Em sua visita a São Borja, para as homenagens a Leonel Brizola por ocasião dos 15 anos de seu falecimento, o ex-governador Ciro Gomes declarou: “É absolutamente chocante ver nove generais ministros que são humilhados dia a dia por Bolsonaro, e mais 122 oficiais superiores, ocupando as diversas hierarquias do governo”.
Um oficial superior do Exército – que conhecemos quando de nosso curso na Escola Superior de Guerra (ESG), uma das vezes em que o HP foi convidado pela direção da instituição – escreveu algo semelhante (ou com algum parentesco) sobre a demissão do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo:
“Santos Cruz é um homem de origem muito pobre, que chegou a general por sua capacidade. Sua popularidade dentro do Exército é porque jamais teve alguém que o protegesse. Subiu por ele mesmo. Um exemplo para nosso Exército. (…) Seu único grande erro foi apoiar um idiota para presidente.”
O próprio general Santos Cruz descreveu o governo Bolsonaro como “um show de besteiras” (v. HP 20/06/2019, General Santos Cruz: “governo Bolsonaro todo dia tem uma bobagem”).
Uma apreciação mais caridosa que a do general Gilberto Pimentel, ex-presidente do Clube Militar: “é praticamente impossível para um verdadeiro militar conviver por muito tempo nesse meio torpe, podre, corrompido pela própria natureza. Isso está mais do que provado” (v. HP 16/06/2019, “Impossível um verdadeiro militar conviver nesse meio podre”, diz general sobre demissão de Santos Cruz).
FOLHA PREGRESSA
Porém, a essa altura dos acontecimentos, algo é evidente: Bolsonaro sente um especial prazer (um prazer sádico, o que é uma espécie de caricatura do verdadeiro prazer) em humilhar generais.
Os casos mais recentes – o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, demitido da presidência da Funai; o general Juarez Aparecido de Paula Cunha, demitido da presidência dos Correios; o próprio Santos Cruz; e a substituição do general Floriano Peixoto Vieira Neto por um major da PM na Secretaria-Geral da Presidência da República – são mais do que emblemáticos: são uma demonstração do que acabamos de dizer.
Bolsonaro é um rancoroso, um ressentido, capaz de exonerar um funcionário do Ibama porque recebeu dele uma multa há nada menos que sete anos – e uma multa justa, pois estava pescando ilegalmente (v. HP 30/03/2019, Funcionário concursado do Ibama que multou Bolsonaro em 2012 é exonerado).
Até hoje, Bolsonaro atribui a sua saída do Exército à cúpula da instituição, isto é, aos oficiais-generais.
Como já relatamos em Terrorismo de baixa potência (HP 16/08/2018):
Em outubro de 1987, a revista “Veja” (edição nº 999, de 27/10/1987) publicou um plano que o então capitão Jair Bolsonaro, na época cursando a Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), apresentara a uma de suas repórteres.
O plano, denominado “Operação Beco Sem Saída”, era “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (…) e em vários quartéis”, se o reajuste dos militares, naquele ano, ficasse abaixo de 60%.
“Serão apenas explosões pequenas, para assustar o ministro. Só o suficiente para o presidente José Sarney entender que o Leônidas não exerce nenhum controle sobre a tropa”, disse à repórter Cássia Maria, da “Veja”, a esposa do capitão Fábio Passos, apelidado de “Xerife”, parceiro de Bolsonaro no plano.
“Leônidas” era o general, e ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.
O plano, resumiu a repórter, era, sobretudo, “explodir bombas de baixa potência em banheiros da Vila Militar”. Na reportagem, ela forneceu o endereço em que se encontrara com os então militares, e com a esposa de “Xerife”, transcrevendo as declarações de Bolsonaro contra o ministro do Exército:
‘‘‘Temos um ministro incompetente e até racista’, disse Bolsonaro a certa altura. (…) Perguntei, então, se eles pretendiam realizar alguma operação maior nos quartéis. ‘Só a explosão de algumas espoletas’, brincou Bolsonaro. Depois, sérios, confirmaram a operação que Lígia chamara de Beco sem Saída. ‘Falamos, falamos, e eles não resolvem nada’, disseram. ‘Agora o pessoal está pensando em explorar alguns pontos sensíveis.’”
