CARLOS LOPES
(HP 30/06/2006)
Em 1991, quando se tentava, mais uma vez, promover Jung a “ícone” da psicologia e – ai de nós – da cultura, publiquei, aqui no HP, um artigo, “O cientista Freud e o charlatão Jung”. Como sempre, o objetivo da promoção midiática de Jung era atingir Freud e suas ideias, ou seja, a ciência e a cultura que se tornaram incompatíveis com o atual estado de apodrecimento do capitalismo monopolista.
Aquela onda de estupidez passou rapidamente. Mas, como seria inevitável, e será até que a Humanidade consiga livrar-se daquele regime que alguém já chamou, com justa razão, “cadáver insepulto”, apareceu mais uma tentativa, na mesma direção. Na “Folha de S. Paulo” do último domingo, uma profissional do lucrativo ramo americano das biografias, em uma descomunal entrevista, anuncia que conseguiu, finalmente, reabilitar Jung. Não nos estenderemos aqui sobre algumas questões pessoais abordadas pela biógrafa na entrevista, apesar delas revelarem nitidamente o caráter do biografado: a autora, por exemplo, apresenta o deprimente episódio em que Jung, durante vários anos, forçou a esposa e os cinco filhos a conviverem na mesma casa com uma de suas amantes, como prova da grandeza, e não da submissão – que a custo suportavam – das duas mulheres… Quanto ao “respeito” que ela diz que seu biografado sentia por Freud, o leitor poderá constatar essa espécie esquisita de respeito no capítulo das memórias (“Memórias, Sonhos, Reflexões”) de Jung dedicado a Freud. Ao que parece, ela confundiu despeito com respeito.
Preferimos, aqui, abordar a peculiar tentativa de absolver Jung por sua colaboração com os nazistas, apesar das “900 cartas”, que, segundo a própria biógrafa, ele trocou com os capos hitleristas. Diz ela que tudo isso se deve ao fato de Jung ter sido um agente aliado, isto é, americano. Diga-se de passagem, transcorridos mais de 70 anos, nem o establishment americano, que Jung passou a bajular depois da II Guerra – recebendo em troca a farta promoção de sua mídia -, reivindicou tal associação com Jung durante o nazismo. E não apenas porque é mentira (o que não seria obstáculo para o establishment americano), mas porque os fatos são demolidores.
Vamos a eles: em 1933, depois de colocar na cadeia, em campos de concentração ou no exílio os psicanalistas e uma boa parte dos psiquiatras alemães, os nazistas resolveram fundar uma nova entidade, a Nova Sociedade Alemã de Psicoterapia. O encarregado de organizá-la foi um certo dr. M.H. Goering, cujo sobrenome dispensa maiores explicações sobre seu parentesco. Esse Goering conseguiu, a princípio, colocar na presidência dessa entidade de fancaria um dos maiores nomes da psiquiatria alemã e mundial, Ernst Kretschmer. No entanto, para a salvação de sua honra, Kretschmer renunciou ao cargo logo em seguida, e os nazistas não tinham ninguém na Alemanha, com alguma fama ou, que seja, respeitabilidade, para substituí-lo.
Foi nessa hora que recorreram a Jung. Este não era alemão, mas suíço. Não estava, portanto, mesmo que fosse por covardia, obrigado a aceitar a presidência de uma entidade alemã. No entanto, Jung acorreu pressuroso a assumir o lugar que os nazistas lhe ofereceram. Fez mais: assumiu também a direção do órgão oficial da entidade, a revista “Zentralblatt für Psychoterapie”, desde o primeiro número, no qual constava um editorial, escrito pelo dr. Goering, definindo os objetivos da publicação: “Esta Sociedade tem a tarefa de unir todos os médicos alemães dentro do espírito do governo nacional-socialista… particularmente os médicos que estejam dispostos a praticar a psiquiatria de acordo com a ‘Weltanschauung’ [visão de mundo, ou seja, ideologia] dos nacionais-socialistas” (Zentralblatt für Psychoterapie, 1933, cit. Alexander e Selesnick, “História da Psiquiatria”, 2ª ed., Ibrasa, 1980, pág. 519).
