Com uma vantagem que subiu de 13 mil votos para quase 800 mil na repetição da eleição anulada de março, a oposição secularista turca do Partido Republicano do Povo (CHP), conquistou no domingo (23) a vitória na maior cidade do país, Istambul, depois de 25 anos de poder ali exercido pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), islâmico moderado, do presidente Recep Tayyip Erdogan, cujo candidato era o ex-primeiro-ministro e atual presidente do parlamento, Binali Yildirim.
Praticamente um desconhecido, o novo prefeito, Ekrem Imamoglu, um empresário do setor imobiliário, obteve 54% dos 8,8 milhões de votos válidos, contra 45% de Yildirim. A participação ultrapassou os 84%. Istambul tem um quinto da população turca e responde por um terço da economia. Milhares de pessoas foram às ruas comemorar.
Os curdos garantiram a vitória de Imamoglu, despejando nele seus votos, para derrotar Erdogan. Resultado que o eleito classificou de “vitória que marca um novo começo para a Turquia”. “Não foi um único grupo ou partido, mas toda a Istambul e a Turquia que venceram estas eleições”, afirmou.
“A democracia, paz e esperança ganharam”, afirmou o co-presidente do partido curdo HDP, Sezai Temelli, co-líder do partido curdo HDP, que convocou todas as partes a se unirem por um “processo constitucional” e para salvar o país da “destruição criada pela política polarizada”.
CRISE PEGA PESADO
Depois de dez anos de crescimento a altas taxas, no ano passado a Turquia entrou em recessão, com o crescimento caindo de 7,3% em 2017 para 2,6% em 2018, sendo que nos dois últimos trimestres o resultado do PIB foi negativo, configurando a recessão (-2,4% no quarto trimestre e -1,1% no terceiro). A previsão do PIB para este ano é de contração de -1,8% segundo a OCDE e até pior, conforme analistas.
A Turquia também foi um dos países emergentes mais atingidos pela alta do dólar, com a lira desvalorizando 30%, a inflação subindo a 20% e o desemprego disparando para 14,7% no geral e 25% entre os jovens.
Ao que se soma o rescaldo da derrota da tentativa de golpe contra Erdogan de 2016 – em que morreram centenas e depois milhares foram presos e julgados – e a partir do qual se instaurou profunda desconfiança sobre o papel dos EUA no episódio e da base da Otan de Incirlik.
Ainda, a não resolvida questão curda, em que Ankara tenta abafar pela repressão o clamor por autonomia. O que se completa com a evidente falta de disposição da União Europeia em acolher o reiterado pedido de ingresso do país.
SOBERANIA E S-400
O confronto com Washington segue se agravando com a proteção concedida pela CIA ao mentor do golpe, exilado nos EUA, e com as decisões soberanas da Turquia, como a compra do sistema de defesa antiaéreo russo S-400 e a implantação do gasoduto Torrente Turca, que abastecerá com gás russo o sudeste da Europa.
Contradições ainda mais tensas em decorrência da condição da Turquia de membro da Otan. No ano passado, Trump chegou a decretar sanções contra dois ministros turcos por causa de um pastor norte-americano acusado de envolvimento no golpe, que chegou a ficar preso um ano e meio.
Para o ministro das Finanças turco, Berat Albayrak, “o pior ficou para trás”. Ele tuitou também que o mau desempenho da economia se deveu aos “ataques especulativos” e à desaceleração da economia mundial.
Situação complexa em que Erdogan, que tinha se alinhado com o projeto de mudança de regime na Síria, montado por norte-americanos, sauditas e catarianos, com a Turquia de retaguarda dos jihadistas, se viu forçado a uma guinada para retomar relações com o Irã e com a Rússia para evitar um enclave curdo autônomo em sua fronteira, após o Pentágono passar a usar combatentes curdos como seus peões no Oriente Médio.
“RESPEITAR TODOS OS CIDADÃOS”
Ao reconhecer sua derrota, Yildirim convocou a “tentar ajudar Imamoglu em tudo que beneficie os habitantes de Istambul”. Gesto respondido pelo novo prefeito, que prometeu respeitar “todos os cidadãos, independentemente de sua orientação política ou étnica – turca, curda, circassiana, armênia ou grega”.
“Eu nunca vou atacar o modo de vida de outros cidadãos (leigos ou religiosos)”, asseverou o prefeito eleito. Tradicionalmente, o CHP congrega os seguidores do pai da Turquia moderna, Kemal Ataturk, cuja doutrina era de um país secular – mas Imamoglu vem de uma família religiosa.
As acusações lançadas contra o candidato opositor não surtiram efeito e ao invés do prefeito fraco, contestado e cercado de partidários governistas de março, Erdogan, ao apostar na anulação e nova eleição, acabou por dar uma chance de ouro à oposição, agora ganhando de lavada. Nas eleições de março, o AKP perdeu também a capital, Ankara, e outras cidades importantes.
Assim, a reedição da eleição em junho deu margem a uma campanha muito agressiva, com acusações aos kemalistas até de apoiarem o proscrito PKK (que luta pela independência curda) e de conivência com o golpe. O presidente do CHP quase foi linchado ao comparecer ao funeral de um soldado, morto com mais três companheiros, na repressão aos curdos.
Na tentativa de deter a avalanche de votos curdos para a oposição, Erdogan chegou a permitir que o líder curdo Abdullah Ocalan, há vinte anos no cárcere, pudesse voltar a se reunir com seus advogados, o que estava proibido.
O modo como a eleição foi anulada também ajudara a vitimizar Imamoglu, que dezesseis dias depois das eleições de 31 de março, havia recebido o mandato das autoridades eleitorais, tornando-se, portanto, prefeito da maior cidade da Turquia, para um mês depois a eleição ser cassada sob argumentos capengas. O que não impediu a justiça eleitoral de considerar válidas as eleições nos distritos, vencidas pelo AKP.
Enquanto entre março e junho Imamoglu aumentou sua votação em quase 600 mil, o candidato governista Yildirim perdeu quase 250 mil votos. O AKP, que em março ganhara em 25 dos 39 distritos, só segurou nove três meses mais tarde.
“TUDO VAI FICAR BEM”
Sob o slogan “Tudo vai ficar bem” – isso, em plena crise política, econômica e social grassando no país – Imamoglu se apresentou na campanha como um “ex-administrador competente” e de “mente aberta”, que tinha levado seus negócios a bom termo e faria o mesmo por Istambul. Sua vitória também foi comemorada pelo presidente da principal federação empresarial turca (Tusiad), Simone Kaslowski.
Ainda no domingo, Imamoglu declarou-se pronto “para trabalhar em harmonia” com o presidente Erdogan. “Eu envio daqui o meu pedido para me encontrar com você o mais rápido possível”. Pelo Twitter, veio o aceno de Erdogan: “parabenizo Ekrem Imamoglu, que ganhou a eleição de acordo com os resultados não oficiais”. Levando em conta a frase “quem vence em Istambul, vence na Turquia”, atribuída a Erdogan, fica para ser visto quem ri melhor por último.
A.P.