CARLOS LOPES
(HP, 17/01/2014)
De dezembro para cá, abundaram as declarações, entrevistas e outros expedientes nos garantindo que o país vai muito bem – e, ao mesmo tempo, que vai sair do atoleiro econômico, porque os estrangeiros vão nos salvar, aliviando-nos do peso de nossos aeroportos, estradas, ferrovias, petróleo e o escambau.
Por exemplo, o sr. Luciano Coutinho, presidente do BNDES, no dia 18 de dezembro, apresentou um quadro glorioso, em que se lia “Capex associado a leilões já realizados”. Abaixo, uma lista de privatizações onde o único destaque era o campo de Libra, que iria trazer um “capex” (um investimento fixo) de US$ 150 bilhões, certamente que provenientes dos cofres da Shell, pois o sr. Coutinho falava das vantagens proporcionadas pelas “privatizações através de concessões”. Portanto, de onde mais poderiam vir aqueles US$ 150 bilhões?
Preocupado com o futuro do país, Coutinho não explicou por que, no momento em que a indústria apresenta índices de crescimento tendentes a zero (ou pior), os “desembolsos” do BNDES às empresas industriais estiveram, em 2013, nada menos que 27,40% abaixo daqueles de 2010, último ano do governo Lula (cf. BNDES, “Desempenho Operacional do Sistema BNDES por setor CNAE“, comparado à apresentação do sr. Coutinho, “Valores por fases das operações/Jan-Dez (estimado) 2013“, slide número 17. Na entrevista, Coutinho fez a comparação somente com 2012).
Aliás, Coutinho nem tocou nesse assunto. Preferiu o “capex” da privatização, descarregando alguns contêineres de puxa-saquismo em cima da presidente Dilma, à custa de falar o contrário do que sempre falou (ter o Mantega como ministro, acaba nisso: os puxa-sacos acham que basta puxar o saco para ocupar o lugar; bem fazia o presidente Lula, que só lembrava que o Mantega era ministro na hora de passar-lhe alguma esculhambação).
O “capex” somente estava ali para que Coutinho afirmasse que, SEM entregar o país, a taxa de investimento, daqui a cinco anos, vai ser 20,6% do PIB, enquanto que, entregando o país (“COM concessões” – as letras maiúsculas de “SEM” e “COM” são do Coutinho), essa taxa chegará a fenomenais 22,2% em 2018, devido ao “capex” das multinacionais nas “concessões”.
Não sabemos como o Coutinho adivinhou o resultado de leilões que ainda não aconteceram (se o investimento depende deles, é de se supor que seu resultado tenha alguma coisa a ver com isso; ou será que o resultado já está predeterminado?) – nem o que vai acontecer nos próximos cinco anos, inclusive o resultado da eleição.
Nós continuamos a preferir a promessa da presidente Dilma, através do Mantega, no começo do governo: elevar a taxa de investimento de 19,5% para 25% até 2014 – e sem entregar o país. É verdade que até agora o seu governo derrubou a taxa de 19,5% do PIB (2010) para 18,1% (2012), mas a proposta dela era melhor – e mais exequível – do que chegar a uma taxa de investimento de 22,2% depois de seis anos de entrega do país aos monopólios externos(2013 a 2018).
EXEMPLOS
O Coutinho sabe disso. Há 17 anos, ele mesmo sublinhou a miséria no investimento provocada pela política de Fernando Henrique Cardoso, essencialmente a mesma que hoje ele está defendendo (cf. L. Coutinho, “A especialização regressiva: um balanço do desempenho industrial pós-estabilização“, in J.P.R. Velloso (org.), “Brasil: Desafios de um País em Transformação“, J. Olympio, Rio, 1997, p. 86 e 91).
Aliás, bastariam alguns exemplos da taxa de investimento brasileira para perceber a que conduz a política de privatização e submissão extrema aos monopólios financeiros externos (a fonte das percentagens abaixo é o IBGE):
1975: 23,3%;
1981: 24,3%;
1988: 24,3%;
1990: 16,7%;
1994: 20,7%;
1999: 15,7%;
2010: 19,5%.
Dificilmente seria possível, em termos numéricos, um quadro mais claro: a taxa de investimento cai nos governos Collor e Fernando Henrique e se recupera, parcialmente, no governo Lula. O que, aliás, tem toda a lógica, pois a privatização de Collor e Fernando Henrique não era mais que a doação de investimentos já realizados pela sociedade (tal como os aeroportos e rodovias do fantasioso “capex” de Coutinho). Quanto a novos investimentos, por que os açambarcadores os fariam, se estão ganhando toneladas de dólares com o que adquiriram sem gastar, financiados que foram pelo BNDES?