RACISMO
O cargo de Jung não era formal nem “honorífico”. Na mesma edição em que o dr. Goering expôs os edificantes objetivos de sua entidade, Jung publicou um artigo em que celebra, a seu conhecido modo, o triunfo da ciência e dos seus paladinos, os nazistas: “As bem conhecidas diferenças factuais entre a psicologia germânica e a psicologia judaica não devem mais ser obscurecidas, o que só pode beneficiar a ciência” (idem).
Não é preciso demonstrar o escandaloso racismo. Basta acrescentar que Jung sabia que Freud, apesar de sua origem judaica, sempre se considerou um “intelectual de língua alemã” – e sempre considerou a psicanálise como uma aquisição de toda a Humanidade. Porém, mais do que tudo, Jung, que não estava debaixo da censura alemã à imprensa, sabia perfeitamente da perseguição nazista aos judeus – nos quais Hitler, nessa época, incluía também os comunistas, os psicanalistas e os democratas em geral.
Apesar disso, ele fez um particular esforço para enfatizar as “diferenças” entre a “psicologia germânica” e a “psicologia judaica” (ou seja, a psicanálise de Freud) e, portanto, ajudar os nazistas a eliminarem os psicanalistas da Alemanha. No segundo número da mesma revista, Jung publicou um artigo intitulado “A situação atual da psicoterapia”. Nele, além de também verberar contra a “teoria judaica” de Adler – que, além de médico e psicólogo, era um social-democrata austríaco – acusa a psicanálise de “atingir o paciente em seu ponto vulnerável e dessa maneira obter facilmente superioridade”. Em seguida, amplia essa falsificação do método de Freud, falsificando os seus fundamentos: “Existem realmente pessoas decentes que não são impostoras e que não usam ideais e valores para o embelezamento de sua personalidade inferior. Tratar tais pessoas redutivamente [ou seja, remontar às fontes infantis que baseiam a sua personalidade, como Freud] e atribuir a elas motivos inconfessáveis e suspeitar que por trás de sua pureza natural existe sujeira antinatural é não só pecaminosamente estúpido, mas também criminoso” (grifos nossos).
Grifamos o último trecho porque nele Jung está não somente endossando, mas justificando a perseguição e o ódio dos nazistas a Freud, aos psicanalistas e a todos aqueles que levaram em conta as descobertas da psicanálise. Afinal, como se devem tratar os “criminosos”? Quanto aos nazistas, estes são dotados, segundo Jung, de “pureza natural”. Não entraremos aqui na caracterização que Jung faz do inconsciente como “sujeira antinatural”. Nem naquilo que significa, do ponto de vista da repressão sexual – e do reacionarismo verdadeiramente medieval -, o uso da palavra “pecado” (pecaminosamente) para referir-se aos seus adversários. Afinal, não será difícil ao leitor, diante do que vem a seguir, perceber a quem é que cabiam os mencionados “motivos inconfessáveis”. Portanto, também não será difícil perceber onde estava a “sujeira antinatural” e o sentimento de culpa inseparável dos pecadores, ainda que, neste caso, pusilanimemente negado e distorcido.
Levando a cabo sua promessa de distinguir (aliás, “iluminar” – ou “não obscurecer”, o que é a mesma coisa) as diferenças entre a “psicologia germânica” e a “psicologia judaica”, Jung continua: “Os judeus têm esta semelhança comum com as mulheres: sendo fisicamente mais fracos, precisam visar as brechas nas defesas do adversário e, devido a essa técnica que lhes foi imposta através dos séculos, os judeus têm as melhores defesas onde outros são vulneráveis. (….) Devido à sua antiga cultura são capazes, de maneira perfeitamente consciente, mesmo no ambiente mais amistoso e tolerante, de entregar-se aos seus próprios vícios, enquanto nós somos jovens demais para não termos ‘ilusões’ a nosso próprio respeito” [grifo nosso. As aspas em “ilusões” são de Jung].
