CARLOS LOPES
Existem várias dificuldades para apresentar as obras dos pintores soviéticos – os pintores do realismo socialista – em um site na Internet.
A primeira é a segurança quanto às cores da obra. Procuramos minorar esse problema com a consulta a álbuns (o papel, nesse caso – e em outros casos – é mais confiável que o meio eletrônico) e, sempre que possível, escanear, ao invés de reproduzir o que já está na Internet.
A segunda dificuldade é o paradeiro dos quadros. Procuramos, aqui, verificar o acervo atual dos museus de países que compunham a URSS. O que não é fácil. Mesmo assim, existem sempre algumas obras que parecem de localização desconhecida. A verdade é que após a queda da URSS não foram apenas bibliotecas e editoras que foram atingidas (por exemplo, no início do governo Yeltsin todo o estoque da Editorial Progresso, o que incluía o estoque das edições das obras de Lenin em vários idiomas, foi enviado às fábricas de papel para “reciclagem”; o mesmo aconteceu com as bibliotecas das instituições que foram fechadas, algo na casa de milhares, que pertenciam ao PCUS, ao Konsomol, aos sindicatos, às entidades femininas, etc.).
No caso da pintura, houve, em alguns casos, mero roubo. Embora, o que salvou a situação é que os museus da URSS, essencialmente, se mantiveram – ao contrário, por exemplo, de uma grande parte das instituições educacionais ou editoriais.
A manutenção dos museus (e museus “estatais”, como está, até hoje, no nome de grande parte deles) impediu, entre 1991 e 1999, uma tragédia civilizatória (aliás, anticivilizatória) maior ainda que a catástrofe acontecida). Ao contrário das bibliotecárias, os funcionários e funcionárias dos museus tiveram condições de preservar, essencialmente, o acervo artístico.
Mesmo assim, existem algumas obras que, até agora, não foram localizadas. E existem aquelas que se tornaram integrantes de alguma “coleção particular”.
Porém, existe uma dificuldade (a rigor, um suplício) maior ainda que estas, embora seja um problema de quem se mete a estudar a pintura soviética – mas, como os nossos leitores são, sempre, muito solidários, aproveitamos para desabafar.
Trata-se da obrigação que sente a maior parte dos críticos russos atuais de descobrir ou expor como era horrível a vida dos artistas na época de Stalin… Mesmo quando os fatos – e as obras – não permitem essa conclusão, e, mesmo, a contrariam.
Qual o motivo disso, no momento em que esses artistas – e suas obras, até porque não existe outro modo de reconhecer um artista – são reconhecidos, inclusive nos EUA e outros países do Ocidente?
Em parte, e em alguns, é carreirismo. O sujeito acha que, para subir na vida, na Rússia de hoje, é preciso falar mal do socialismo.
Outra parte é esmagamento ideológico. O sujeito passa a repetir a ideia dominante porque é dominante (ou porque acha que é “dominante”). Senão – acha ele – sentir-se-ia deslocado no meio que frequenta, etc., etc.
Vejamos um caso típico.
Arkady Plastov passou à história da arte como um pintor de camponeses – e camponesas.
Pode-se dizer que ele é o pintor da coletivização da agricultura na URSS – mais precisamente, o pintor dos kolkhozes. Ainda que outros artistas tenham abordado o tema – e ainda que nem tudo na obra de Plastov seja kolkhoz -, esse foi o seu leitmotiv.
Em um artigo de 2018, diz uma historiadora, russa, de arte (é verdade que citando outra autora), sobre a obra de Arkady Plastov:
“Contemplar o fato de que essas [composições clássicas] foram criadas na mesma mesa de trabalho que os desenhos de posters agrícolas e outras propagandas visuais para os kolkhozes, é entender como o artista sofreu e como o talento original e imprevisto estava sendo destruído pelas realidades brutais da vida (…)”.
Por que razão os cartazes que os pintores russos realizaram – muitos deles, magníficos – “destruía” o seu “talento original”?
Aliás, o que é “talento original”? Aquele que não foi “contaminado” pelo socialismo ou pela revolução?
Como é possível achar que a inserção de Plastov na sociedade – a sociedade socialista da URSS – prejudicou o seu trabalho, se este é, precisamente, o seu tema?
Como, então, é possível considerar Plastov um grande pintor, e, ao mesmo tempo, dizer que seu talento “estava sendo destruído”?
É óbvio – como o leitor, abaixo, terá uma amostra – que tais afirmações são inconciliáveis.