Porém, vejamos outro ponto de vista – aquele das multinacionais norte-americanas, que, segundo o ministro Pimentel, são os fregueses a quem o governo quer oferecer a propriedade pública (literalmente, disse Pimentel, na sede do Goldman Sachs, em Nova Iorque: “O governo colocou em oferta pública o maior pacote de concessões na história do Brasil. Nem no tempo do Império, da Colônia, houve uma oferta tão grande. Então o objetivo nosso aqui é mostrar isso ao investidor americano, às grandes empresas, aos grandes bancos e fundos” – grifo nosso).
CAPEX
Veja o leitor o que é a vida: em nossas recentes férias, quase por mero acaso, topamos com as estatísticas oficiais dos EUA sobre o investimento em máquinas e instalações das filiais de multinacionais norte-americanas fora do país, inclusive no Brasil.
Os estatísticos norte-americanos, seguindo os seus administradores de empresa, publicam boletins desses investimentos sob a forma de “capex”, que é a sigla de “capital expenditure” (gasto com capital), assim como “Opex”, para eles, é a sigla de “operational expenditure” (gasto operacional).
Ao ler essas estatísticas, lembrei-me de um amigo, segundo o qual os entreguistas são uma cepa tão sem imaginação – tão sem pensamento ou raciocínio – que, para levar ao ar uma porcaria como o “Big Brother Brazil” (BBB), têm de pagar royalties aos pornógrafos holandeses. Realmente, quem tem por norma de vida a renúncia à própria cabeça, não pode ter imaginação ou raciocínio.
Assim é, também, o “capex” para essa turma: não é porque o conceito ou o nome sejam úteis que eles o usam ou repetem – eles o fazem, simplesmente, para imitar os executivos das corporações norte-americanas. Entretanto, o que para esses é uma simplificação útil, torna-se, quando usado aqui, uma sigla críptica que tem o condão de enganar trouxas e esmagar pessoas de boa fé – para que elas achem muito complicadas essas coisas econômicas, deixando o terreno aberto para os picaretas.
Mas, já que o sr. Coutinho falou no assunto, vamos aos números do Bureau of Economic Analysis (BEA) sobre o “capex” – a aquisição de bens de produção – das multinacionais dos EUA em outros países. Os dados vão até 2011, pois só em abril será divulgado o relatório de 2012 (BEA, Direct Investment & Multinational Companies (MNCs), Summary Estimates for Multinational Companies).
INVESTIMENTO
As 635 filiais de multinacionais norte-americanas – registradas pelo BEA como existentes em nosso país – fizeram, em 2011, somadas, um investimento produtivo (“capital expenditure” ou “capex”) de US$ 9,382 bilhões, enquanto só a Petrobrás apresentou um “capex” de US$ 43,164 bilhões no mesmo ano (cf. PETROBRAS, “Destaques Operacionais, Histórico de Investimentos Nominal 2009-2012“).
Alguém poderia dizer que, no Brasil, só existe uma Petrobrás – mas seria alguém inconformado com a existência da nossa maior empresa. Além disso, quanto ao “capex”, não é verdade que a Petrobrás seja caso único: em 2011, também o da Vale (US$ 13,426 bilhões de um investimento total de US$ 17,994 bilhões) foi superior à soma das 635 filiais de multinacionais dos EUA (cf. relatório Form 20-F da Vale para a United States Securities and Exchange Commission, April 17, 2012, p. 64 – a SEC é o órgão fiscalizador das Bolsas norte-americanas).
Apenas para esclarecimento do leitor, vejamos a soma do “capex” de todas as filiais de multinacionais que o BEA registra como instaladas no Brasil (eram 603 em 2009; 599 em 2010 e 635 em 2011), comparado ao “capex” da Petrobrás:
Observe-se que, segundo o BEA, em 2011, essas 635 filiais de multinacionais dos EUAtiveram um faturamento bruto de US$ 203,611 bilhões, enquanto a Petrobrás (faturamento bruto no mesmo ano: US$ 145,915 bilhões) investiu quase cinco vezes mais – com a vantagem de não remeter lucros para fora nem superfaturar importações feitas da matriz.
NO MUNDO
O sr. Coutinho tanto sabe que as multinacionais não vêm para investir, que está propondo (e efetivando, sem nenhum pejo) desembolsos do BNDES para que as empresas estrangeiras açambarquem as estradas, ferrovias, aeroportos, o pré-sal, etc. – e que não haja risco para as multinacionais. O risco ficaria com o Estado, através de uma “agência de fundos e garantias para fornecer segurança complementar para os riscos não segurados ou segurados”.
