A discussão sobre a portaria do ministro Sérgio Moro para a “deportação sumária de pessoas perigosas” mesmo sem decisão judicial, produziu um novo jurista. Segundo Bolsonaro, o jornalista Glenn Greenwald, que não pode ser deportado, mesmo com essa portaria, “talvez pegue uma ‘cana’ aqui no Brasil, não vai pegar lá fora não”.
Greenwald respondeu que “ao contrário dos desejos de Bolsonaro, ele não é (ainda) um ditador. Ele não tem o poder de ordenar pessoas presas. Ainda existem tribunais em funcionamento. Para prender alguém, tem que apresentar provas para um tribunal que eles cometeram um crime. Essa evidência não existe”.
É verdade. O que torna a portaria de Moro – que tem o número 666 – mais estúpida, pois é um retorno à República Velha, sem que haja nenhuma lei que permita deportações sumárias, deportações sem que a Justiça decida pela extradição.
Moro está, aliás, em frenesi histérico (v. Por que Moro quer destruir as provas do “hackeamento”?).
O motivo é que a prisão de um grupo, em Araraquara, que, supostamente, foi a fonte de Glenn Greenwald para publicar as mensagens entre Moro e Dallagnol, deixou o ex-juiz e atual ministro na borda de um precipício público: pois, em breve, tudo indica, será confirmado que as mensagens publicadas são verdadeiras.
Enquanto isso, ele tenta dizer a Deus e ao Diabo – sobretudo ao último – que eles também foram “hackeados”.
Com que base?
O DEPOIMENTO
Diz o pedido da Polícia Federal (PF) para a prorrogação da prisão temporária do grupo preso em Araraquara:
“… somente após a extração pelo INC/PF [Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal] do conteúdo do material apreendido, atividade que será realizada nas próximas 48 horas, será possível à equipe policial da DICINT/DIP confirmar se de fato WALTER DELGATTI NETO conseguiu invadir dispositivos telemáticos de outras pessoas, que seriam vítimas de interceptação ilegal de suas comunicações.”
O pedido é datado do dia 26/07, sexta-feira.
Se é assim, como é que Moro disparou uma série de telefonemas e declarações sobre o suposto “hackeamento” de quase todo mundo, nos Três Poderes, em Brasília, na quarta-feira e na quinta-feira?
Vejamos a questão mais de perto.
Quais são as pessoas que a PF considera, de acordo com o depoimento de Delgatti, que tiveram suas comunicações interceptadas?
A primeira é o promotor Marcel Zanin Bombardi, que denunciou Delgatti por tráfico de drogas.
Delgatti planejava uma vingança contra o promotor Zanin. Desistiu, mas:
“… através da agenda da conta do Telegram do promotor Marcel Zanin, teve acesso ao número de um procurador da República, cujo nome não se recorda, o qual participava de um grupo do Telegram denominado ‘VALORIZA MPF’;
“… através da agenda da conta Telegram de um dos procuradores da República que participava do grupo “VALORIZA MPF” conseguiu acesso ao número telefônico do deputado federal Kim Kataguiri;
“… através da agenda do Telegram do deputado federal Kim Kataguiri obteve o número do Ministro do STF Alexandre de Moraes;
“… do mesmo modo, teve acesso ao código da conta do Telegram vinculada ao Ministro do STF Alexandre de Moraes e obteve o número telefônico do ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot;
“… por meio da agenda do Telegram de Rodrigo Janot obteve então os telefones de membros da Força Tarefa da Lava Jato no Paraná, dentre os quais os procuradores da República Deltan Dallagnol, Orlando Martello Júnior e Januário Paludo;
“… todos os acessos às contas do Telegram das autoridades públicas acima mencionadas ocorreram entre março e maio de 2019;
“… através da agenda do Telegram do procurador Deltan Dallagnol teve conhecimento do número de telefone utilizado pelo ministro Sérgio Moro;
“… obteve o código do Telegram e criou uma conta no aplicativo vinculada ao número telefônico do ministro Sérgio Moro;
“… também através da agenda do procurador Deltan Dallagnol teve acesso aos números telefônicos de membros do TRF2, tais como o desembargador Abel Gomes e o juiz federal Flávio [Lucas];
“… não obteve nenhum conteúdo das contas de Telegram do ministro Sérgio Moro e dos magistrados federais do Estado do Rio de Janeiro;
“… em um domingo, mais precisamente na comemoração do Dia das Mães de 2019, procurou o jornalista Glenn Greenwald para enviar o conteúdo das contas do Telegram dos procuradores da República Deltan Dallagnol, Orlando Martello Júnior, Diogo Castor e Januário Paludo;
“… resolveu procurar o jornalista Glenn Greenwald por saber de sua atuação nas reportagens relacionadas ao vazamento de informações do governo dos EUA, conhecido como o caso Snowden;
“… conseguiu telefone do jornalista Glenn Greenwald através da ex-candidata Manuela d’Ávila;
“… obteve o telefone de Manuela d’Ávila através da lista de contatos do Telegram da ex-presidente Dilma Rousseff;
“… por sua vez conseguiu o telefone da ex-presidente Dilma Rousseff através da lista de contato do Telegram do ex-governador Pezão;
“… não tentou fazer o acesso a conta de Telegram de nenhuma outra autoridade pública além daquelas citadas anteriormente no presente termo;
“… não acessou a conta do Telegram da deputada federal Joice Hasselmann, do Ministro da Economia Paulo Guedes ou de qualquer outra autoridade do atual Governo Federal”.