Os nazistas têm, portanto, toda a razão em querer eliminar esses elementos nocivos, que perpetram seus crimes “de maneira perfeitamente consciente”, apesar do “ambiente mais amistoso e tolerante” que, sem dúvida, Hitler, Goebbels e outros estavam proporcionando a eles. De passagem, é muito sintomático o conceito que Jung, no trecho acima, manifesta sobre as mulheres.
Porém, há mais, e o leitor nos perdoará as citações, inevitáveis apesar do nosso empenho em reduzi-las. Jung, com a estupenda coragem e descortínio que o caracterizava, faz também um elogio à barbárie, o que, para os nazistas, deve ter soado como o canto das valquírias: “O inconsciente ariano tem um potencial mais elevado que o judaico; isto é a vantagem e a desvantagem de uma juventude que está ainda mais próxima do barbarismo”.
Porém, não se pense que ele faz afirmações sem fundamentá-las. Isso é coisa para Rosenberg, Himmler e outros elementos pouco sofisticados. Jung, jamais. Portanto, mãos á obra em travestir o “Mein Kampf”, e suas charlatanices repulsivas, como a suposta raça “ariana”, com uma fantasia pseudo-científica: “A mente inconsciente do ariano contém tensões e elementos criativos a serem realizados no futuro [certamente, quando os nazistas dominarem o mundo]. É perigoso e não permissível desvalorizar essas forças criativas como romantismo da infância [isto é, como objeto de interpretação da psicanálise – realmente, algo muito perigoso para os nazistas. Logo, tem que ser proibido, isto é, tem que ser “não permissível”].
Freud chamou a nova teoria de Jung, formulada após 1911, de “metafísica obscura”. Provavelmente, uma injustiça que Freud cometeu contra a metafísica. Nem todo metafísico é tão débil mental assim. Porém, quanto ao obscurantismo, faça-se justiça: o sábio vienense acertou em cheio. A ver o seguinte trecho da ciência junguiana: “Em minha opinião, foi um erro da psicologia médica até agora existente aplicar inadvertidamente as categorias judaicas (….) aos alemães e eslavos cristãos [quem são esses eslavos “cristãos”? Obviamente, os que não são comunistas. Esses últimos, certamente, devem ser tão inferiores quanto os judeus]. O mais valioso segredo da personalidade alemã, sua alma intuitivamente criativa, foi declarado como um charco banal e infantil”.
Porém, não se pense que ele é um racista, isto é, como se dizia na época, “anti-semita”. Ele sabia que isso, como se diz, pegava mal entre os cientistas. Não, racista, jamais! E se alguns o tratam como racista apenas por causa dos seus escritos racistas, a culpa não é dele. Então, de quem é? Ora, o culpado só pode ser Freud, evidentemente. O mesmo Freud que o indicou para presidente da Internacional psicanalítica, que foi traído por ele, e que seria poupado do destino que os nazistas lhe reservavam somente após uma campanha internacional para que fosse permitido que deixasse Viena para o exílio em Londres.
Basta reproduzir as palavras de Jung: “…minha voz de advertência foi suspeita de anti-semitismo. Esta suspeita originou-se em Freud. Ele conhecia tão pouco a alma alemã quanto seus idólatras alemães. Não terão eles aprendido alguma coisa com o poderoso aparecimento do Nacional-socialismo, para o qual o mundo inteiro olha cheio de espanto: onde estava a tensão e o ímpeto sem precedentes quando o Nacional-socialismo ainda não existia? Estavam escondidos na alma alemã, em seu fundo, que pode ser tudo menos uma lata de lixo para desejos infantis não satisfeitos e ressentimentos familiares não resolvidos. Um movimento que toma conta de toda uma nação deve ter se tornado predominante em cada pessoa”.