Foi exatamente o que garantiu aos especuladores norte-americanos, na sede do Goldman Sachs, em Nova Iorque, a 25 de setembro do ano passado, no seminário ““The Brazil Infrastructure Opportunity” – o mesmo em que o ministro Pimentel exibiu sua paixão intelectual pelo Brasil-colônia.
Disse Coutinho: “criamos um pacote sólido, bem equilibrado, para que o grupo a empreender no Brasil tenha um risco muito limitado“. Esse “risco muito limitado” é infinitesimal, ou seja, zero. Uma das vantagens da Internet é que tudo fica registrado. O leitor poderá conferir a íntegra da intervenção de Coutinho no vídeo: http://noticias.band.uol.com.br/the-brazil-infrastructure-opportunity/noticia/?id=100000633481&t=presidente-do-bndes-e-preciso-aumentar-a-competitividade-do-pais.
Portanto, essa história de “capex associado às concessões” é, sucintamente, conversa fiada – exceto se “capex” for um novo nome para os empréstimos do BNDES à multinacionais que vão enviar esse dinheiro para suas matrizes.
Até porque, vejamos como investem as filiais de multinacionais dos EUA no conjunto do mundo.
Os números de 2011 que usamos aqui já estão atualizados de acordo com a primeira revisão do BEA, feita em junho do ano passado, e referem-se a “filiais com ativos, vendas ou receita líquida maior que US$ 25 milhões, com propriedade majoritária norte-americana“. Por isso, elas são 635, ao invés das mais de 2.800 registradas pelo Censo de Capitais Estrangeiros do Banco Central do Brasil (cf. BEA, “Summary Estimates for Multinational Companies: Employment, Sales, and Capital Expenditures for 2011″, e, também, “Selected Data for Majority-Owned Foreign Affiliates in All Countries in Which Investment Was Reported, 2011″).
O BEA é um órgão do Departamento de Comércio dos EUA. Logo, podemos ficar seguros de que as filiais de multinacionais registradas por ele são as que realmente importam. Um sinal dessa verdade é que o BC, apesar de registrar 2.891 empresas com participação acionária norte-americana (nem todas majoritariamente, ao contrário dos dados que citamos do BEA), fornece, como total do estoque de investimento direto norte-americano no Brasil, o valor de US$ 115,3 bilhões para 2011 (19,6% do estoque total de investimento direto estrangeiro), o que é coerente com a série de dados do BEA sobre as filiais de multinacionais norte-americanas no Brasil (cf. BCB, Censo de Capitais Estrangeiros no País – Resultados para 2010 e 2011, p. 6; Quadro VII – Investimento estrangeiro direto no País – Participação no capital; Quadro XI – Quantidade de empresas de IED – Distribuição por país do investidor final).
Na verdade, devido aos procedimentos mais do que criativos que estão embutidos nas contas das multinacionais, não estamos nem um pouco seguros de que nem os investimentos (“capex”) declarados ao governo dos EUA foram realizados. Porém, mesmo considerando verdadeiros esses investimentos, somente quem gosta de se iludir – ou ganha com a ilusão dos outros – pode achar que uma filial de multinacional, deixada à solta dentro do país, é algo além de uma remetedora de recursos nossos para fora, seja de forma financeira ou comercial (isto é, através de importações).
O investimento total (“capex”), fora dos EUA, em máquinas e instalações, das multinacionais norte-americanas, foram os seguintes:
1989: US$ 58,9 bilhões;
1994: US$ 71,7 bilhões;
1999: US$ 114,6 bilhões;
2004: US$ 125,2 bilhões;
2007: US$ 174,1 bilhões;
2008: US$ 183,6 bilhões;
2009: US$ 167,1 bilhões;
2010: US$ 166,3 bilhões;
2011: US$ 189,9 bilhões.
[cf. BEA, “Summary 2011″, p. 5, “Table 1, Employment, Capital Expenditures, and Sales by U.S. Multinational Companies for Selected Years“. As cifras dos três últimos anos correspondem a 25.037 filiais (2009), 25.153 filiais (2010) e 25.660 filiais (2011).]
Para que o leitor tenha uma ideia: o gasto com máquinas, equipamentos e instalações (formação bruta de capital fixo ou FBCF) no Brasil, em 2011, foi US$ 426 bilhões (R$ 798,72 bilhões convertidos em dólares pela cotação do último dia de 2011; se usarmos a cotação média do ano, a magnitude é ainda maior: US$ 478 bilhões).
