O acordo INF eliminou durante três décadas o risco de guerra nuclear na Europa ao banir do teatro europeu 2.665 mísseis dos dois lados com ogivas nucleares. Acordo foi possível em 1987 após manifestações em vários países
O Tratado INF de eliminação de mísseis terrestres de alcance intermediário e de curto alcance expirou oficialmente na sexta-feira (2), transcorridos os 180 dias desde que os EUA formalizaram sua retirada em fevereiro, forçando a Rússia a fazer o mesmo.
Assinado em 1987 por Reagan e Gorbachev, o acordo eliminou durante três décadas o risco de guerra nuclear na Europa ao banir do teatro europeu 2.665 mísseis dos dois lados com ogivas nucleares.
Alcançado após grandes manifestações na Europa contra a iminente ameaça nuclear, o acordo proibiu aos dois signatários o uso e produção de mísseis balísticos e de cruzeiro lançados do solo, com alcance de 500 a 5.500 quilômetros.
Como disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, assim que a saída dos EUA do INF foi anunciada, “o mundo vai ficar mais perigoso”.
A propósito, não é o primeiro tratado de grande alcance internacional do qual o governo Trump se retira, havendo ocorrido antes o abandono do Tratado do Clima de Paris e do Acordo Nuclear 5 + 1 com o Irã.
2 MINUTOS PARA O ARMAGEDON
Com a extinção do Tratado INF, e passados 18 anos da saída unilateral dos EUA do Tratado Antimísseis ABM, a estrutura de prevenção de uma hecatombe nuclear está prestes a ser demolida por Washington até fevereiro de 2021.
Já que, conforme o conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, “não há perspectiva” de prorrogação do Tratado New Start – que limita em 1550 o total de ogivas nucleares e mísseis intercontinentais que EUA e Rússia detêm, e é o último ainda em vigor da arquitetura internacional de controle de armas construída a duras penas durante a Guerra Fria.
O início do desmantelamento, sob o governo de W. Bush, com a retirada unilateral do Tratado ABM de 1972, também foi realizado sob supervisão do maníaco de guerra Bolton.
A Casa Branca deliberadamente se dirige “ao desmantelamento real do sistema de controle de armas existente”, advertiu Moscou.
A chancelaria russa acrescentou que a retirada dos EUA do Tratado INF confirma que Washington começou “a destruir todos os acordos internacionais que não lhe convém por um motivo ou outro”.
“No famoso relógio simbólico que mostra o tempo que resta até o conflito nuclear, infelizmente passamos mais um minuto em direção à meia-noite”, disse o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Ryabkov, em entrevista à RT.
Ele acrescentou que “embora o presidente Trump esteja dizendo que não há sentido em uma corrida armamentista, isso vai continuar”. O chamado ‘Relógio do Juízo Final’, mantido pela Federação Americana de Cientistas desde 1953, está marcando “dois minutos para a meia noite”.
APREENSÃO NA EUROPA
É grande a apreensão na Europa sobre o fim do Tratado INF do qual, como apontou a chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini, foi a “principal beneficiária” – e, portanto, “quem tem mais a perder”.
Mogherini se referiu aos tempos em que “éramos considerados um campo de batalha, o terreno no qual as superpotências se enfrentavam”, “não queremos nem pensar que a coisa possa regredir”. No auge da Guerra Fria, a presença desses milhares de mísseis nucleares transformava boa parte das capitais europeias, inclusive Berlim ou Moscou, em alvos em torno de oito minutos, o que levou a grandes manifestações pela paz e pelo desarmamento.
O ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, alertou que “com o fim do Tratado INF, a Europa está perdendo parte de sua segurança”. “Estou convencido de que hoje precisamos novamente concordar com regras sobre desarmamento e controle de armas para impedir uma nova corrida armamentista nuclear”, acrescentou.
O chanceler belga, Didier Reynders, lamentou o fim do Tratado INF e conclamou Washington e Moscou a um “diálogo construtivo” para “um acordo sobre medidas de estabilização”. Na Bélgica, assim como na Holanda, Alemanha, Itália e Turquia, estão implantadas – aliás em violação do Tratado de Não-Proliferação – bombas nucleares dos EUA. O que torna o país alvo certo em casa de guerra.
