MARCUS VINICIUS DE ANDRADE(*)
Quem conhece bem a cultura popular brasileira certamente já ouviu falar no ajudante da Morte, figura outrora comum nos sertões do Nordeste. Era geralmente uma pessoa idosa, carola e meio mística, que, ante um agonizante que teimava em não morrer, facilitava a partida do moribundo recalcitrante para a Terra do Vai-não-Torna, sufocando-o disfarçadamente com um travesseiro ou com um aperto de garganta, bem sutil, é claro. Quando a Parca chegava pra levar o morredor, metade do trabalho já havia sido feito pelo ajudante: assim, o velório não atrasava, as pessoas não precisavam ficar esperando muito, as carpideiras começavam a cantar logo as incelenças e a vida (melhor dizendo, a morte) seguia em frente.
A figura do ajudante da morte, que até há pouco estava fora de moda, escondida na memória dos livros empoeirados e narrativas avoengas de outrora, faz agora uma fulgurante reentrée neste Brasil da Terra Plana e das goiabeiras místicas. Ela ressurge em cadeia nacional e seus favores fúnebres têm hoje, como alvo preferencial, aquela velha conhecida nossa, sempre em agonia: a Cultura nacional.
Essa Cultura, imorredoura por pura teimosia, historicamente sempre sofreu dificuldades de toda ordem e somente há poucas décadas (desde a Era Vargas, mais exatamente) passou a ser objeto de políticas públicas, embora de eficácias variáveis ao longo do tempo. Ela enfrentou, como ainda hoje enfrenta, a indiferença – e a ignorância – da imensa maioria dos políticos e administradores; a constante carência de verbas; a quase total ausência de propostas vinculadas a um efetivo e consistente projeto nacional por parte do Estado; a pressão da mediocridade consumista; as fragilidades do mercado interno e sua ocupação majoritária pelos produtos impostos pela massificação globalizada; e muitas outras mazelas mais. Corajosa, renitente e de casca grossa, nossa Cultura tem sabido resistir a tudo isso. Mais ainda: ao longo do século XX e deste século XXI ainda em curso, ela logrou produzir algumas das expressões mais significativas da criatividade em âmbito internacional, como a arquitetura de Oscar Niemeyer, a música de Villa-Lobos e Tom Jobim, a ficção de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, a poesia de João Cabral e Drummond, o Cinema Novo, a MPB, o moderno teatro, etc. etc. Além da moda, da gastronomia e talvez (ainda) do futebol.
Mas hoje, com o esgarçamento do tecido nacional, provocado pelos novos senhores do radical-reacionarismo, nosso outrora celebrado céu de anil começa a tingir-se de negro e a ser invadido pelos abutres da mediocridade, enquanto cá embaixo os ajudantes da morte avivam o cheiro da carniça e apressam-se para fazer o enterro da Nação, em especial de sua Cultura.
Entre os principais colaboradores da morte cultural do país estão as “otoridades” sabichonas que, esgrimindo supostas boas intenções (aquelas das quais o inferno está cheio, como se sabe), com a maior desfaçatez investem contra os minguados recursos reservados à Cultura nacional para transferi-los para as rubricas mais aquinhoadas do Orçamento Público, geralmente as que ficam sob seu controle. É um típico caso de robinhoodismo às avessas, de expropriação dos carentes pelos privilegiados, prática à qual o Brasil está vergonhosamente se acostumando, não bastasse a já absurda sangria imposta à poupança nacional para garantir a remuneração da banca e do sistema financeiro como um todo.
Essa manobra expropriatória é uma das últimas propostas alardeadas pelo governo do Capitão Messias e, para sua concretização, vêm-nos logo à mente as figuras do Ministro da Educação (?), o “kaftiano” Abraham Weintraub, e a do polivalente Ministro Paulo Posto Ipiranga Guedes: ambos propõem, candidamente, que os recursos da Lei Rouanet sejam também atribuíveis a museus, bibliotecas e espaços culturais de universidades públicas, o que não seria de todo despropositado, embora seja vedado por lei. Só com essa pedalada arrecadatória, os dois Ministros pretendem que o Ministério da Educação possa agregar ganhos anuais de cerca de R$ 1,2 bilhão a seu orçamento. É lamentável constatar que os dois luminares da Esplanada dos Ministérios não tenham conhecimento de que os recursos por eles pretendidos correspondem à quase totalidade do valor da renúncia fiscal anual estimada para a Lei Rouanet, o que nem sempre se traduz em receita efetivamente repassável a projetos culturais. Em anos recentes, quando o uso dos incentivos fiscais à Cultura foi mais intenso e eficiente, foram arrecadados pela Lei Rouanet apenas R$ 1,149 bilhão (2016) e R$ 1,156 bilhão, respectivamente.
Isso projetaria que, caso concretizada na forma prevista pela dupla Weintraub-Guedes, a incorporação dos benefícios da Lei Rouanet ao ensino superior público deixaria o orçamento da Cultura praticamente a zero. Nada mais se poderia criar/produzir via incentivo estatal. Ou seja: adeus, cinema, teatro, balé… Enfim, adeus, Cultura nacional. Será que ninguém viu isso?
Cabe lembrar que, no Brasil, embora a lei determine que o orçamento público para a Educação deve corresponder a 10% do PIB, ele está sendo reduzido a cerca de 7% devido ao descaso dos governantes, os quais ainda têm o desplante de afirmar que tal percentual engendraria um volume de recursos superior aos de muitas nações desenvolvidas, o que é apenas um ilusionismo estatístico que esconde a realidade dos valores finais per capita destinados ao ensino público.
Por mais que a Educação seja indiscutível prioridade nacional,
ela tem
dotações próprias, sendo injustificável que se
queira socorrê-la por meio da diminuição dos já minguados
recursos para a Cultura, quase inexpressivos dentro do orçamento
federal. Como se diz Brasil afora, isso seria despir um santo para
vestir outro, mas o pior e mais previsível seria ambos os santos
continuarem quase nus e aquelas áreas persistirem com seus problemas
não resolvidos. No entanto, mesmo que houvesse recursos bastantes
para cobrir todas as demandas específicas da Educação e da
Cultura, o simples fato de se estar remanejando rubricas
orçamentárias estabelecidas em lei, não importa com que
propósitos, por si só constituiria um desvio de finalidade
sujeito a penalização como infração administrativa grave e até
mesmo suscetível de enquadramento como crime de responsabilidade. No
caso específico das flexibilizações no uso da Lei Rouanet, seria,
ademais, um crime de lesa-cultura, em nosso entender.
Afora o garroteamento orçamentário e a diminuição reiterada das condições necessárias à vida intelectual nacional, os ajudantes da morte da Cultura brasileira usam artimanhas de todo tipo para fazer com que este país, onde talento, criatividade e saber são abundantes, se transforme numa Botocúndia soturna e ignóbil em que possam exibir sua mediocridade. São eles que, em nome de um moralismo enviesado e anacrônico, talvez para condenar um filme que alegam ser pornô, estão propondo a sumária extinção da ANCINE – Agencia Nacional de Cinema, uma empresa que agrega 345 funcionários efetivos e coordena a indústria audiovisual nacional, integrada por cerca de 12 mil empresas que geram em torno de 300 mil empregos diretos e indiretos, com uma receita anual de cerca de R$ 25 bilhões, correspondentes a 0,5% do PIB nacional. Tudo isso pode se acabar por conta de um delírio individual em suposta defesa da moral nacional.
A indústria audiovisual nacional corre risco de extinção ou de uma forte retração, tal como ocorreu com a indústria do livro no Brasil, cujas principais casas editoriais, de imenso significado histórico-cultural para o país, passaram ao controle de grupos multinacionais (principalmente ibéricos), nos últimos tempos. Ou como aconteceu com os importantíssimos catálogos de nossas editoras musicais, que foram absorvidos pelas multinacionais do disco, o que nos privou do controle de nossa própria memória musical, a ponto de quem desejar utilizar publicamente uma obra referencial como o Pelo Telefone (Donga-Mauro de Almeida), dado como o primeiro samba gravado no Brasil (1917), precisar hoje obter uma licença junto a um grupo fonográfico anglo-saxão. Nesta mesma situação estão milhares de outras obras e catálogos fundamentais de nossa história musical, hoje em mãos estrangeiras.
A Cultura brasileira também está sendo impulsionada para a morte dentro dos próprios organismos culturais oficiais do país, alguns dos quais estão ostensivamente servindo aos propósitos particulares capciosos de indivíduos e/ou segmentos políticos. É o que vem ocorrendo com o Centro de Artes Cênicas da FUNARTE, cuja página na Internet vem sendo eventualmente replicada no blog pessoal do seu diretor, o dramaturgo Roberto Alvim, que se vale do material informativo produzido pelo órgão para, com viés belicoso e assumidamente direitista, arregimentar seguidores para a criação de uma máquina cultural conservadora no seio do próprio Estado – e talvez com recursos deste. Com parceiros assim, nenhum projeto cultural nacional precisa de inimigos.
A Cultura é o resultado mais visível do processo civilizatório,
representativo da incessante luta do Homem contra a barbárie, contra
o esfacelamento dos
princípios humanistas, contra a miséria
material e moral dos povos e nações.
Assim, a Cultura também morre quando falta merenda nas escolas e medicamentos nos hospitais públicos. Morre nas filas de desempregados e desassistidos de amparo social. Morre quando ministros minimizam as questões ambientais e toleram desmates, quando não os incentivam abertamente. Ou ainda quando autoridades rejeitam as pesquisas e dados que lhes parecem inconvenientes, mesmo se oriundos de instituições públicas de alta respeitabilidade. Morre também quando a senhora da goiabeira sagrada clama bisonhamente por uma fábrica de calcinhas na ilha de Marajó, para impedir que as meninas da região sofram abusos sexuais. A Cultura morre ainda sempre que os governantes perdem a compostura cívica e prestam reverência submissa aos impérios, a quem fazem juras públicas de amor e para cujas bandeiras batem continência.
Os ajudantes da morte na área cultural estão fazendo tudo isso, a mil por hora. Vamos enfrentá-los.
Se não, vamos ter de começar já a cantar as incelenças.
(*) Este texto do maestro Marcus Vinicius foi apresentado em julho ao Observatório da Democracia, no qual o autor representa a Fundação Instituto Cláudio Campos. O Observatório da Democracia é composto pela Fundação João Mangabeira (PSB), Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), Fundação Mauricio Grabois (PCdoB), Fundação Perseu Abramo (PT), Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL), Fundação Instituto Claudio Campos (PPL) e Fundação da Ordem Social (PROS).
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