A LISTA
Então, considerando o depoimento acima, quais as pessoas que a PF confirmou que tiveram suas comunicações invadidas, através das falhas do programa “Telegram”?
As seguintes:
1) promotor Marcel Zanin;
2) deputado federal Kim Kataguiri;
3) ministro do STF Alexandre de Moraes;
4) ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot;
5) procurador Deltan Dallagnol;
6) procurador Orlando Martello Júnior;
7) procurador Januário Paludo;
8) ministro Sérgio Moro;
9) desembargador Abel Gomes;
10) juiz federal Flávio Lucas;
11) procurador Diogo Castor;
12) ex-deputada Manuela d’Ávila;
13) ex-presidente Dilma Rousseff;
14) ex-governador Pezão.
Ao todo, 14 pessoas – e, talvez, mais alguns procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato – que cobrem um amplo espectro, que vai da combativa ex-deputada Manuela d’Ávila até Kim Kataguiri, Sérgio Moro, Dilma Rousseff e Pezão.
Entretanto, não há mais do que isso, o que é reafirmado no pedido da PF para a prorrogação – aceita pelo juiz Vallisney Oliveira – da prisão temporária.
Pelo contrário, por enquanto, o que existe é uma declaração peremptória, no depoimento de Delgatti:
“… não tentou fazer o acesso à conta de Telegram de nenhuma outra autoridade pública além daquelas citadas anteriormente no presente termo.”
Pode ser que Delgatti esteja mentindo, mas é necessário provar que ele está mentindo. Algo que Moro não se preocupou em fazer, em suas declarações de que, além dele, teriam sido “hackeados” o presidente da República, os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente do STJ, a procuradora-geral da República, o ministro da Fazenda, a líder do governo no Congresso – ao todo, cerca de mil pessoas.
AVENIDA
Em Araraquara, o que se conhece de Delgatti, e dos outros presos, é que ganhavam dinheiro vendendo drogas em baladas. Foi o que nós ouvimos na ensolarada cidade.
Delgatti não tem qualquer emprego ou profissão.
A capacidade informática deles era, até onde pudemos averiguar, desconhecida daqueles que tinham com eles algum contato.
Entretanto, algo ficou mais claro a partir do depoimento de Delgatti: não houve um verdadeiro “hackeamento”.
Não é uma questão desprezível, pois torna mais inteligível o quadro.
Até a divulgação do depoimento de Delgatti, era um mistério como um grupo de pequenos marginais, usando um sistema operacional convencionalíssimo, sem nenhuma habilidade de programação, ou formação técnica em informática, conseguira invadir dispositivos eletrônicos e “puxar” dados – mensagens – de seus proprietários.
Por isso, nos pareceu que a história devia ser outra – ou que os presos estavam servindo para encobrir algo ou alguém.
No entanto, a nota da ex-deputada Manuela d’Ávila, confirmando a declaração de Delgatti, de que ele entrara em contato com ela, que o encaminhou a Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, acrescentou um elemento que não podemos ignorar (v. Manuela confirma informação que Walter Delgatti deu à PF).
A descrição de Delgatti sobre como encontrou uma “técnica” para invadir celulares e outros dispositivos simplifica a questão.
Por essa descrição, é evidente que eles (ou, aliás, ele, pois, segundo o seu depoimento, os outros três, que foram presos, não participaram e “em nenhum momento repassou para eles a técnica que criou para acessar contas do Telegram”) apenas usaram uma porta aberta pelo programa Telegram – algo que, segundo especialistas na matéria, nem se pode chamar de “debilidade”, pois essa abertura é intrínseca ao programa.
Ou seja, Delgatti não teve o trabalho de “hackear” nada. Apenas encontrou uma avenida que já existia – e entrou por ela, do jeito mais amador possível.
SEM EDIÇÃO
O que é possível concluir do caso, nessa altura dos acontecimentos?
Primeiro, que Delgatti, apesar de seus antecedentes, acabou prestando um grande serviço, ao fornecer as mensagens de Moro e Dallagnol (as outras não têm grande – por vezes nenhuma – importância) a Glenn Greenwald.
Se não fosse isso, o público não conheceria, em sua crueza, o atual ministro da Justiça e seu carreirismo.
A segunda é que Greenwald estava falando a verdade, quando disse que sua fonte era anônima. Como diz Delgatti em seu depoimento:
“… começou a repassar para Glenn Greenwald os conteúdos das contas de Telegram que havia obtido;
“… como o acervo era muito volumoso, optou, juntamente com Glenn Greenwald, alterar o método de envio do material;
“… assim, criou uma conta no Dropbox, enviou o material e repassou a senha para Glenn Greenwald;
“… em nenhum momento passou seus dados pessoais para Glenn Greenwald;
“… Glenn Greenwald ou qualquer jornalista de sua equipe conhece o declarante;
“… nunca recebeu qualquer valor, quantia ou vantagem em troca do material disponibilizado ao jornalista Glenn Greenwald;
“… o material disponibilizado a Glenn Greenwald foi obtido exclusivamente pelo acesso a contas do Telegram”.
A terceira é que, depois de todas essas peripécias (é o termo que nos ocorre, leitor) a veracidade das mensagens não foi afetada em absolutamente nada.
Em seu depoimento, Delgatti faz uma consideração sobre isso:
“… pode afirmar que não realizou qualquer edição dos conteúdos das contas de Telegram das quais teve acesso;
“… acredita não ser possível fazer a edição das mensagens do Telegram em razão do formato utilizado pelo aplicativo”.
Eis alguma coisa que, até agora, não foi contestada.
E, pelo frenesi de Moro, deve ser verdade.
C.L.
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