MARCUS VINÍCIUS DE ANDRADE
Desde os anos 1960, todas as gerações musicais do Brasil (e de várias partes do mundo, por que não?) são tributárias de João Gilberto, pois foram definitivamente marcadas pelo modo suave dele cantar, de tocar violão, de harmonizar sofisticadamente as canções, de brincar com o ritmo das frases musicais, etc. É certo que antes de João já existiam extraordinários cantores de “voz pequena” e intimista, que sabiam explorar o sincopado brasileiro com grande naturalidade: era o caso de cantores (infelizmente pouco conhecidos) como Luiz Barboza, Vassourinha, o grande Mário Reis, ou também de compositores que se arriscavam a cantar, como Noel Rosa, Lamartine Babo, Almirante e outros.
Da mesma forma, já existiam violonistas notáveis, como Garoto e Laurindo de Almeida, que esboçavam a linguagem do moderno violão brasileiro. João Gilberto aprendeu com todos esses artistas. Mas é inegável que foi ele quem, no Brasil, elevou o canto suave e não-empostado ao estado máximo da arte; assim como foi ele quem pegou a harmonização sofisticada dos mestres da música instrumental e traduziu-a para o acompanhamento das canções, fugindo dos acordes “chapados” e convencionais na música brasileira de então.
Para quem tocava violão nos anos 1960, ouvir João Gilberto era um desafio, pois os acordes que ele usava em sua música não eram encontrados como “posições” nos métodos tradicionais do instrumento e, já que não eram acordes prêt-à-porter, precisavam ser concebidos um a um, agregando dissonâncias e alterações que exigiam digitação própria. Isso enlouquecia os executantes tradicionais, mas foi fundamental para que se construísse o que é hoje reconhecido no mundo como o violão brasileiro moderno.
Lembro que, nos anos 1980, eu e Maurício Tapajós fomos convidados para apresentações no Festival da Canção Política, na então chamada Berlim Oriental: fizemos cerca de oito ou nove concertos e, em todos eles, fomos insistentemente clicados por um fotógrafo meio louco que tirava closes seguidos de cada trecho de nossas execuções. Começamos a achar que era um “perigoso espião” (rsrsrs), mas logo fomos informados que o fotógrafo tinha a incumbência de clicar cada momento de nossos dedos sobre o braço dos instrumentos, pois aqueles acordes estranhos (joãogilberteanos) que nós tocávamos não existiam nos métodos locais e eles desejavam publicar as partituras das obras que executamos no Festival, o que realmente foi feito.
A modernidade brasileiríssima daqueles acordes revelava outra virtude da música de João Gilberto: demonstrar que o nacionalismo musical não está obrigatoriamente atrelado aos tradicionalismos sonoros, aos valores estéticos eminentemente artesanais ou passadistas. João Gilberto é prova disso: mesmo trabalhando na vanguarda, mesmo buscando uma linguagem inovadora e instigante, sua música jamais deixou de ser brasileira até a medula, embora ao começo de sua carreira muitos críticos negassem isso.
Foi no dia 31 de dezembro de 1971 que encontrei João Gilberto pela primeira vez. Eu estava embarcando num voo para o Recife, onde iria casar-me no comecinho do ano. Ainda no ônibus que nos levaria ao avião, eu e aquela que seria minha mulher vimos chegar um passageiro atrasado e esbaforido, que sentou-se junto da gente. De início não o reconheci, mas logo a ficha caiu e eu o abordei, no melhor estilo Alceu Valença: “Véi, dá licença? Você é o João Gilberto?” Embora meio desconfiado com a abordagem, ele confirmou. Identifiquei-me como compositor, o gelo foi quebrado e ele me falou que precisava conversar e relaxar pois não se sentia muito bem em aviões. E logo em seguida confessou: “- Estou vindo direto de Nova York porque perdi por lá a minha carteira de identidade. Estou indo pra Bahia tirar uma nova, pois carteira de identidade pra mim tem de ser baiana.”
Desnecessário dizer que o voo foi uma descontração só: sendo o último dia do ano, a eufórica tripulação liberou bebidinhas e comidinhas; além do que encontramos, já embarcados no avião, ninguém menos que Vinicius de Moraes, Toquinho, Danuza Leão e outros amigos, que desceram em Salvador junto com o João. Segui para o Recife, mas na minha cabeça ficou martelando só um pensamento: como questionar a brasilidade de um homem que sai de Nova York para vir tirar uma carteira de identidade na Bahia?
Esse era o João Gilberto. Que agora deve estar exibindo sua carteira de identidade baiana lá em cima, onde dizem que ela faz o maior sucesso.