MORATÓRIA RUSSA
O presidente russo Vladimir Putin já afirmou publicamente que a Rússia não implantará mísseis terrestres de médio alcance “nem na Europa, nem em qualquer outra região do mundo, desde que uma arma similar feita pelos EUA não apareça lá”.
O vice-ministro das Relações Exteriores, Sergei Ryabkov, advertiu que os EUA serão responsáveis por uma possível corrida armamentista, uma vez que a Rússia introduziu uma “moratória unilateral no emprego desse tipo de arma”. Segundo ele, se Washington não aderir à mesma política, Moscou será forçado a abandonar essa decisão.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo instou Washington a evitar o agravamento da já difícil situação no mundo, abstendo-se da implantação de mísseis de médio alcance e de alcance mais curto, cujo desenvolvimento já foi relatado pela mídia. “Caso contrário, toda a responsabilidade pelo crescimento das tensões no mundo cairá sobre Washington”.
O secretário-Geral da Otan, Jens Stoltenberg, cargo honorário, já que quem manda mesmo é um general do Pentágono sob ordens da Casa Branca, assegurou que a aliança não pretende implantar “novos mísseis nucleares terrestres” na Europa e se concentrará no desenvolvimento de sistemas antimísseis.
Alegações recebidas com descrédito por Ryabkov. “Não estamos convencidos pelas repetidas declarações de representantes do bloco de que a Otan não tem planos ou intenções de implantar tais mísseis quando forem desenvolvidos pelos Estados Unidos”, afirmou.
QUEM MANDA
Como registrou a RT, não adianta confiar nas garantias de Stoltenberg, já que quem manda na Otan são os EUA, “cujo presidente pode ter um ponto de vista diferente”.
“Podemos falar sobre mísseis de médio alcance, para os quais Washington alocou fundos. Stoltenberg disse que eles supostamente não estarão na parte europeia do continente, mas isso é uma farsa. São declarações feitas para não assustar o homem comum”, disse à RT o cientista político Plekhanov Andrey Koshkin.
A CNN registrou que o Pentágono testará em poucas semanas um novo míssil de cruzeiro projetado para faixas anteriormente proibidas pelo acordo INF. Os militares dos EUA estão trabalhando na arma há dois anos – o que já havia sido denunciado pela Rússia e que por si só já era uma violação do Tratado de INF.
Uma fonte não identificada disse à CNN que Washington pretende usar a arma em áreas da Europa onde poderia dominar os sistemas de defesa aérea russos e atacar “portos, bases militares ou infraestrutura crítica do país”.
Afinal, se não fosse para usar, porque a necessidade de banir um tratado que garantiu a segurança mútua por três décadas?
INSISTÊNCIA NO ‘MUNDO UNIPOLAR’
Para os diplomatas russos, é a insistência no delírio do “mundo unipolar” que conduz Washington a tais decisões.
Como é do feitio de Trump, ele lançou a culpa por extinguir o Tratado INF sobre a Rússia, que supostamente estaria violando o acordo com novo míssil, mas seu embaixador sequer se dignou a estar presente à exibição do míssil pelas autoridades russas, que comprovaram que não viola o acordo.
Já Washington – além de violar o acordo ao desenvolver mísseis banidos por este -, colocou nos antimísseis posicionados na Romênia e Polônia lançadores que podem ser convertidos para disparo de mísseis de cruzeiro Tomahawk em horas, com mera mudança de software. Além disso, seus drones se enquadram na definição de armas proibidas pelo Tratado.
Mesmo nas hostes republicanas há quem se oponha à retirada de um tratado que cumpre um papel tão relevante na segurança do mundo. Os EUA, afirmou o senador Rand Paul, deveriam “procurar resolver qualquer problema com este tratado e avançar”, ao invés de abandoná-lo. Ele chamou de “erro imperdoável” a saída desse “acordo histórico”.
E nem dá para Trump usar a desculpa esfarrapada de que é “um dos péssimos acordos de Obama”, já que quem assinou foi Reagan.
CHINA RESPONSABILIZA EUA POR FIM DO TRATADO
No empenho de atribuir aos outros a culpa pela retirada do Tratado INF, o governo Trump tem alegado que é preciso enquadrar a China no acordo que deixou.
O acordo diz respeito unicamente aos EUA e Rússia, esta como sucessora da União Soviética, e permitiu outros países desenvolverem mísseis terrestres na faixa banida aos dois, em consequência de que as duas superpotências tinham ogivas e lançadores em uma escala muitas vezes superior a de quaisquer outros países.
Conclamar a China, que tem em torno de uma fração da capacidade ofensiva nuclear de Washington, quando até a base do acordo de normalização com Pequim desde Nixon, o “uma só China”, é acintosamente contornada – dos telefonemas oficiais a Taiwan, até à venda em massa de armamentos, mais a intrusão no Estreito de Taiwan e a ingerência no Mar da China -, a abrir mão de parte essencial de sua defesa nuclear menor, não é uma condição minimamente razoável.
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da RPC, Hua Chunin, responsabilizou os EUA pelo fim do tratado, assinalando que Washington “ignora completamente suas obrigações internacionais e age no espírito de uma política de ações unilaterais”.
“Se, depois de deixar o Tratado INF, os EUA retomarem o desenvolvimento e a implantação de mísseis de médio alcance, isso prejudicará seriamente o equilíbrio estratégico e a estabilidade no mundo”, advertiu o diplomata, acrescendo que isso “aumentará as tensões e desconfianças, terá sério impacto no processo de controle multilateral de armamentos e no processo de desarmamento internacional e será uma ameaça à paz e segurança regionais”.
Quanto a tornar o tratado multilateral, Hua afirmou que o lado chinês “não concorda com isso” em decorrência de “uma série de complexas questões políticas, militares e legais”. O que para bom entendedor significa que deixaria a China vulnerável, quando a questão essencial da reunificação da pátria, de Taiwan, não foi ainda concluída, há provocações em Hong Kong e o império ainda sonha em ter poder para bloquear a China fechando o Estreito de Malaca.
CANDIDATOS A DOUTOR STRANGELOVE
A coincidência entre a saída do Tratado INF, o quase anúncio de que o New Start está com os dias contados e o acirramento da guerra comercial, das sanções e da extraterritorialidade das leis norte-americanas, é sintomática de que, nos porões do império, já há quem cogite da velha solução para as grandes crises, a destruição em massa de forças produtivas, a guerra.
No império, já há inclusive quem defenda que a “Destruição Mutuamente Assegurada” (MAD, na sigla em inglês), essência do antigo sistema de controle de armas, já está superada e vem prosperando a desatinada tese de que seria possível aos EUA vencer uma guerra nuclear, desde que dê o chamado ‘primeiro golpe’, com seus antimísseis se desincumbindo de derrubar o que sobrar do arsenal nuclear do país alvo.
Também a fronteira entre armas nucleares e armas convencionais vem sendo borrada, com o desenvolvimento, pelos EUA, de ogivas de menor potência (para um terço da bomba que matou 140 mil em Hiroxima).
Stephen Young, da União de Cientistas Engajados, advertiu sobre as implicações desse desvario, especialmente “com um presidente que se orgulha de sua imprevisibilidade e que perguntou literalmente: ‘Por que não podemos usar nossas armas nucleares?’”
O decadente “mundo unipolar” se recusa a perecer para que a nova ordem multilateral nasça. Não é à toa que o manual de guerra do Pentágono diz que o momento é de disputa com as “potências revisionistas”, inclui na postura nuclear o uso “local” de ogivas nucleares com decisão pelo comandante na área, está em andamento programa de upgrade do arsenal nuclear de US$ 1 trilhão e se busca a militarização do espaço.
A tresloucada tese da “vitória na guerra nuclear” dos círculos mais extremados do “mundo unipolar” em decadência ficou um tanto prejudicada depois que a Rússia, ineditamente, colocou em serviço seus mísseis hipersônicos e está quase pronto o Satã 2 (na terminologia da Otan). Mas o que não falta em Washington são candidatos a Dr. Strangelove, o icônico personagem de Stanley Kubrick do auge da ameaça de guerra nuclear, ao que se diz, baseado numa figura real.
ANTONIO PIMENTA