A alta comissária da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, condenou na última sexta-feira as “graves violações dos direitos humanos cometidas desde meados de abril de 2018 no contexto dos protestos” na Nicarágua. Ela repudiou os massacres perpetrados por policiais, paramilitares e agentes do regime de Daniel Ortega, e defendeu um basta na “impunidade”.
O relatório oficial da ONU denuncia que “as detenções arbitrárias continuaram sendo um meio de repressão da expressão de dissidência, e persistiram os casos de torturas e maus-tratos a pessoas privadas de liberdade em relação com os protestos”. E mais: “o sistema de Justiça foi usado para criminalizar a dissidência e garantir a impunidade dos responsáveis pelas violações dos direitos humanos, o que demonstra a falta de independência do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo”.
A Nicarágua se vê mergulhada numa profunda crise política, econômica e social desde abril de 2018, quando o governo de Ortega tentou implantar uma reforma da previdência social, com cortes nas aposentadorias. A medida redundou numa onda de protestos, violentamente reprimida.
Conforme as organizações de direitos humanos, desde então os confrontos deixaram mais de 480 mortos – entre eles a estudante de medicina brasileira Raynéia Gabrielle Lima (https://horadopovo.com.br/regime-orteguista-mata-a-tiros-estudante-brasileira-em-managua/) – 2 mil feridos e mais de 500 opositores presos.
A censura, as perseguições e a recessão econômica foram fartamente denunciadas por lideranças dos movimentos populares e familiares – que inclusive trouxeram estas denúncias ao Brasil (https://horadopovo.com.br/nicaraguenses-denunciam-no-brasil-a-ditadura-sanguinaria-de-ortega/) -, tendo mandado mais de 60 mil nicaraguenses para o exílio, incluindo cem jornalistas.
EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS
A ONU aponta que “documentou” o grande número de abusos, entre eles “o uso desproporcional da força por parte da polícia, que se materializou em várias execuções extrajudiciais e em maus-tratos generalizados, registrando-se casos de tortura e violência sexual nos centros de detenção”. Além disso, “denuncia abusos cometidos por pessoas envolvidas nos protestos”, entre eles a morte de agentes da polícia e integrantes do partido do governo “e lesões aos mesmos, assim como a destruição de infraestrutura pública”.
De acordo com a ONU, “a fase mais recente da repressão contra os setores críticos do governo se caracteriza pela violação dos direitos à liberdade de expressão, associação e reunião pacífica”. “A repressão às manifestações pela polícia, junto com os ataques de grupos pró-governamentais armados, teve um efeito dissuasivo que levou ao cancelamento de muitos protestos ou à decisão dos manifestantes de fragmentá-los em concentrações menos numerosas”, frisa o relatório.
O documento avalia que o poder judicial da Nicarágua se revelou um fracasso na investigação dos abusos: “esta situação reflete a falta de vontade de garantir a prestação de contas e consolida a impunidade pela violação dos direitos humanos, negando o direito das vítimas à justiça, à verdade, à reparação e a garantia de não repetição” das transgressões, o que “enfraquece ainda mais a confiança pública nas instituições do Estado”.
Frente aos reiterados atropelos, o relatório recomenda a “investigação e processo penal rápido, exaustivo e transparente de todas as denúncias de violações graves dos direitos humanos ocorridos desde 18 de abril de 2018” e defende “a desarticulação e desarmamento dos grupos armados pró-governamentais e a reforma geral das forças de segurança”.
PERMITIR O ACESSO DO ÓRGÃO DA ONU AO PAÍS
Michele Bachelet também fez uma conclamação ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e à comunidade internacional para que se mantenham firmes e “instem a Nicarágua para que cumpra suas obrigações em matéria de direitos humanos” e “retome o quanto antes a cooperação com o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e os mecanismos regionais de direitos humanos, e lhes permita o acesso ao país”.
Para a alta comissária da ONU e duas vezes presidente do Chile (2006-2010 e 2014-2018), é necessário que a Nicarágua “ponha fim às detenções arbitrarias e liberte todas as pessoas privadas da liberdade arbitrariamente no contexto dos protestos ou por manifestar opiniões críticas ao governo”.
Personalidades como Ernesto Cardenal, Dora MaríaTéllez, Víctor Hugo Tinoco, Mónica Baltodano, Jaime Wheelock, Alejandro Bendaña, Sergio Ramírez e Henry Ruiz, lideranças históricas da Frente Sandinista no momento da revolução que depôs o ditador Somoza, têm condenado a política de Ortega.
A ex-comandante guerrilheira Mónica Baltodano disse que “o atual governo da Nicarágua usa algumas vezes um discurso de esquerda, uma estridência nas palavras que nada têm a ver com sua prática real, muito distante de um projeto progressista”. Infelizmente, revela, “pelo contrário, na Nicarágua são os banqueiros, a oligarquia tradicional e grupos econômicos formados de elementos que participaram da revolução contra a ditadura somozista, mas que renegaram seus princípios e se tornaram especuladores, os que enriquecem”.
AGRESSÕES DE BOLSONARO
Jair Bolsonaro agrediu Bachelet nesta semana, elogiando o regime do ditador Augusto Pinochet por ter matado seu pai, o general-brigadeiro Alberto Bachelet, preso e barbaramente torturado. “Seu país só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai, brigadeiro à época”, deblaterou Bolsonaro.