Ruth de Souza faleceu no domingo (28/07) aos 98 anos.
Talvez a maior parte dos jovens de hoje ignorem o que era e o que representou esta mulher – esta atriz – para a vida nacional, em especial para a nossa cultura. Não estamos lamentando – se os jovens ignoram, é porque ninguém disse a eles.
Muitas vezes, Ruth se queixou, e com razão, de que os papéis reservados às atrizes negras eram sempre papéis secundários – de criadas ou empregadas domésticas.
Num país onde o povo, em seu conjunto, não é branco, era uma aberração.
Mas ninguém mais – nenhuma atriz – fez mais para que essa situação fosse superada do que ela mesma: Ruth de Souza.
Ela começou sua trajetória no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento em 1944.
Lembra Abdias que Ruth era, até então, e realmente, quando entrou para o TEN, empregada doméstica (v. Abdias do Nascimento, Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões, Estudos Avançados, vol.18, nº 50, S. Paulo, Janeiro-Abril/2004, p. 211).
Tornou-se uma das maiores atrizes da História do país.
Ela fez parte da primeira encenação do Teatro Experimental do Negro, a de “O imperador Jones”, de Eugene O’Neill, levada ao palco no Teatro Municipal do Rio, em 8 de maio de 1945, por decisão expressa do presidente Getúlio Vargas (nas palavras de Abdias: “Infelizmente, as circunstâncias não permitiram a repetição daquele espetáculo, pois o palco do Teatro Municipal havia sido concedido ao TEN por uma única noite, e assim mesmo por intervenção direta do Presidente Getúlio Vargas, num gesto no mínimo insólito para os meios culturais da sociedade carioca”).
Mas essa encenação única foi um sucesso estrondoso. Até porque, a maioria dos críticos de teatro, como escreveu Ascendino Leite, esperava um fracasso. Pelo contrário, foi um sucesso extraordinário de atores que jamais haviam pisado em um palco – e de um diretor, o próprio Abdias, que jamais dirigira uma peça teatral.
Com a colaboração do autor, Eugene O’Neill, que, atendendo pedido de Abdias e do elenco, dispensou seus direitos autorais para que o TEN montasse sua peça.
Porém, a revelação de Ruth de Souza como grande atriz foi em “O Filho Pródigo”, de Lúcio Cardoso, também no TEN – e, sobretudo, em “Oração para uma Negra”, de Faulkner, montagem de Sérgio Cardoso em 1959.
Muito antes disso, no entanto, ela passara a ser, também, uma atriz de cinema, em Terra Violenta, de 1948, baseado em Terras do Sem Fim, de Jorge Amado.
Se tivéssemos de escolher qual a participação mais inesquecível de Ruth no cinema, talvez escolhêssemos a Judite do filme de Roberto Farias, O Assalto ao Trem Pagador.
Mas não é fácil essa escolha, para uma atriz que percorreu 70 anos do cinema brasileiro.
Ruth tornou-se a principal atriz negra do país no teatro, no cinema e na televisão – onde apareceu em quase três dezenas de telenovelas, sempre com uma dignidade e talento notáveis.
Este breve necrológio não tem o objetivo de resumir toda a vida de Ruth de Souza. Antes, é a nossa homenagem, bastante modesta, a uma grande mulher e a uma grande artista.
Sobretudo alguém que deu ao nosso povo um rosto – no teatro, no cinema e na televisão.
A arte de Ruth foi, nesse sentido, uma condensação do Brasil real, aquele que, segundo Machado, é tão oposto ao Brasil oficial.
C.L.