O PIS e a Cofins são fontes de financiamento da Previdência Social – são “contribuições sociais”, definidas pela Constituição de 1988 (artigo 195).
Pois um dos casos de corrupção relatados por Antonio Palocci, em seus depoimentos, é como, por três vezes, a Ambev pagou propina para que esses tributos, sobre bebidas alcoólicas, não fossem aumentados. Já noticiamos esse caso, de modo mais resumido (v. HP 09/08/2018, Ambev pagou propina para Lula e Dilma, revelou Palocci).
Aqui, a gravidade, além da própria propina, é o ataque, em alguma medida, ao financiamento da previdência pública.
Como em outros depoimentos, Palocci apresentou elementos materiais para confirmar o que disse:
a) Contrato de consultoria da Ambev com a Projeto (a empresa de “consultoria” de Palocci);
b) Registros de entrada e saída da Projeto;
c) Histórico dos aumentos de PIS/Cofins;
d) Registros de entrada e saída do Palácio do Planalto;
e) Notas e extratos bancários da Projeto;
f) Bilhetagem telefônica (ou seja, o histórico de suas chamadas telefônicas, assim com aquelas recebidas, inclusive de Lula).
A reação da Ambev à divulgação do depoimento de Palocci é, no mínimo, excêntrica, pois chama as declarações de Palocci de “falsas e incoerentes. Falsas porque nunca fizemos pagamentos de qualquer natureza para obtenção de vantagens indevidas. E incoerentes porque, desde 2015, o setor de bebidas sofreu um grande aumento da carga tributária referente a PIS/Cofins, da ordem de 60%, contradizendo tudo o que foi alegado” (grifo nosso).
Como o leitor pode ver abaixo, Palocci afirmou que a última propina da Ambev para não aumentar, ou adiar o aumento, do PIS/Cofins, foi em 2014.
Portanto, a nota da Ambev responde a uma acusação inexistente. E não responde à acusação real.
Sobre a primeira parte da nota ( “nunca fizemos pagamentos de qualquer natureza para obtenção de vantagens indevidas“), mais excêntrica ainda é a resposta da Ambev à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), segundo a qual os pagamentos à empresa de Palocci, a Projeto, estavam “em linha com o mercado” (sic).
Ninguém, também, perguntou isso.
A questão é por que uma multinacional (aliás, uma empresa estrangeira, formada pela desnacionalização da Brahma e da Antárctica) contratou a empresa de Palocci – e para fazer o quê.
Mas, citemos todo esse trecho da resposta da Ambev à CVM: “Com relação a esse assunto, a Companhia já havia esclarecido publicamente por meio da imprensa em novembro de 2016 que contratou a Projeto Consultoria Empresarial e Financeira Ltda. para a prestação de serviços de consultoria e, por aproximadamente três anos, pagou a tal empresa honorários fixos mensais em linha com o mercado”.
Os advogados têm fama, provavelmente injusta, de sempre defenderem os seus clientes garantindo que são “óbvias” as razões pelas quais eles são inocentes, mesmo que o sujeito seja o Maníaco do Parque.
No trecho acima, se existe algo que não está “esclarecido”, é, exatamente, por que a Ambev contratou e pagou a uma empresinha, de propriedade de um médico, sem corpo técnico, durante três anos.
Mas, talvez, a Ambev tenha razão e tudo já esteja esclarecido: a única credencial da empresa de Palocci era a relação que o dono mantinha com Lula.
Entretanto, há mais.
Ao ler o anexo 3 do depoimento de Palocci, ficamos com a sensação – que pode ou não corresponder à realidade – de que ele contou pouco sobre esse assunto.
Segundo seu relato, a primeira propina da Ambev para que o PIS/Cofins sobre bebidas alcoólicas não fosse aumentado, ocorreu em 2010.
No entanto, muito antes havia desconfianças sobre os motivos que faziam o governo – desde que Palocci era ministro da Fazenda – privilegiar a Ambev.
A que privilégios estamos nos referindo?
O artigo que segue, do jornalista Luís Nassif, foi publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, em 2 de março de 2004:
“No dia 29 de janeiro à noite, saiu uma edição extra do ‘Diário Oficial’ com alterações na forma de cobrança do PIS-Cofins. Há indícios de que as mudanças ocorridas visaram beneficiar a AmBev.
“Há alguns anos a Receita mudou a forma de tributação do PIS e da Cofins na cerveja e em refrigerantes. Em vez de alíquotas sobre o faturamento, passou a cobrar um valor fixo sobre cada hectolitro vendido, independentemente da classificação – se é premium, cerveja clara ou escura, de primeira ou segunda linha. Essa modalidade de cobrança é chamada de ‘pauta fiscal’.
“O argumento da Receita é que inibiria a sonegação. Desde que a medida saiu, os concorrentes denunciaram que beneficiava a AmBev. Como o valor é o mesmo para cada litro produzido, quanto mais cara a cerveja, menor a alíquota cobrada. E a AmBev era a cervejaria com a maior quantidade de produtos mais caros.