Portanto, o investimento de todas as multinacionais norte-americanas no mundo (fora dos EUA) foi menos da metade da FBCF no Brasil – e num ano em que o aumento do investimento caiu de +21,3% (2010) para 4,7%, devido à política econômica do governo Dilma.
VENDAS
Agora, vejamos, para os mesmos anos, o faturamento bruto – ou seja, as vendas – fora dos EUA dessas filiais de multinacionais:
1989: US$ 1,094 trilhão;
1994: US$ 1,495 trilhão;
1999: US$ 2,307 trilhões;
2004: US$ 3,442 trilhões;
2007: US$ 4,991 trilhões;
2008: US$ 5,508 trilhões;
2009: US$ 4,784 trilhões;
2010: US$ 5,168 trilhões;
2011: US$ 5,968 trilhões.
[cf. idem.]
A relação entre vendas e investimento é algo descomunal – tão pequenos são os investimentos quando comparados ao faturamento. É verdade que as multinacionais investem pouco em qualquer lugar – o que é uma característica do monopólio. Porém, a situação é pior fora dos EUA.
No seu país-sede, o investimento (“capex”) em relação ao faturamento dessas multinacionais era de 6,12% em 1989, elevou-se a 6,65% em 1999 e, em 2011, estava reduzido a 4,81%.
Fora dos EUA, o “capex” das filiais de multinacionais norte-americanas estava em 5,38% do faturamento em 1989, caiu para 4,97% em 1999 e continuou caindo, reduzindo-se a 3,21% em 2011.
NO BRASIL
Por último, vejamos os investimentos das multinacionais norte-americanas no Brasil nos três últimos anos, divulgados pelo BEA:
2009: US$ 8,334 bilhões;
2010: US$ 8,512 bilhões;
2011: US$ 9,382 bilhões.
Comparemos esse gasto com o faturamento dessas mesmas filiais de multinacionais:
2009: US$ 142,023 bilhões;
2010: US$ 171,794 bilhões;
2011: US$ 203,611 bilhões.
FIM
Nosso objetivo foi apenas fornecer ao leitor algumas informações que nos tinham, antes, passado despercebidas. Não precisamos de uma conclusão política, além daquela a que cada leitor pode chegar por si mesmo. Mas é justo registrar que o epitáfio dessa política já foi escrito – e não apenas por nós.
Eis um exemplo:
“… codificada nos mandamentos do ‘Consenso de Washington’ – que organizou a atuação das agências multilaterais de regulação do comércio, finanças e supervisão dos países em desenvolvimento – animada pelos enormes fluxos de capitais e pelo extraordinário processo de valorização dos ativos financeiros; e entronizada como totem supremo pela grande mídia, a grande onda ideológica do “borderless world” [mundo sem fronteiras] engolfou quase todos os países, partidos políticos e sociedades nos anos 90.
(…)
“Estado, regulação pública, empresa nacional, projeto de desenvolvimento, proteção, soberania, autonomia, capacitação tecnológica, interesse nacional, direitos sociais e trabalhistas passaram a constar de um índex maldito – vocábulos banidos do novo dicionário politicamente correto.
(…)
“A desnacionalização foi rápida, crescente e profunda na indústria e depois em setores de serviços e de infraestrutura. Mais que triplicou de 1995 a 1999 o estoque de investimento direto estrangeiro, em larga medida em setores que não podem exportar (“non tradeables”), mas que gerarão um substancial fluxo futuro de remessas de lucros, dividendos e outras rendas para o exterior, pressionando o balanço de pagamentos do país – hoje estruturalmente debilitado e ponto nodal de fragilização do Estado brasileiro.
“Mas não é só. O custo de capital brutalmente desfavorável (dado pelos juros elevadíssimos e pelo alto risco-país) incentivou a alienação de grandes empresas nacionais; esvaziou núcleos próprios, importantes, de desenvolvimento tecnológico; suprimiu dos mercados marcas brasileiras (muitas delas centenárias); aniquilou empresas e projetos inovadores; e subordinou ou transferiu centros relevantes de decisão privada para o exterior. Setores fundamentais para a revolução tecnológica, como o de telecomunicações, foram irresponsavelmente entregues a empresas estrangeiras (neste caso, ademais, sob um modelo empresarial pulverizado e ineficiente).
“A elite brasileira parece estar finalmente acordando para as malignas implicações desse verdadeiro desmonte do Brasil enquanto nação, enquanto estrutura capitalista e enquanto Estado”. [LUCIANO COUTINHO, “Crônica de um grande desmonte“, FSP, 30/01/2000].
O que houve com o sr. Coutinho? Como no poema de Machado, “Dizem que ensandeceu e que não sabe como/ Perdeu a sua mosca azul“.
No atual governo, não é o único.