NACIONAL-SOCIALISMO
De onde se conclui que o alemão que não fosse “nacional-socialista”, isto é, nazista, deveria ser uma aberração a ser combatida e eliminada da face da Terra.
Os psiquiatras e psicanalistas Franz Alexander – um dos perseguidos pelo nazismo – e Sheldon Selesnick, formularam a questão: Jung era um nazista? (“História da Psiquiatria”, pág. 522), chegando à conclusão de que se tratava apenas de um “oportunista”. O que, aliás, é coerente com sua carreira posterior de áulico da casta dominante dos EUA. Resta acrescentar que, nesse caso, isso é um agravante. Um oportunista – ou seja, um bajulador e endossador dos crimes nazistas meramente por interesses mesquinhos – é mais repulsivo ainda do que um nazista.
Facil criticar Jung em 2006 (ano em que isso foi escrito)!!!! Queria ver essa coragem toda do Carlos Lopes pra encarar nazistas em plena ascensao em 1933 !!!!!!!!!!!!!! A proposito, Freud se mandou pra Inglaterra em 1938 e levou até o cachorro da familia. Mas deixou para tras, numa Viena ocupada por nazistas, quatro das irmãs que imploraram para que ele as levassem tambem. As 4 irmas de Freud foram mortas em campos de concentração. Bora julgar Freud ou compreender que, naquele estado de terror, Freud e Jung fizeram o que foi possivel?
Inacreditavel esse amargor de parte dos discipulos de Freud contra Jung porque este teve a coragem de se afirmar perante o mestre e seguir seu proprio caminho.
E nao seria esse o objetivo da psicanalise? Crescer e cortar o cordao com o “pai”?
Discipulos de Freud precisam crescer e soltar a mao do papai.
Nosso jornal não é um jornal religioso. Como todos os adeptos de Jung, você substitui a ciência pela religião e acha que temos obrigação de seguir o seu culto. Nem o filo-nazismo de Jung parece fazer você pensar. Mas essa é uma opção sua. Agora, não nos venha exigir que adotemos o mesmo esgoto intelectual.
É fácil, nesse caso, desmentir a inverdade repetida e repetida (como se a repetição tornasse, realmente, algo verdadeiro – no máximo tem algum efeito psicológico na massa) por alguns poucos- no século passado o número foi maior – psicanalistas ressentidos de que Jung foi nazista, morria de amor por Hitler, era o demônio e o escambau. E nem venha com o papinho boboca de “culto a Jung”, pois, apontar a má vontade hermenêutica (extremo oposto da caridade hermenêutica?), a má vontade em compreender contextos de dados eventos, a parcialidade gritante ao considerar os dados e as informações (ou seja, levar em conta apenas um recorte que caiba bem em sua visão – de partida já cultuada como Verdade) não significa culto algum, apenas seriedade, razoabilidade e exatidão. Em pleno século 21 espanta ainda haver suposto psicanalista (nem Freud ficou prestando-se a baixezas assim) com tais vícios intelectuais e repetindo chavões carcomidos, frutos da bílis.
Pelo jeito, você não entendeu a matéria. O que nos interessa é a ciência – e, na ciência, a verdade histórica -, não a religião, muito menos a sua religião. Você, naturalmente, tem direito a ela, como todo cidadão tem direito, se quiser, a ter a sua religião. No entanto, não tem direito a nos impor essa religião, só porque acredita nela. Menos ainda quando confessa que sua crença é unilateral, a tal ponto que considera essa crença, por si só, uma prova de “seriedade, razoabilidade e exatidão”. Depois disso, não precisamos provar mais nada. Ainda bem que não estamos sozinhos – como você mesmo confessa, inadvertidamente, em sua frase final. Quanto a Freud, você deveria lê-lo, pois parece que não o fez. Especialmente as observações sobre Jung em “A história do movimento psicanalítico” (no volume 14 da Edição Standard) e em “Um estudo autobiográfico” (no volume 20 da Edição Standard).