CARLOS LOPES
É bastante conhecida a história da votação para o Prêmio Humberto de Campos (concurso literário da Livraria e Editora José Olympio) de 1938, em que Graciliano Ramos votou contra Sagarana, de Guimarães Rosa, e a favor de Maria Perigosa, de Luís Jardim, que levou o prêmio.
Essa história foi contada pelo próprio Graciliano Ramos, em artigo de 1946, pouco depois de publicado o livro de Rosa (v. Conversa de bastidores, in Linhas Tortas).
Menos conhecido – embora também esteja no artigo de Graciliano – é que o outro grande escritor brasileiro no júri do Prêmio Humberto de Campos, Marques Rebelo, não somente defendeu acirradamente a concessão do prêmio a Sagarana, como quase encerra a sua amizade com o autor de Angústia, por conta da defesa que este fez do livro de Luís Jardim.
“Houve discussão e briga”, conta Graciliano. “No dia do julgamento, eliminadas composições menos sólidas, ficamos horas no gabinete de Prudente do Morais [neto], hesitando entre esse volume desigual e outro, Maria Perigosa, que não se elevava nem caía muito. Optei pelo segundo e, em consequência, Marques Rebelo quis matar-me: gritou, espumou, fez um número excessivo de piruetas ferozes. Defendi-me com três armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídicas.
“— Ora essa! Discutimos literatura de ficção. Deixemos em paz o Instituto de Butantã.”
Guimarães Rosa fora médico no interior de Minas Gerais. Daí essa última observação de Graciliano, que não conhecia o autor de Sagarana (e os originais das obras eram enviados ao concurso sob pseudônimo), mas adivinhara a sua profissão original:
“… abri um cartapácio de quinhentas páginas grandes: uma dúzia de contos enormes, assinados por certo Viator, que ninguém presumia quem fosse”, escreveu Graciliano. “Em tais casos rogamos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir ao fim. Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: montanhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente feitiço, a patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável, dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho Bembém. Por outro lado enjoei um doutor impossível, feito cavador de enxada, o namoro de um engenheiro com uma professorinha e passagens que me sugeriam propaganda de soro antiofídico.”
Bem entendido, ao contrário do que dizem hoje alguns sobre o que ocorreu nesse concurso, Luís Jardim não era mau escritor, nem os contos de Maria Perigosa merecem o esquecimento completo em que hoje repousam.
Mas, evidentemente, Luís Jardim não era João Guimarães Rosa – nem lhe cabe esta culpa.
Além disso, há outra questão, aliás, implícita na descrição de Graciliano: o Sagarana que Rosa submeteu ao júri do Prêmio Humberto de Campos (o “cartapácio de quinhentas páginas grandes” com “uma dúzia de contos enormes”) não era o mesmo que hoje conhecemos. Seu autor trabalharia, ainda, mais oito anos para chegar ao resultado final.
Todas essas questões históricas são muito interessantes. No entanto, o que, a nosso ver, é mais importante – e, provavelmente, o mais subestimado – é o julgamento de Graciliano sobre este último Sagarana, o atual, aparecido em 1946:
“Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal — Rio — 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance. Achariam aí campo mais vasto as suas admiráveis qualidades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar minúcias na aparência insignificantes, uma honestidade quase mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado nesse rigor, indicara a Prudente de Morais [neto] numerosos versos para efeito onomatopaico intercalados na prosa. Vou reencontrá-los. Lá estão, à pagina 25, fixando a marcha dos bois nos caminhos sertanejos, dois períodos (o primeiro feito de adjetivos aplicáveis ao gado) composto de pentassílabos: ‘Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, sambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos bocaleos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silvei- ros… E os toscos da testa do mocho macheado, e as rugas antigas do boi corualão…’ Notem que temos aí dez aliterações. O rumor dos cascos no chão duro se prolonga — e à página 26 ainda é martelado em dezesseis versos de cinco sílabas: ‘As ancas balançam, e as vagas de dorsos das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estratos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…’”
Continua Graciliano:
“Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista — movimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito me agrada.”
Em seguida, Graciliano procura situar Guimarães Rosa na tradição literária brasileira:
“A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse anti-modernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.”
Por fim, Graciliano, criador da cachorra Baleia (em Vidas Secas, de 1938, mesmo ano do júri da José Olympio), frisa uma característica especial em Guimarães Rosa:
“Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irracionais direitos, exibidos com peladuras, esparavões e os necessários movimentos de orelhas e de rabos. Talvez o hábito de examinar essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com lentidão bovina.”
Graciliano Ramos praticou pouco a crítica literária. Mas, nesse terreno, escreveu alguns textos importantes, e, pelo menos um, fundamental (“O fator econômico no romance brasileiro”, também reunido em Linhas Tortas).
No caso de Guimarães Rosa, ele chama atenção para um conto de Sagarana que, pelo menos eu, subestimara injustamente: “A volta do marido pródigo”, um dos poucos contos urbanos (ou quase urbanos) de Rosa, expressão de um Brasil que estava em mudança.
O livro de Rosa tem quatro obras-primas indiscutíveis: “O burrinho pedrês”, “A hora e vez de Augusto Matraga”, “Duelo” e “Conversa de bois”.
Porém, “A volta do marido pródigo”, com seu personagem central, o mulato Lalino Salatiel, não fica muito atrás destes.
Tal como, na mesma época, observaria Álvaro Lins, Graciliano percebe que os contos de Guimarães Rosa são, em verdade, pequenos romances. Daí, o final do seu artigo:
“Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se.”
Parece uma profecia: em 1956, Guimarães Rosa publicaria Grande Sertão: Veredas.
Graciliano falecera três anos antes, em 1953.
Matérias relacionadas: