O governo anunciou na sexta (28), através da diretoria da Petrobrás, a primeira fase do seu plano de entrega das refinarias brasileiras, com o qual Bolsonaro e seu preposto na estatal, Roberto Castello Branco, pretendem repassar à iniciativa privada, de preferência estrangeira, metade da capacidade nacional de refino. Neste primeiro momento, serão colocadas à venda quatro unidades que pertencem à Petrobrás.
As quatro unidades da Petrobrás que o governo pretende expropriar da estatal para torrar a preço de banana têm capacidade para refinar 879 mil barris de petróleo por dia, o equivalente a quase 40% da capacidade nacional de refino. Faz parte do grupo a ser vendido a mais nova refinaria da Petrobrás, a Rnest (Refinaria Abreu e Lima), que está recebendo investimentos públicos e deve duplicar sua capacidade, dos atuais 130 mil para 260 mil barris por dia.
As demais refinarias que, se depender da intenção do governo Bolsonaro, serão desnacionalizadas são a de Minas Gerais (Regap) e Manaus (Rman), a unidade de industrialização de xisto no Paraná e a fábrica de lubrificantes Lubnor, no Ceará.
Para Fernando Siqueira, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), essas vendas trarão consequências muito ruins para o país e para a Petrobrás. Siqueira argumenta que nenhuma grande petroleira no mundo se desfaz de suas unidades de refino, que são as partes mais rentáveis desses conglomerados. “Quando o barril de petróleo se depreciou e chegou a custar apenas US$ 40, quem salvou o fluxo de caixa da estatal foi o setor de refino”, disse ele. “Vender as refinarias significará um golpe na saúde financeira da Petrobrás”, acrescentou o engenheiro. Para Siqueira, o país inteiro deve se mobilizar para paralisar esse processo criminoso. Leia abaixo a entrevista completa que Fernando Siqueira deu à Hora do Povo.
HP: Quais serão as consequências para a empresa e para o país da venda das refinarias da Petrobrás, como acaba de anunciar o governo?
Fernando Siqueira: As consequências serão as piores possíveis. Principalmente para a saúde financeira da empresa. O presidente da Petrobrás, Roberto Castelo Branco, disse que a estatal precisaria ter apenas 50% do total da capacidade de refino. Que isso seria razoável. Hoje ela tem praticamente 100% do refino. Nenhum grupo privado fez investimentos significativos em refinarias no país. Desde Getúlio, grande parte dos investimentos no parque de refino foram feitos pela Petrobrás. O Brasil refina hoje 2,5 milhões de barris de petróleo por dia, que é, na verdade, toda a sua capacidade de refino. Ou seja, para ampliar o refino é necessário investir em novas refinarias. Estes 2,5 milhões de barris refinados correspondem também hoje praticamente a toda a produção de petróleo do país. Só que as projeções feitas pelo próprio governo são de que o Brasil estará produzindo 5,2 milhões de barris por dia em 2026.
Se fosse sério o que disse o presidente da Petrobrás, eles estariam discutindo com as empresas privadas para que elas investissem na construção de novas refinarias, com vistas a atender à nova capacidade de produção que o país vai atingir. Ou seja, o país precisará dobrar o seu parque de refino, para que não tenha que exportar o óleo bruto, que agrega menos valor. Não é isso o que eles estão fazendo. Estão querendo vender para os grupos privados, na maioria estrangeiros, as refinarias que já existem. Não estão discutindo nenhum aumento da capacidade de refino. Assim, em 2026, as refinarias só poderão refinar um quarto do que será produzido de petróleo no país”.
HP: Então, na sua opinião, os grupos privados não pretendem investir na ampliação do parque de refino?
Siqueira: Nada disso está sendo discutido. Esses grupos só vão adquirir as empresas prontas. E, mais grave ainda. O governo está colocando à venda as refinarias a preço de banana, como tudo o que está sendo vendido da Petrobrás. Nós fizemos um cálculo dos ativos vendidos por Pedro Parente, que renderam aos cofres da Petrobrás US$ 18 bilhões, e chegamos à conclusão de que o prejuízo causado pela queima indiscriminada desses ativos chega a R$ 200 bilhões.
HP: Este é então apenas um ataque à Petrobrás. São medidas que visam reduzir sua capacidade financeira?