Assim, no mesmo texto, a historiadora da arte russa se surpreende pela recepção, em 1938, de “Banhando os cavalos”, um dos principais quadros de Arkady Plastov:
“Pode parecer surpreendente – e até mesmo ir contra o que achamos que sabemos sobre o período – que essa pintura, apesar da ausência de qualquer mensagem ideológica, tenha recebido críticas quase universalmente boas, até brilhantes, de espectadores e críticos. A sensação de liberdade que Plastov experimentou e traduziu em sua arte deve ter chegado àqueles que a viram. Uma reprodução em cores da pintura apareceu na quarta edição da revista “Iskststvo” (Arte) de 1938. Em um artigo intitulado “A exposição no 20º aniversário do Exército Vermelho dos Operários e Camponeses”, a crítica S. Razumovskaya chamou a pintura de Plastov de ‘uma das melhores obras da exposição’. Seus elogios foram expressivos: ‘E eis que Plastov, como o [herói mítico] Ilya Muromets, levantou-se, ficou de pé e alto, para reivindicar instantaneamente seu lugar entre os melhores pintores soviéticos…’.”
Portanto, a historiadora tomava seus preconceitos pela realidade.
Nada disso teria grande importância, se a Galeria Estatal Tretyakov, de Moscou, uma das principais pinacotecas da Rússia, não tivesse colocado esse texto em seu site, como apresentação da obra de Arkady Plastov.
E, também, se a historiadora que escreveu o texto não fosse a filha do pintor, Tatiana Plastova, citando sua mãe, Natalya, a esposa de Arkady Plastov – segundo ela (a filha), a citação é de um livro de memórias (de sua mãe) que “não foi publicado” (cf. The creation of Arkady Plastov’s “Bathing the Horses”. Marking the 125th anniversary of the artist’s birth).
Entretanto, na correspondência de Arkady com Natalya, citada fartamente pela própria Tatiana, não há o que sugira esse “sofrimento pela destruição do talento”.
O pintor, por sinal, recebeu o Prêmio Stalin de primeiro grau em 1946.
Entretanto, existe ainda outro problema. É a menção a que “Banhando os cavalos” não tem “qualquer mensagem ideológica”.
O problema não é tanto a impossibilidade de tal coisa – sobretudo em uma obra na qual soldados do Exército Vermelho banham os seus cavalos, realizada para celebrar o 20º aniversário da força militar da revolução.
Nem a ideia implícita – inteiramente falsa, como os leitores podem conferir nas séries que estamos mostrando – de que o realismo socialista fosse mera propaganda, e não arte.
A questão é posterior a “Banhando os cavalos” – e, nisso, Tatiana Plastova não tem a mínima responsabilidade.
Tentou-se ver no quadro “Primavera” (1954) – não confundir com o quadro de mesmo nome realizado em 1952 – o início da “arte do degelo”, isto é, da contrarrevolução kruschevista na arte, porque essa obra não traria qualquer mensagem. Seria, segundo alguns, a primeira obra do realismo socialista onde não há política nem ideologia.
Outra vez, as obras que estamos mostrando – inclusive as de Arkady Plastov – são suficientes para se perceber o quanto é ridícula essa assertiva.
“Primavera” (1954) mostra a saída de uma “banya” (a sauna russa), em que uma jovem nua veste uma criança, filha ou irmã. Por que os teóricos da “arte do degelo” não acham a mesma coisa da “Primavera” de 1952, em que uma jovem enche um balde com água?
O motivo é simples e nada tem a ver com a arte: porque, em 1952, Kruschev não estava no poder. Ou, dito de outra maneira: porque, em 1952, Stalin estava vivo – mas não em 1954. Teriam, portanto, de admitir, se afirmassem o mesmo da “Primavera” de 1952, que o realismo socialista, em sua grande época, não era o que querem que seja. A outra solução seria propugnar que o “degelo” começou com Stalin…
Mas, deixemos ao leitor a verificação – abaixo poderá ver imagens de todas as obras aqui citadas.
Arkady Plastov nasceu, no ano de 1893, em uma pequena aldeia, Prislonikha, na província de Simbirsk (hoje Uliánovsk, pois Lenin – Vladimir Ilitch Uliánov – também nasceu lá; o nome foi mantido, mesmo depois da destruição da URSS).
Depois de um tempo de ensino religioso (nascera em uma família de pintores de ícones), transferiu-se para Moscou, onde estudou na Escola Central Imperial de Arte Stroganov, e, a partir de 1912, na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou.
Com a Revolução Russa, Plastov voltou à Prislonikha, tornando-se secretário do soviet local, trabalhando no campo durante oito anos.
As obras com que ficou inicialmente conhecido datam de meados da década de 30 (“Festa no kolkhoz”, e, justamente, “Banhando os cavalos”, ambos de 1938).
Durante a II Guerra Mundial, foi autor de uma das obras mais famosas da época: “Depois que os nazistas sobrevoaram” (1942).
