Em meio ao anúncio de que os democratas resolveram entrar com um pedido de impeachment, o presidente Donald Trump foi à 74ª Assembleia Geral da ONU e, na condição de atual chefe do país mais imperialista do planeta, com 800 bases em terra alheia, dez grupos de porta-aviões nucleares, imposição de leis extraterritoriais e sanções econômicas contra dezenas de países e indisfarçável hegemonia no FMI e no Banco Mundial, teve a cara de pau de enaltecer ‘o patriotismo’, ao qual o futuro pertenceria, e “não aos globalistas”.
Chegou até mesmo a enaltecer em tom elevado as “nações soberanas e independentes”, deixando de lado aquelas tuítadas grotescas que se tornaram sua marca registrada. Prodígios que só a leitura pelo Teleprompter explicam.
Certamente não é em prol das “nações soberanas e independentes” que existem as 800 bases ou o orçamento do Pentágono de quase US$ 1,5 trilhão em dois anos – mas para submetê-las aos interesses dos monopólios norte-americanos, especialmente de Wall Street, do complexo industrial-militar e das petroleiras.
OUTRO NOME
A súbita “defesa do nacionalismo” (sic) e rejeição ao globalismo de parte de Trump até mereceu registro da agência Reuters.
Mas como dizia o economista John Kenneth Galbraith, que serviu a Roosevelt e a Kennedy, quando o debate sobre a “globalização” pegou no breu na década de 1990, “globalização não é um conceito sério. É um termo que nós, americanos, inventamos para dissimular nossa política de avanço econômico em outros países e para tornar respeitáveis movimentos especulativos de capital”.
Ou, segundo Henry Kissinger, que dispensa apresentações, e cuja alma penada ainda vagueia entre nós, “globalização é na verdade outro nome para a posição dominante dos Estados Unidos”.
O recente desprezo pelo globalismo de parte dessa gente é só expressão de quão longe foi a decadência do império norte-americano, que até poucos anos se apresentava como a ‘hiperpotência única’ pós queda da URSS e instauração da ordem global neoliberal ‘pela eternidade’. O ‘país indispensável’, aquele que faz história enquanto os outros aguentam e cujo lebensraum (espaço vital) era o planeta inteiro (mais modesto, Hitler só pleiteava a Europa).
GRAVE INJUSTIÇA, LAMURIA TRUMP
Conforme Trump, o mundo não para de tirar vantagem dos Estados Unidos e está na hora de “acabar com essa grave injustiça econômica”.
Como se sabe, os EUA desde Bretton Woods mantêm o “privilégio exorbitante” de poderem pagar o produto do trabalho dos demais povos com papel pintado [ou digitalizado], o dólar, tornado moeda de reserva internacional.
As normas do comércio internacional, as orientações do FMI, o Consenso de Washington, a metástase do rentismo, é tudo made in USA.
A China não pôs um revólver na cabeça de nenhum presidente norte-americano para tirar as fábricas e os empregos e levá-los para a Ásia.
Foram os monopólios decadentes norte-americanos que decidiram fazer isso, o que chamaram de ‘arbitragem de salário’, para pagar salários de Taiwan e exportar para os EUA e vender a preços de Nova Iorque. Também ajudou a manter o salário mínimo nos EUA congelado há mais de dez anos.
Antes disso, foram os norte-americanos que, depois de serem batidos em produtividade pela Europa e Japão reconstruídos, rasgaram Bretton Woods e acabaram por transformar o turbinado endividamento norte-americano, os déficits gêmeos (fiscal e comercial), no motor da financeirização global.
Os países vendiam para os EUA, mas tinham que usar os dólares para comprar títulos do Tesouro e para especular em Wall Street, o que depois se sofisticou nos derivativos e demais papéis podres, até a casa cair em 2008.
A ganância, o lucro a curtíssimo prazo, o Estado Mínimo, o corte de direitos, a concentração de renda e o offshoring – o deslocamento para o exterior das fábricas – vieram no pacote. No lugar da prevalência das economias nacionais, as cadeias globais de suprimento, em torno dos monopólios dos países ricos, livre trânsito para os capitais vadios, impostos mínimos para os cartéis e paraísos fiscais.
OFFSHORING
Agora Trump reconta essa história, alegando que os EUA “perderam mais de 3 milhões de empregos na indústria, quase um quarto de todos os empregos no setor do aço e 60 mil fábricas depois que a China entrou na OMC” e acumularam “US$ 13 trilhões em déficits comerciais nas últimas duas décadas”.
“Não toleraremos mais esse abuso”, disse ele, como se a GM, hoje, não vendesse mais carros na China do que nos EUA, e não houvesse partido da Apple a decisão de fazer o projeto “na Califórnia” e montar na China. Sua reiteração da guerra comercial contra a China no discurso levou as bolsas a caírem.
Para o ex-presidente Jimmy Carter, a explicação da reviravolta é que, enquanto os EUA estiveram literalmente rasgando dinheiro em guerras inúteis desde que normalizou as relações diplomáticas com Pequim no governo dele, a China desenvolvia a indústria e a infraestrutura e deixava a pobreza para trás. Tornou-se a ‘fábrica do mundo’ e está a caminho de dominar as tecnologias de ponta. Manteve estatais os setores estratégicos e os bancos e desde o crash é responsável por 30% do crescimento do PIB global.