Siqueira: É isso mesmo. Nenhuma grande empresa de petróleo no mundo se desfaz de suas subsidiárias. As atividades subsidiárias, como refino, transporte, distribuição de combustíveis e outras, aumentam a lucratividade da empresa. O lucro das refinarias é três vezes maior do que o lucro da produção e venda de óleo bruto. Quem garantiu o movimento de caixa da Petrobrás quando o preço do petróleo caiu foi o refino. É assim que funciona em todo o mundo, quando um setor está em baixa, o outro está em alta e compensa a perda.
HP: Com a Petrobrás isso também ocorre?
Siqueira: Só para você ter uma ideia. Quando o barril de petróleo chegou ao seu nível mais baixo, quando era vendido a US$ 40, foram as subsidiárias que garantiram o fluxo de caixa da estatal. As atividades desses setores são rentáveis. É isso que eles querem passar para os grupos privados. É a sua rentabilidade e a sua lucratividade que serão entregues de mão beijada. Não haverá investimentos novos. Não haverá ampliação da produção. São negociatas, feitas apenas para privilegiar esses grupos.
HP: A venda de ativos não tem como objetivo abater a dívida da empresa?
Siqueira: A nova diretoria da estatal argumenta que a venda da distribuidora faz parte do projeto de desinvestimento, que visa diminuir os prejuízos da Petrobrás nos últimos anos. Esta é outra falácia. A dívida bruta da Petrobrás foi reduzida de US$ 115 bilhões para US$ 69 bilhões nos últimos anos. A venda de ativos, além de trazer os prejuízos, por conta do subfaturamento, melhor dizendo, por conta dos preços aviltados com que estão sendo vendidos, não contribui de forma significativa para a redução da dívida. Do total da redução, 75% correspondem à atividades das subsidiárias. A dívida foi abatida principalmente com os lucros obtidos com as subsidiárias, ou seja, com as refinarias, com a venda de derivados, com a distribuição, etc. Apenas 25% da redução do endividamento se deu pela venda de ativos. Portanto, além de dar prejuízo, a queima de patrimônio só contribuiu com 25% do abatimento da dívida.
Foram vendidos ativos por US$ 18 bilhões. Esses ativos geram caixa, como os campos de Lapa e Iara. Se não tivessem vendido ativos, haveria o mesmo abatimento da dívida. Estamos fazendo esses cálculos e vai dar mais ou menos a mesma coisa porque os campos de Lapa e Iara são poços produtores de 40, 50 mil barris por dia, então estariam gerando caixa para a Petrobrás. A venda dos gasodutos é outro exemplo de prejuízo. A TAG é uma rede de gasodutos que dá um retorno bastante grande, de R$ 7 bilhões de reais no ano passado, venderam por um preço irrisório e a Petrobrás vai alugar a rede e pagar durante 30 anos um valor altíssimo desse aluguel, porque há uma cláusula que diz que usando ou não a sua capacidade máxima, você sempre paga por ela.
HP: Por essas medidas anunciadas, então, o Brasil não vai ampliar sua capacidade de refino?
Siqueira: É o que nós estamos vendo. Parece que o plano do governo é obrigar o Brasil a exportar o petróleo bruto, que é mais barato, e deixar de exportar os derivados, que são mais rentáveis. Aliás, quem vai se apoderar dos campos de petróleo e exportá-lo é o cartel. Como eu disse, se vingar esse plano, em 2026, estaremos com apenas um quarto de refino no país. Aliás esse é também o plano do cartel internacional do petróleo. Da Petrobrás eles querem apenas obter a tecnologia. Vão reduzir as atividades da estatal em todas as áreas. Já estão fazendo isso. Estão reduzindo pessoal. Estão destruindo o Fundo de Pensão dos funcionários da Petrobrás e assim por diante.
HP: Em suma, estão esquartejando a Petrobrás. É isso?
Siqueira: Em 1991, o Banco Credit Swisse First Boston apresentou ao governo Collor um plano de privatização da Petrobrás. Considerando que a Petrobrás era uma empresa emblemática perante a opinião pública, o banco planejou a privatização da empresa via fatiamento. O plano era o seguinte: vender primeiramente as subsidiárias existentes e em seguida dividir a holding em unidades de negócio, transformando-as em novas subsidiárias para privatizá-las.