“Na mudança da Cofins, a lei 10.933, de 29 de dezembro de 2003, permitiu duas formas de cobrança para a indústria de cervejas, ambas monofásicas (cobradas uma vez apenas, na hora da venda). Poderia ser por alíquota de 8% sobre o faturamento ou por ‘pauta fiscal’, à escolha do freguês. Essa possibilidade estava prevista nos artigos 51 e 52 da lei. Mas o artigo 53 autorizava o Poder Executivo a ‘fixar coeficiente para redução das alíquotas previstas nos artigos 51 ou 52 (…) a qualquer tempo’, podendo até extingui-las.
“Pelos cálculos da Schincariol, se optasse pela pauta fiscal, pagaria R$ 2,97 por caixa de cerveja; se pela alíquota de 8%, o valor cairia para R$ 1,04. Não havia dúvidas de que a alíquota ‘ad valorem’ (que incidia sobre o valor) era mais vantajosa do que a ‘pauta’.
“A Schincariol se preparava para aderir à alíquota quando – segundo seus dirigentes – se ficou sabendo que a AmBev optaria pela ‘pauta fiscal’. Refizeram as contas e não entenderam a razão da opção. Pelo sim, pelo não, protocolou em todos o escritórios da Receita a possibilidade de mudar de posição, caso houvesse alteração no valor da ‘pauta fiscal’.
“Na quinta-feira, 29 de janeiro, à noite, saiu a edição extra do ‘DO’. Nele, a instrução normativa 388, da Receita Federal, permitia optar ou pela alíquota ou pelo valor fixo. Já a instrução normativa 389 elevou de 8% para 14,5% a alíquota para a venda de bebidas e embalagens. A mesma edição extra trazia o decreto 4.965, cuja única finalidade foi reduzir em 45% o valor da ‘pauta fiscal’.
“Inverteu-se completamente o quadro. Sobre cada caixa, o valor do imposto caiu de R$ 2,97 para R$ 1,63 pelo critério da ‘pauta fiscal’, enquanto subiu de R$ 1,04 para R$ 1,87 pelo critério da alíquota.
“O ‘DO’ foi distribuído no dia 30 de manhã. Quem quisesse optar poderia fazer até o final do dia, porque o prazo fatal – 31 de janeiro – cairia em um sábado.
“Gerente de tributos da AmBev, Ricardo Mello explica que a intenção da Receita – ao definir uma alíquota extremamente alta para a ‘pauta fiscal’ e depois dar desconto no último dia de opção – visou dar flexibilidade para poder mexer no valor sem a necessidade de uma nova lei, enquanto avaliava seus efeitos. Não entende a razão de ter sido publicado no último dia de opção, mas sustenta que desde o dia 28 a informação já constava no site da Receita. Já a Schincariol sustenta que, no máximo, acenaram com a possibilidade vaga de uma redução na ‘pauta fiscal’ e que, se não tivesse sido alertada pelos movimentos da concorrente, poderia ter sido alijada do mercado. Haveria um aumento de 15% no pagamento de PIS-Cofins em relação à concorrente.
“No mesmo dia 30 em que saiu o ‘DO’, duas instituições já tinham prontas avaliações sobre os resultados positivos que as mudanças traziam para a AmBev, o Morgan Stanley e o Credit Suisse First Boston. O relatório do Credit Suisse dizia: ‘Ontem a Receita brasileira fez um ajuste na proposta original (do PIS-Cofins). As empresas que escolherem a primeira opção (alíquota) terão um novo aumento na tributação do PIS-Cofins – grande aumento de carga tributária. As empresas que escolherem tal opção deverão fazê-lo até o final do dia de hoje e não poderão abrir mão da escolha do sistema de tributação até maio de 2005. Assim, o incentivo econômico é para as empresas que escolherem a segunda opção’.
“A conclusão do relatório é clara: o banco decidiu manter o rating da AmBev graças: ‘1) a essa saída (do pagamento pelo montante fixo); 2) ao potencial de melhora do valor relativo da marca AmBev versus as marcas B e 3) à recente melhora do ‘market share’.
“O relatório do Morgan dizia que ‘as mudanças são mais favoráveis para a AmBev do que pensávamos. Apenas aumentarão a tributação para a AmBev na sua contribuição marginal, enquanto para os concorrentes o aumento de tributação será maior’.” (cf. Luís Nassif, A cerveja e a Cofins, FSP 02/03/2004).
ANEXO 3
Voltemos ao depoimento de Palocci. A sinopse do caso é a seguinte:
“No caso da Ambev, tal empresa solicitou a Palocci que ingerisse ilicitamente sobre o governo a fim de que não fosse determinado, no âmbito da Presidência da República, o aumento de PIS/Cofins sobre o comércio de cerveja, ou para que tal aumento fosse protelado. Por conta de suas diversas intervenções, Palocci recebeu o valor total de R$ 1,140 milhão em vantagens indevidas”.