Plastov foi, também, um grande ilustrador – sobretudo das obras de Tolstoy, autor que admirava profundamente. Na coletânea abaixo, não incluímos ilustrações – e somente um de seus posters. Voltaremos a eles, assim como aos posters e ilustrações de outros pintores do realismo socialista.
Além do Prêmio Stalin, Plastov foi Artista do Povo da URSS, membro da Academia de Artes da URSS e ganhador do Prêmio Lenin.
Foi condecorado duas vezes com a Ordem de Lenin.
Faleceu em 1972, sobre a mesma terra em que nascera, Prislonikha.
Um de seus contemporâneos, o também grande pintor Pavel Korin (1892-1967), escreveu sobre Plastov um texto notável – até mesmo pela brevidade. A tradução abaixo, a partir do inglês, é nossa, assim como o título.
Arkady Plastov e a alma russa
PAVEL KORIN
Sempre que penso em Arkady Alexandrovich Plastov e em seu trabalho, a primeira coisa que vejo em meus olhos não são suas pinturas encantadoras, mas um desenho dele, mostrando Lev Tolstoy montado em um cavalo, usando um simples casaco e um boné de camponês. As feições rudes, e a barba grisalha de um camponês, respiram o poder de um intelecto magnífico.
Somente um real talento poderia retratar de maneira tão convincente a nobreza da alma russa e a grandeza desse notável homem russo.
A vida criativa de Arkady Plastov nos dá um exemplo de pureza e singularidade de propósito. Camponês de nascimento, ele pinta a vida do país que conhece e ama tão bem. Ele não mostra necessariamente seus poderosos e generosos camponeses no trabalho, ele não mostra sempre as dificuldades que eles têm de enfrentar. No entanto, em seus quadros, a vida do povo se eleva em toda a sua majestade e complexidade.
Quando olhamos para um daqueles velhos vigorosos que comem seu almoço simples, como no quadro “Colheita”, vemos com que reverência e assiduidade eles comem, do mesmo jeito que trabalham – percebemos que apenas um homem que cultivou esse pão em seu campo, de minúsculos brotos verdes à varredura dourada do milho maduro, mas também por sua elevação moral, poderia comê-lo com tanta grandeza e com tão alta qualidade artística.
Ao lado do idoso [em “Colheita”], vemos os netos, que aprenderam nos anos tenros o valor do trabalho do camponês e do pão do camponês. O ar pensativo dessas crianças nos dá uma visão do caráter nacional russo, da fonte principal de sua beleza e força.
A menina, cuidadosa para não derramar uma única gota de leite no quadro “A Ceia do Tratorista”, seu lenço amarrado da mesma maneira que sua mãe e avó costumavam amarrar os seus, um dia se transformará naquela adolescente de tranças longas, assistindo à eterna maravilha da vida, um fluxo cristalino iluminado pelo sol (“Primavera”) e depois se tornará a beleza séria envolta em um lenço azul (“Moça com Bicicleta”).
A aldeia épica de Plastov abrange muitos heróis e vidas que, juntas, produzem uma imagem em mosaico, por assim dizer, da Rússia.
Os trabalhos posteriores de Plastov revelam uma maestria que os anos não diminuíram. Esquema de cores fortes, precisão e naturalidade da composição, simplicidade poética do tema – estas são as características desse maravilhoso pintor.
Gostaria de mencionar mais dois quadros muito significativos de Plastov.
No quadro “Depois que os nazistas sobrevoaram” (1942), um menino pastor é mostrado deitado, com o sangue jorrando de sua cabeça. Esta morte de uma criança, no momento em que milhares de crianças morriam, demonstrava que terrível tragédia acontecera ao povo, quão desumana e antinatural é a guerra.
Uma das telas posteriores de Plastov mostra outro pastor. Desta vez, vemos um belo garoto, seguro de si, com um grande chicote no ombro, usando o gorro de pele dos pastores já crescidos ao cuidar dos cavalos à noite. Ele está olhando para o céu com prazer – talvez seja um avião, a maravilha da tecnologia, que hoje não traz ameaça de morte, ou a cunha de um guindaste. O garoto está no meio de um enorme campo, que se estende até o horizonte. Pode-se ver um rebanho pastando calmamente ao fundo e nuvens flutuando alto no céu [v., abaixo, “Vitya, o menino pastor”].
A imagem está impregnada de liberdade e fé no futuro. Mais uma vez, Plastov deu uma interpretação completamente nova ao eterno tema da aldeia, refletindo em sua imagem o espírito da época, o tempo das esperanças e conquistas, o tempo da paz.
Abaixo, algumas obras de Arkady Plastov.
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