Em seguida, “sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite. O plano dos oficiais foi feito para que não houvesse vítimas. A intenção era demonstrar a insatisfação com os salários e criar problemas para o ministro (do Exército) Leônidas Pires Gonçalves. De acordo com Bolsonaro, se algum dia o ministro do Exército resolvesse articular um golpe militar, ‘ele é que acabaria golpeado por sua própria tropa, que se recusaria a obedecê-lo. Nosso Exército é uma vergonha nacional, e o ministro está se saindo como um segundo Pinochet’”.
Quando da publicação dessa reportagem, o ministro do Exército, general Leônidas, declarou em Brasília: “Os dois oficiais envolvidos [Bolsonaro e o também capitão Fábio Passos], eu vou repetir isso, negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação. Quando alguém desmente peremptoriamente e é um membro da minha instituição e assina embaixo, em quem eu vou acreditar? Nesses, que são os componentes da minha instituição – e eu sei quem é minha gente”.
No entanto, Bolsonaro havia desenhado, para a repórter da “Veja”, um croqui, com a adutora do Guandu, que abastece de água o Rio de Janeiro, e uma carga de dinamite com um detonador elétrico instalado em um relógio.
Uma perícia concluiu que Bolsonaro era o autor do croqui.
Além disso, sua negativa de que conhecia a repórter foi desmentida por três testemunhas dos encontros.
O ministro do Exército, então, mudou de posição, e Bolsonaro foi remetido a um “conselho de justificação”. Por unanimidade, os três coronéis que faziam parte desse conselho o consideraram culpado – e ele foi excluído da EsAO [Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais]. Escreveram os coronéis:
“O Justificante [Bolsonaro] mentiu durante todo o processo, quando negou a autoria dos esboços publicados na revista VEJA, como comprovam os laudos periciais. Revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua instituição”.
O ministro enviou a conclusão do conselho para o Superior Tribunal Militar (STM), com o objetivo de expulsá-lo do Exército. Mas o STM, em junho de 1988, “acolheu a defesa dos militares, que ‘se consideravam vítimas de um processo viciado’, sustentando serem insuficientes as provas documentais — cujo laudo pericial fora feito pela Polícia do Exército — por não permitirem comparações caligráficas, uma vez que fora usada letra de imprensa. Esse laudo foi desmentido mais tarde pela Polícia Federal, que confirmou a caligrafia de Bolsonaro” (cf. CPDOC, verbete “Jair Bolsonaro”).
O laudo a que se refere a última frase – e que foi, depois, desmentido pela PF – é um segundo, de resultado inconclusivo.
Logo em seguida, Bolsonaro passou para a reserva.
Sua permanência na ativa do Exército tornara-se impossível.
SUBMISSÃO
Esta é a razão pela qual Bolsonaro sempre foi considerado, nas fileiras das Forças Armadas, um mau militar, algo frisado pelo oficial do Exército, nosso conhecido da época da ESG, naquilo que agora escreveu.
A disciplina, como mostrou Caxias, é a essência da profissão do militar. Disciplina, evidentemente, para defender a Pátria de seus inimigos.
Porém, não é essa a opinião de Bolsonaro. Nem sobre a disciplina nem sobre a defesa da Pátria (como disse Ciro em São Borja: “essa gente [o círculo de Bolsonaro] entregou a Embraer para a Boeing. Essa gente está permitindo um enclave norte-americano no território brasileiro, na Base de Alcântara”).
Que os atuais oficiais-generais não sejam os mesmos da época em que Bolsonaro foi obrigado a sair do Exército, é uma questão que não tem importância para o ressentido.
Pois, aí, aparece a inveja dos que conseguiram o que ele não conseguiu: chegar ao posto de general.
Ficou capitão reformado – e ressentido – para o resto da vida.
Isso também, em parte, explica porque, na vida civil, na vida política, ele tornou-se um representante, não dos militares, mas das milícias (v. HP 24/04/2019, Bolsonaro e as milícias).
Em função de seu rancor, Bolsonaro tem exigido submissão – e absoluta (o oposto, portanto, da disciplina) – dos oficiais-generais.
E quando eles mostram que pensam com a própria cabeça, que têm sentimento de Pátria – e identificação com o povo – Bolsonaro busca, por todos os meios, humilhá-los.
C.L.
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