Na noite de segunda-feira (19/08), Bolsonaro assinou a Medida Provisória 893, que transfere o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central (BC), muda o seu nome para “Unidade de Inteligência Financeira” – e permite seu controle político, submetendo o órgão a um “conselho deliberativo”, nomeado pelo presidente do BC, com membros “escolhidos dentre cidadãos brasileiros com reputação ilibada”.
Cabe a esse “conselho deliberativo”, para o qual poderiam ser nomeadas pessoas completamente estranhas ao órgão, “a definição e aprovação das orientações e das diretrizes estratégicas de atuação da Unidade de Inteligência Financeira” e “o julgamento dos processos administrativos sancionadores na esfera de competência do órgão” (artigo 6º da MP 893).
A MP equivale a acabar com o Coaf – não apenas com seu nome, mas com a sua autonomia técnica e administrativa, isto é, com o papel que tem no combate à lavagem do dinheiro da corrupção, do tráfico, das milícias, etc.
Desde que o Coaf foi fundado, em 1998 (lei nº 9.613), ao verificar operações suspeitas ou francamente irregulares, essas informações eram encaminhadas a órgãos de investigação (principalmente a Polícia e o Ministério Público).
Foi assim que as operações irregulares na conta de Fabrício Queiroz, um pau mandado de Bolsonaro, e na conta de um dos filhos de Bolsonaro, foram detectadas (v. HP 19/05/2019, Os negócios suspeitos de Flávio Bolsonaro).
As acusações de Bolsonaro, de que o sigilo de Flávio e de Queiroz haviam sido quebrados, eram – e são – mentirosas: o Coaf jamais quebrou sigilos. Apenas, ao enviar informações, transfere esse sigilo aos órgãos que as recebem – esse é o entendimento, já aprovado duas vezes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas o problema de Bolsonaro não era amor ao sigilo bancário, e, sim, exatamente, impedir as investigações sobre as operações suspeitas de seu filho – e não apenas de seu filho: logo na primeira leva de informações do Coaf, foi encontrado um depósito de Queiroz na conta da mulher de Bolsonaro. Não se sabe o que pode sair desse baú, se cavucado até ao fundo.
No pouco que se investigou, o que apareceu foi, desde corrupção com recursos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), até o vínculo dos Bolsonaro com as milícias (v. HP 16/05/2019, Gabinete de Flávio Bolsonaro abrigava “organização criminosa”, diz MP e HP 24/04/2019, Bolsonaro e as milícias).
Flávio Bolsonaro recorreu a todas as instâncias possíveis com o objetivo de paralisar as investigações. Todas negaram a sua pretensão, por espúria.
Somente o presidente do STF, Dias Toffoli, durante o recesso da Justiça, fez o que Bolsonaro queria. Para isso, Toffoli paralisou todas as investigações do país sobre a corrupção e o crime organizado com base em informações do Coaf, da Receita ou do BC (v. HP 17/07/2019, Toffoli decide acobertar crimes de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz e Para livrar Flávio Bolsonaro de investigações, Toffoli suspendeu a lei e até a si mesmo).
Enquanto isso, Bolsonaro, que prometera o Coaf a seu ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, empreendeu uma campanha desesperada para tirar o órgão de Moro e colocá-lo sob o tacão de Guedes – o que, aliás, conseguiu (v. HP 29/05/2019, Bolsonaro faz Senado colocar Coaf sob Guedes para blindar filho das investigações).
Em seguida, o presidente do Coaf, Roberto Leonel de Oliveira Lima, em uma entrevista, fez um comentário – aliás, óbvio -, de que a decisão de Toffoli prejudicava as investigações sobre lavagem de dinheiro.
Bolsonaro, então, voltou-se contra ele – e decidiu liquidar o Coaf (v. HP 08/08/2019, Para esconder corrupção da família, Bolsonaro ataca o presidente do Coaf).
Daí a invenção de um “conselho”, para submeter o órgão a injunções políticas – isto é, as da família Bolsonaro.
Para que mais seria necessário esse “conselho”?
Aliás, sobre isso a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, em seu ofício a Bolsonaro, tem plena razão: colocar o Coaf no BC já é descaracterizá-lo. Não é um acaso que o único país do mundo em que o órgão de inteligência financeira está submetido ao BC – o Uruguai – seja, também, um país que “enfrenta sérios problemas de fiscalização e de regulamentação”.
Em suma: o Coaf é (ou era) essencialmente um órgão policial, um “órgão de inteligência”. Tanto assim que Bolsonaro, para acabar com ele, rebatizou-o (que São João, o Batista, nos perdoe o termo) de “Unidade de Inteligência Financeira”.
Esse era, exatamente, o sentido de deixar o órgão no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Não se trata de uma instância econômica, mas de uma agência de informações sobre movimentações financeiras suspeitas.
Como já mencionamos, o próprio novo nome, que Bolsonaro quer lhe dar, expressa essa função.
Mas, Bolsonaro é quase sempre (apenas quase) o oposto do que diz.
Assim, disse ele que a estrutura da “Unidade de Inteligência Financeira” é para evitar o “jogo político”.
Se fosse isso, Guedes – pois é evidente de onde veio essa medida provisória – não precisaria mudar essa estrutura e inventar um “conselho deliberativo”, que só pode ter um papel: o de facilitar a interferência política.
Até hoje, o Coaf sempre foi um órgão composto por técnicos – sobretudo, auditores da Receita. O que a MP de Bolsonaro faz é introduzir um corpo estranho para submeter um órgão de inteligência.
Considerando esse caráter do Coaf, explícito na lei que o criou, qual é o sentido de ter um órgão de inteligência – um órgão policial sobre depósitos bancários, portanto – debaixo do Banco Central, cuja função real até hoje (e, mais ainda, no governo Bolsonaro) é proteger o sistema financeiro?
Sobretudo quando o BC, presidido pelo neto do Bob Fields, eliminou, desde janeiro, a monitoração de parentes de políticos – e derrubou o limite de R$ 10 mil, acima do qual era obrigatória a comunicação do depósito ao Coaf (v. HP 24/01/2019, Banco Central quer excluir parentes de políticos da fiscalização do Coaf e HP 30/01/2019, Coaf pedirá ao BC para que parentes de políticos voltem a ser monitorados).
C.L.
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