Quanto ao declínio na capacidade de produzir e inovar dos EUA, de que a recente crise da Boeing, com seu 737 Max aterrado no mundo inteiro, é expressão, não se deve ao “roubo” da tecnologia – ao contrário, como no caso da Huawei e do 5G. Que tem quase metade das patentes dessas redes de alta velocidade a nível internacional e por custo menor, enquanto os EUA ficaram completamente para trás.
É O PETRÓLEO, ESTÚPIDO
A defesa dos interesses das Sete Irmãs foi tema recorrente no discurso de Trump.
Primeiro, abriu as baterias contra o Irã, ao qual acusou de ser o “maior fomentador do terrorismo no mundo”, declaração que deve ter causado ciúmes na sede da CIA e na capital saudita. Foi Trump que, ao rasgar o acordo com Teerã negociado por seu antecessor, Obama, jogou gasolina na fogueira do Oriente Médio.
Ele também requentou aquela promessa do Comitê de Libertação do Petróleo Iraniano, cujos próceres não aguentam ver como os aiatolás malvados exploram o bom povo iraniano, depois de terem expulsado aquela alma caridosa e democrática, o Xá, posto no poder pelo golpe da CIA em 1953.
Em relação à Venezuela, Trump prometeu acabar com o socialismo ali e restaurar a “democracia”. Mas como registrou em livro o ex-diretor do FBI, Andrew McCabe, é de lavra de Trump a observação de que “é o país com quem deveríamos estar em guerra. Tem todo esse petróleo e fica justamente na nossa porta dos fundos”.
Já seu ministro do Comércio, Wilbur Ross, expôs o espírito da coisa em números: “pondo em perspectiva: há cerca de 300 bilhões de barris de petróleo lá. Se você os colocar a US$ 5 o barril, isso significa US$ 1,5 trilhão em valor”. “E ainda há ouro”, acrescentou.
No discurso, Trump pareceu muito preocupado com o “socialismo”, que denegriu como pôde. Mas na realidade, essa parte do discurso era para uso interno, e o “socialismo” que o apavora são aquelas moderadas mudanças propostas pelo senador Bernie Sanders, que consistem na implantação da saúde pública e do ensino gratuito nas universidades, que já existem na maioria dos países desenvolvidos, inclusive no vizinho Canadá.
CHAUVINISMO CARCOMIDO
É só olhar a lista de “países soberanos” do agrado de Trump, para se evidenciar que o redescoberto ‘nacionalismo’ dos imperialistas encalacrados com a marcha da história não passa do velho e carcomido chauvinismo.
Israel e seu apartheid, ao qual o ‘principio do realismo’ de Trump garantiu a mudança da embaixada para Jerusalém ocupada, contra todas as resoluções e a Carta da ONU.
A Polônia, por se dispor a se tornar um entreposto do mais caro gás de fracking norte-americano, e a pagar por um ‘forte Trump’.
A Arábia Saudita, país onde o feudalismo mais crasso ainda governa, onde até o ano passado as mulheres não podiam sequer dirigir, capaz de mandar matar e picotar um opositor em um consulado, e que desde 2015 comete genocídio contra o povo do Iêmen com armas e orientação norte-americanas.
E que “países soberanos” são esses que devem, como Trump exigiu no mesmo discurso, pagar “sua justa parte” na defesa – isto é, na ocupação? Se os EUA prezam a soberania e a independência dos demais países, como mentiu Trump, porque será que Washington mantém um comando militar ‘responsável pela América do Sul’, outro pela ‘África’, outro pela “Europa’, o do “Grande Oriente Médio” e o do “Pacífico, aliás, Indo-Pacífico”, como se o mundo fosse seu?
DE VIRA-LATAS E POODLES
Na única parte em que a plateia demonstrou alguma empatia com o que Trump dizia, foi quando ele se gabou – “extraordinário progresso” – de que em três anos havia feito “mais que quase qualquer governo na história dos EUA”, causando risadas. “Tão verdadeiro”, improvisou, acrescentando que não esperava essa reação, “mas tudo bem”.
Entre os grandes feitos de Trump, a bolha de tudo, o muro xenófobo na fronteira, o corte de impostos para os magnatas e o desemprego dito recorde – que coexiste com uma alta recorde dos empurrados para fora da força de trabalho e não entram no cálculo do índice – e com uma ocupação da capacidade de produção ainda abaixo do patamar pré-crash.
Também ameaçou os imigrantes e fez propaganda da criminalização do aborto, além de enfatizar a retirada dos EUA da Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Outra cena digna de nota foi a patética espera do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, a “vergonha planetária”, no corredor da ONU, pela chegada de Trump e por um afago. O que deve ter chocado até o ex-primeiro-ministro inglês, Tony Blair, com toda sua vasta experiência de mais notório poodle de um presidente norte-americano.
Trump também silenciou sobre a retirada dos EUA do Tratado de Proibição de Mísseis de Alcance Intermediário e do Tratado do Clima de Paris.
A.P.