CARLOS LOPES
Os pintores soviéticos do realismo socialista (nem todos os pintores soviéticos das décadas de 30, 40 e 50, do século passado, estão nesse terreno), ao mesmo tempo em que foram reconhecidos nos últimos anos, enfrentaram uma vicissitude crítica: sua atribuição a escolas artísticas anteriores – e ocidentais.
Faz-se o possível para evitar, seja o “realismo”, seja o “socialismo”…
Assim, em uma exposição, nos EUA, das obras de Alexander Gerasimov, esse artista foi classificado como “impressionista” ou “influenciado pelo impressionismo”.
Algo semelhante aconteceu com outro grande pintor soviético, Alexander Deineka, quando, em Roma, houve uma grande retrospectiva de sua obra, em 2011.
Dessa vez, porém, a qualificação era a de “expressionista”, ou, talvez, “influenciado pelo expressionismo”.
Estamos, aqui, diante de um equívoco conceitual por motivos ideológicos.
É verdade que os pintores do realismo socialista se apropriaram de técnicas – e, inclusive, de desenvolvimentos estéticos – de escolas anteriores.
Sua especificidade na história da arte está, precisamente, em que, a partir de uma determinada concepção – aquela exposta por Gorky na década de 30 – operaram uma síntese para a superação dessas escolas que, no ocidente, buscaram a negação do academicismo burguês do século XIX.
Nesse sentido, para esses pintores, a obra e o realismo de Gustave Courbet foram mais importantes do que o impressionismo, o expressionismo e o cubismo – e não apenas porque Courbet foi um dos participantes da Comuna de Paris, mas por seu realismo sem concessões (as duas coisas, apesar de situarem-se em campos diferentes, têm uma relação estreita).
Alexander Deineka esteve entre os artistas soviéticos que admiraram a exposição de artistas alemães de 1924, em Moscou.
Entretanto, suas concepções estéticas iniciais são anteriores a essa exposição: datam da época em que estudou na Vkhutemas (a Escola Superior de Arte e Técnica, fundada por Lenin), a partir de 1920, onde teve, como professor, Vladimir Favorsky.
Favorsky – depois Artista do Povo da URSS – estudara em Munique, e, inclusive, foi um dos tradutores do livro de Adolf von Hildebrand, “O Problema da Forma na Pintura e Escultura”. Essa tradução, publicada em 1914 (portanto, antes da Revolução Russa), teve, realmente, influência entre os artistas soviéticos.
A preocupação de Deineka com o espaço, na pintura, vem dessa época.
Em um texto autobiográfico de 1936, ele conta como “na Escola [de Arte de Kharkov] passei por um período de paixão pelos ‘ismos’ – vagamente pelo impressionismo, consideravelmente pelo simbolismo à maneira provinciana (…). Por um longo tempo, vaguei por esses ‘ismos’” (cf. Aleksandr Deineka (1899-1969) An Avant-Garde for the Proletariat, Fundación Juan March, Madrid, 2011-2012, p. 394).
Ele foi, dentre os pintores soviéticos, um dos mais concentrados em desenvolver uma obra a partir de um fundamento teórico. É interessante como, no artigo que citamos, ele responde aos ataques, via de regra tacanhos, ao seu trabalho: “Para concluir, acrescento que a arte é uma frente de batalha difícil, tanto mais difícil quanto alguém precisa lutar consigo mesmo para afastar as advertências e sermões do júri composto pelos críticos“.
A liberdade – expressa em sua obra – que Deineka teve para desenvolver o seu programa artístico é, aliás, um desmentido completo ao que se diz, ainda, sobre o realismo socialista em alguns meios.
O realismo, bem entendido, como em Courbet, jamais foi entendido, naquela época, como uma mera reprodução da realidade aparente (aliás, nem a fotografia é uma mera reprodução da realidade aparente). A questão é, sobretudo, de essência e não de aparência.
Tomemos o quadro que encima esta página, “A defesa de Sebastopol“.
É ele uma reprodução dos acontecimentos da batalha de Sebastopol, em que os soviéticos – militares e civis – resistiram por oito meses ao assédio nazista?
Sem dúvida, do ponto de vista da aparência, não é.
Mas o heroísmo dos defensores de Sebastopol – um espantoso acontecimento, raro na História da Humanidade – está plenamente retratado (uso intencionalmente esta palavra).
Nada há, nessa obra, de falso, quanto à essência do que ocorreu, entre outubro de 1941 e julho de 1942, em Sebastopol (aliás, a cidade favorita de Deineka), na Crimeia.
O quadro é, precisamente, um clássico – dos mais conhecidos – do realismo socialista.
Alexander Deineka (aliás, Alexander Alexandrovitch Deineka) nasceu em Kursk, em 1899, filho de um trabalhador ferroviário (um de seus primeiros quadros, que o leitor poderá ver abaixo, é, exatamente, “Retrato de um ferroviário”, de 1915).
Estudou em sua cidade-natal, e, depois, na Escola de Arte de Kharkov, até 1917. Com a Revolução e a Guerra Civil, foi voluntário do Exército Vermelho no combate aos “brancos” e à intervenção estrangeira.
Esteve na Escola Superior de Arte e Técnica (Vkhutemas) até 1925, época em que se tornou amigo de Mayakovsky. Foi, então, um dos fundadores do “Grupo dos Três” (Andrei Goncharov, Alexander Deineka e Yury Pimenov), que se destacou na Primeira Exposição da União da Arte Ativa Revolucionária.
Saindo da Vkhutemas sem se formar, Deineka foi fundador da OST (Sociedade de Pintores de Cavalete), cujo manifesto pregava: “modernidade revolucionária e clareza na escolha do tema; desejo de alcançar a perfeição absoluta na pintura figurativa não decorativa, desenho, escultura, no processo de desenvolvimento das recentes realizações na área da forma; vontade de criar imagens acabadas” (cf. Mikhail Lazarev, “Alexander Deineka: the artist through time”, Point of View, #1 2011 (30) – este artigo, curiosamente, se dedica a provar que Deineka era “aparentemente” um coletivista, mas na verdade um individualista, chegando à conclusão, evidentemente, que, se não fosse o socialismo, Deineka seria um gênio da pintura. O problema dessa tese é a impossibilidade de conceber Deineka e sua obra sem relação com o socialismo ou fora do socialismo).
As mulheres ocupam, na obra de Deineka, um papel central. Já em 1926, na sua obra “Na construção de novas fábricas” (v. abaixo), são as operárias que aparecem como representação de sua classe. No ano seguinte, ele realizaria uma das obras mais importantes da arte soviética nessa época, isto é, na década de 20: “Operárias na indústria têxtil” (v. abaixo).
Em 1928, viria aquela que alguns consideram o primeiro marco do realismo socialista “monumental”: “A defesa de Petrogrado” (ver abaixo).
Deineka é, também, autor de vários posters, mosaicos e desenhos.
Em 1932, com a tela “Mãe” (v. abaixo), começa uma nova fase em sua obra.
Ao contrário de Alexander Gerasimov, perseguido pela contrarrevolução kruschevista, Deineka conseguiu alguma adaptação ao que, depois, foi chamado “arte do degelo”.
Deineka recebeu o título de Artista do Povo da URSS, Herói do Trabalho Socialista, a Ordem de Lenin, a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho e o Prêmio Lenin.
Membro da Academia de Arte da URSS, faleceu em junho de 1969.
Abaixo, algumas obras (ou, melhor, a imagem de algumas obras) de Alexander Deineka.
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