originara em obras e serviços em determinados setores, inevitável que as ações policiais e da Justiça tivessem impactos concentrados sob dois aspectos: por um lado sobre os negócios de um grupo de grandes empresas da área da construção, naturalmente fragilizando-as; e, por outro lado, contendo, ou mesmo paralisando investimentos governamentais e de estatais, tanto pela necessidade da revisão ou inovação nos instrumentos de controle, como pela magnitude dos malfeitos e das perdas financeiras requerendo apuração.
As ações anticorrupção, consagradas pela designação de Lava Jato, passaram, num segundo momento, ora a ser associadas às dificuldades financeiras das empresas, com obras paralisadas e impedidas de participar de novas licitações, ora à queda dos investimentos governamentais. Criou-se, então, uma versão sorrateira, de que a Lava Jato era responsável pela desestruturação especialmente das grandes construtoras, colocando em cheque a sobrevivência destas, em prejuízo do país.
Nos desdobramentos, a ação da Lava Jato tem tido, é inegável, implicações que se manifestam em diferentes crises: a) microeconômica, na medida em que foram e estão sendo afetadas, porque denunciadas, inúmeras grandes empresas brasileiras; b) macroeconômica, dada a paralisação de obras de grande porte – e suspensão de novas licitações – com reflexos no emprego e na renda. Mas daí a acusar a investigação, e os investigadores, como responsáveis pelos indesejáveis reflexos econômicos entrelaçados com a ação da Justiça vai uma longa distância. Já que as coisas – o problema e as possíveis soluções – não são tão simples como possam parecer.
No aspecto microeconômico, é claro que a ação da Justiça na apuração de um surpreendente cipoal com ramificações de ilícitos teve impacto na vida das empresas envolvidas. Mas isso era inevitável, dada a extensão, complexidade e implicações ligadas às operações suspeitas.
E para que o processo fosse mais lento que o desejável, como ocorreu, frustrando a possibilidade de serem abreviados acordos de leniência e a volta das empresas à normalidade das operações, contribuíram as próprias empresas envolvidas. Pois é evidente que a longa resistência destas em reconhecer ou confessar os meandros dos esquemas de corrupção retardou, e tem retardado, a apuração do alcance e dimensões dos desvios.
No aspecto macroeconômico, também não se pode imputar só à operação saneadora a retração em novas obras que poderiam acionar empresas médias não envolvidas nas tramoias, mantendo um nível mínimo de atividades do setor, preservando empregos e rendas. A virtual paralisação dos investimentos federais, inclusive de estatais, está atrelada a outros desarranjos: a) o explosivo crescimento do endividamento líquido da Petrobrás (R$ 18,8 bilhões em 2006, R$ 62,1 bilhões em 2010 e R$ 382,1 bilhões em 2015), para o que contribuiu a política de contenção dos preços de combustíveis, forçando a empresa a subsidiar o consumo para redução artificial da inflação, em manobra oficial também adotada para o câmbio e para os preços da energia; b) os desdobramentos da grave e duradoura paralisação da economia brasileira que perdura desde 2014.
A crise da economia, é necessário frisar, tem como fontes dois fatores sem ligações com a Lava Jato: por um lado o desvario de medidas da dupla Banco Central/Fazenda, visando conter a inflação a qualquer preço, desde que em 2013 se exauriu o modelo de preços represados, introduzido em meados da última década; e, por outro, o descontrole dos gastos federais na pré-eleições de 2014. Nesse ambiente de desorganização do sistema econômico, os investimentos no país recuaram de 21,8% do PIB – nível mantido entre 2010 e 2013 – para 17,6% em 2015 e apenas 15,4% em 2016. Os gestores da economia, de antes e após 2013, e não a Lava Jato, é que puseram o país à deriva.
MUNDO DE ILUSÕES
Qualquer medida voltada para criar artificialismos – seja através de administração de preços, da taxa de câmbio, das taxas de juros etc. – tem um tempo de vida limitado. Isso porque sempre que se force a redução de preços na economia, sem mecanismos compensatórios, o efeito imediato é que um grupo de agentes passa a enfrentar redução de receitas sem redução de custos, enquanto outros se beneficiam de um aumento do poder de compra e do nível de bem estar – sem que efetivamente se esteja fazendo uma transferência de rendas com caráter permanente. Essas medidas artificiais transmitem à população a sensação de uma melhoria do nível de renda, permitindo que se propague, enganosamente, que as famílias se viram alçadas a grupos de renda superiores. Algo como dizer que dezenas de milhões de famílias milagrosamente saltaram de classe – inchando a classe média – que foi o chavão preferido na propaganda oficial.
Praticada no Brasil desde meados da década passada, a estratégia do Governo de criar falsas euforias, de grande impacto político apesar de apenas temporárias, teve o ônus jogado sobre a Petrobrás, o setor elétrico e a indústria manufatureira. Evidentemente que inviabilizando empresas dado o endividamento que provocava, como foi o caso da Petrobrás e das elétricas, ou fechando milhares de empresas e milhões de empregos, quando o câmbio barato quebrou a competitividade externa e interna das indústrias.
A situação tornou-se insuportável quando, ao final de 2013, o recuo da taxa efetiva de câmbio chegou a perto de 50% em relação à média 2009/2011 (seção Conjuntura Estatística da revista Conjuntura Econômica, FGV); as empresas do setor elétrico eram sufocadas pelo acúmulo de desequilíbrios financeiros; e o endividamento líquido da Petrobrás era, em 2013, quase quatro vezes maior que o nível de 2010. Chegava-se a um ponto limite – como já ocorrera ao final de 1998 – e o realinhamento do câmbio e demais preços administrados tornava-se imperioso.
Quando o Governo decide por uma taxa de inflação artificialmente baixa, manipulando o câmbio e outros preços, tem plena consciência de que se trata de medida temporária e que, quando exaurido o fantasioso modelo, inevitável que a inflação de proveta dê lugar a uma elevação no nível dos preços, na acomodação para a recuperação de rentabilidade dos setores sufocados. E nessa hipótese só resta ao governo admitir o movimento de recomposição de custos e preços e a partir disso buscar alternativas que permitam um processo de reacomodação das rendas com o mínimo de desarranjos derivados. O crescimento econômico deve ser visto, então, como aliado essencial.
Ora, quando se impôs o rearranjo de custos e preços na economia brasileira, a partir de 2013, surpreendentemente a dupla Banco Central/Fazenda passou a atribuir as pressões sobre os preços a um pseudo excesso de demanda e a partir daí acionou os instrumentos ortodoxos de política monetária – fundamentalmente a elevação das taxas de juros – com efeitos paralisantes sobre a atividade econômica. E o fizeram mesmo presenciando uma economia com elevado nível de capacidade ociosa e próxima da estagnação.
O resultado foi que as famílias (pessoas físicas) enfrentaram um aumento absurdo nas despesas com juros, e tais encargos (apenas nos empréstimos com recursos livres) saltaram de R$ 260 bilhões, estimados para 2012, para R$ 375 bilhões em 2014 e R$ 580 bilhões em 2016, mais que dobrando no período, quando o saldo dos empréstimos pouco crescera. Decretavam, portando, as autoridades, com juros estratosféricos, a paralisação da economia.
Igualmente, como decorrência da elevação da Selic (aproximadamente de 9% em 2012 para 14% a.a. em 2016), explodiram os gastos do Tesouro Nacional com juros da dívida pública e com inaceitáveis operações do BC com títulos públicos. E as estimativas indicam que tais dispêndios se elevaram de R$ 185 bilhões em 2012 para R$ 450 bilhões em 2016 (mesmo compensada a remuneração dos depósitos do Tesouro no BC). Um desvario praticado impunemente pelo Banco Central com a conivência do Ministério da Fazenda.
Não se pode concluir apenas que as autoridades perderam a noção do impacto de suas decisões sobre o funcionamento do sistema econômico. Mais que isso, inconscientemente jogaram o país numa crise sem precedentes, ao mutilar as duas principais fontes que acionam a produção e o emprego: a demanda de exportações e a demanda das famílias.
E, atônitos, os criadores do caos se mostram incapazes de reverter a decomposição que provocaram, independentemente das ações da Lava Jato, acenando apenas que a salvação se dará com a destruição da Previdência Social, adotando plenamente o modelo Pinochet, como ansiosamente cobrado pelo influente e misterioso mercado – que atesta o fracasso da gestão econômica com plena liberdade às autoridades da área para experiências que desarticulam o sistema econômico, levando dezenas de milhões de trabalhadores ao desemprego e ao desespero e paralisando as ações do Governo.