Vamos, então, ao terceiro anexo dos depoimentos de Palocci:
“A Ambev, por intermédio de Victório Carlos de Marchi e Pedro de Abreu Mariani, contratou Antonio Palocci com a finalidade específica de que este intercedesse junto ao Governo Federal, seja como Deputado Federal, Ministro da Casa Civil ou como prócer do Partido dos Trabalhadores, no sentido de impedir ou atrasar o aumento do PIS/Cofins incidente sobre bebidas alcoólicas.
“Nesse contexto, três foram os atos realizados para favorecer a empresa, os quais tiveram como contrapartida pagamentos indevidos à Projeto Consultoria, à LILS [a empresa de palestras de Lula] e à campanha presidencial de 2014.
“O primeiro ocorreu em 2010.
“Nesta data, seguindo solicitação da Ambev, Antonio Palocci, à época Deputado Federal, intercedeu junto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para impedir que o imposto PIS/Cofins fosse aumentado naquele ano para as bebidas alcoólicas.
“Antonio Palocci disse ao presidente que a medida, além de ser bem vista pelo setor, poderia gerar o pagamento de vantagens indevidas para Luiz Inácio Lula da Silva.
“Após a conversa, Luiz Inácio Lula da Silva aprovou o pedido de Antonio Palocci e disse que não iria realizar o aumento do PIS/Cofins em 2010, mesmo diante do fato de que o decreto já estava em sua mesa para ser assinado, o que efetivamente foi cumprido pelo então presidente.
“Em contrapartida, Antonio Palocci recebeu vantagens indevidas da Ambev por intermédio de um contrato de consultoria firmado com a empresa, enquanto que Luiz Inácio Lula da Silva recebeu R$ 350.113,99 mil reais da empresa por intermédio de um depósito na LILS.
“O segundo ato ocorreu em 2013, quando Antonio Palocci intercedeu junto à Dilma Rousseff para que o aumento do PIS/Cofins fosse realizado apenas no segundo semestre do ano e não no primeiro semestre como desejava o governo.
“Vale dizer que, efetivamente, o decreto aumentando o referido imposto foi prolatado apenas em setembro de 2013, contrariamente aos demais anos, nos quais tal decreto era sempre feito no primeiro semestre fiscal. Em contrapartida à sua ação, Antonio Palocci recebeu da Ambev vantagens indevidas por intermédio de contratos de consultoria firmados entre a empresa e a Projeto.
“Por fim, o terceiro ato ocorreu em 2014.
“Em setembro de 2014, Antonio Palocci recebeu a informação de Branislav Kontic [assessor de Palocci na Projeto] no sentido de que este tinha sido procurado pelo setor jurídico da empresa Ambev, por intermédio de Pedro de Abreu Mariani, o qual estava preocupado com um possível aumento do imposto PIS/Cofins em 2014.
“Na verdade, de acordo com a informação que tinha sido repassada pela empresa a Branislav, esse aumento estava sendo preparado no Ministério da Fazenda e, na sequência, iria para o gabinete da presidência para ser decretado.
“Diante da informação, Antonio Palocci determinou para que Branislav Kontic fosse a Brasília/DF, para conversar com Giles Azevedo, então assessor especial da presidente Dilma Rousseff, e verificar se a informação do aumento tributário procedia ou não.
“No encontro, Giles Azevedo confirmou o aumento do PIS/Cofins para as próximas semanas daquele mês.
“Diante disto, seguindo a orientação de Antonio Palocci, Branislav Kontic indagou a Giles Azevedo se o aumento poderia ser evitado, vez que a Ambev poderia – em contrapartida ao não aumento do PIS/Cofins – realizar o pagamento de vantagens indevidas ao Governo Federal (sic), por intermédio de doações eleitorais para a campanha presidencial de Dilma Rousseff daquele ano.
“Giles Azevedo se mostrou animado com a proposição e aceitou de imediato, dizendo que precisaria para tanto de uma doação de no mínimo R$ 6 milhões de reais.
“Em seguida, Giles Azevedo disse ainda que iria conversar com Dilma Rousseff sobre o tema, mas que, se a doação ocorresse, o imposto não iria aumentar.
“De volta a São Paulo, Branislav Kontic, sob a orientação de Antonio Palocci, procurou a empresa Ambev e disse que o aumento do PIS/Cofins realmente iria ocorrer, mas que ele poderia ser evitado pelo Governo Federal, sob a condição de que a empresa realizasse doações eleitorais para a campanha presidencial de 2014, no valor mínimo de R$ 6 milhões de reais.
“Aquiescendo ao pedido, a Ambev, por intermédio de João Maurício Giffoni de Castro Neves e Pedro de Abreu Mariani, realizou então repasses de R$ 7,5 milhões de reais para a campanha de Dilma Rousseff, dos quais R$ 6 milhões representavam a contrapartida expressa ao ato de ofício realizado pelo Governo Federal para não aumentar o PIS/Cofins.
“Antonio Palocci recebeu sua parte das vantagens indevidas pagas pela empresa através do contrato que a Ambev tinha com a Projeto.
“A conversa sobre a doação para campanha em 2014 foi direta: ‘pagando bem, o imposto não seria aumentado’.”.
C.L.
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