Collor vendeu a Petrofertil, a Petrominas e a Petroquisa, mas o governo Itamar Franco interrompeu o processo. Fernando Henrique retomou o processo em 1995, nomeou Pedro Parente para o Conselho de Administração da Petrobrás (tendo este chegado à presidência) e, junto com Philippe Reichstul, comandaram o processo de desnacionalização da Petrobrás, que culminou com a mudança do seu nome para Petrobrax.
Eles dividiram a Petrobrás em 40 unidades de negócio para transformá-las em subsidiárias e vender. Por exemplo, cada refinaria seria uma unidade de negócio, cada campo produtor seria uma unidade de negócio a ser vendida. O processo se iniciou com a venda da Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), no Rio Grande do Sul. A privatização seria através de uma troca de ativos com a Repsol da Argentina – a Repsol é uma ex-estatal espanhola comprada pelo cartel do petróleo.
Nessa troca de ativos, visando a privatização, os ativos aportados pela Petrobrás pelo valor de US$ 500 milhões foram avaliados pela AEPET em US$ 2,2 bilhões. Já os ativos aportados pela Repsol, dois dias depois, com a crise argentina, foram contabilizados como US$ 170 milhões e a Petrobrás registrou em balanço um prejuízo de US$ 330 milhões com a operação.
O Sindipetro-RS, assessorado pela Aepet, entrou com uma ação civil pública contra essa troca de ativos e obteve liminar que, um ano depois, foi estranhamente cassada pelo ministro Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A alegação do presidente foi muito estranha: “Não se pode manter essa liminar, pois as partes já investiram muito nesse processo”. Ocorre que, além de não terem gastado nada, a decisão beneficiou os infratores, que não deram a menor importância à liminar e tocaram o processo como se ela não existisse.
Estamos, portanto, regredindo à Era Collor. A Petrobrás pode vender todas as subsidiárias, inclusive as rentáveis, como Liquigás, BR Distribuidora, Transpetro e outras, e perder a sua capacidade de geração operacional de caixa. Ou seja, de pagar suas dívidas.
É bom lembrar que a BR Distribuidora é a segunda maior empresa brasileira, segundo a Revista Exame. Além disso, é a única que tem a visão social de levar combustíveis aos recantos mais longínquos do país.
HP: O que você acha que os brasileiros devem fazer para barrar todo esse processo?
Siqueira: Seguir lutando. Nós da Aepet estamos municiando os parlamentares com nossos estudos e análises sobre o processo de desmonte da Petrobrás. Estamos alertando para o significado disso para o presente e o futuro do Brasil. A Petrobrás é uma empresa estratégica que deve ser defendida com toda a nossa força. Precisamos preservar nossa estatal mais importante. Precisamos retomar os investimentos da empresa.
Vale lembrar que a Noruega saiu da condição de segundo país mais pobre da Europa para a condição de melhor índice de desenvolvimento humano do planeta (IDH) apenas com o seu petróleo, descoberto na década de 1970. Para isso, foi criada uma empresa estatal, denominada Statoil, agora chamada Equinor, que hoje atua em mais de 30 países, tendo, inclusive, comprado o campo de Carcará por cerca de US$ 1,25 por barril. O governo norueguês criou, em 2001, a Petoro, 100% estatal, para gerenciar seus ativos, inclusive petróleo.
Por outro lado, a Nigéria, que descobriu mais reservas do que a Noruega, na mesma época, entregou seu petróleo para a Shell e hoje está na miséria, à beira de uma guerra civil. Algo semelhante ocorre com Angola e Gabão, que também entregaram seu petróleo.
Hoje, a Petrobrás comete a insanidade de vender ativos que rendem mais de 20% ao ano, no mínimo, com o objetivo de amortizar dívidas que custam menos de 7% ao ano (NTS, TAG). Pior ainda, vende esses ativos para depois alugá-los, porque são indispensáveis para a empresa. Pior ainda, esses ativos estão sendo comprados por fundos de pensão canadenses, enquanto a Petros, que passa por dificuldades por ter comprado ativos podres, é impedida de participar dos leilões.
SÉRGIO CRUZ