CARLOS LOPES
Quando, em 1960, Igor Grabar, aos 89 anos, encerrou sua vida artística e biológica, Sergei Gerasimov (a quem dedicamos a quinta parte desta série) declarou:
“Devemos considerar algo muito afortunado para a arte russa que este homem tenha realmente existido.”
Grabar foi o antecessor de Sergei Gerasimov na diretoria da Escola de Arte V.I. Surikov (MGHI V.I. Surikov) – e, como já mencionamos, foi a convite de Grabar que S. Gerasimov tornou-se professor dessa escola (v. HP 21/10/2019, O realismo socialista na pintura (V): Sergei Gerasimov).
A obra de Grabar parece destinada a desmentir litros de tinta e papel (ou, agora, espaços em discos de computador) usados pelo que já se escreveu – e ainda se escreve – sobre o realismo socialista.
Mesmo as suas obras com tema histórico contemporâneo (“V.I. Lenin em linha direta“, de 1933, e “Camponeses visitam Lenin“, de 1938) estão muito longe dos estereótipos que alguns atribuem à pintura soviética da época.
Em Igor Emanuelvitch Grabar, existe algo importante a ressaltar, que o distingue da maioria dos outros artistas soviéticos: ele estava consagrado como grande pintor já antes da Revolução de 1917, tanto na Rússia quanto no exterior. Em 1913 – portanto, quatro anos antes da Revolução – Grabar foi escolhido pela Duma da Cidade de Moscou para dirigir a Galeria Tretyakov, o principal museu de arte contemporânea da Rússia, devido à sua reputação como pintor, crítico e historiador da arte.
[N.HP: A Galeria Tretyakov, naquela época – e desde que começou a ser constituída, em 1856 -, era propriedade da família de mesmo nome. Porém, de acordo com o testamento de seu fundador, Pavel Tretyakov, a administração foi passada, após a sua morte, em 1898, para a Duma de Moscou, o equivalente à Câmara de Vereadores, e para um conselho, encabeçado por uma de suas filhas. Em 1918, depois da Revolução, a Galeria foi nacionalizada, tornando-se, como até hoje, a Galeria Estatal Tretyakov. (cf. The Tretyakov Gallery loses its Patron e The famous artist and art historian Igor Grabar became the new patron of the Gallery.]
Uma parte ponderável dos trabalhos mostrados abaixo, portanto, são anteriores à Revolução. Não é possível aquilatar minimamente a importância da obra de Igor Grabar, sua contribuição ao realismo socialista, assim como a sua evolução, se esse período pré-revolucionário não for levado em consideração.
A dificuldade para sintetizar em alguns trabalhos o conjunto de sua obra é a sua profusão, ao longo de 70 anos de atividade.
O leitor poderá sentir, pela amostra, que Grabar, numa época em que o cubismo e outras tendências “formalistas” (não fossem russos Kandinsky e Malevitch) faziam furor – ou, pelo menos, faziam barulho – entre os pintores russos, situou-se, desde o início, sempre no terreno do realismo, como demonstra o seu primeiro trabalho importante, “Telhado sob neve” (1889).
Em muitos escritos sobre Grabar – sobretudo naqueles que mal disfarçam a intenção de promover a venda de quadros subtraídos ao patrimônio da URSS – acentua-se uma influência, sobre ele, do impressionismo, uma influência que, realmente, existiu. Mas o próprio pintor se referiu a isso:
“A superação do impressionismo deu à pincelada muita liberdade, por isso imediatamente libertou o trato das formas e a arte de pintar, simplificando-a, aproximando-a mais da síntese.”
Ele considerou, portanto, que o impressionismo era limitante. Daí falar em “superação do impressionismo”, inclusive como condição para uma liberdade maior na arte.
Tal superação e liberdade são relativamente fáceis de perceber, abaixo, nas telas realizadas a partir da segunda metade da década de 20, comparadas a algumas outras anteriores.
Embora, mesmo nesses anos, o realismo predomina em telas como “A menina do lenço russo” (1890), “Babá com criança” (1892) e “Retrato de Emanuel Grabar” (1895).
LEMBRANÇAS
Grabar manteve, sempre, uma relação pessoal com Stalin – inclusive registrada pela correspondência entre os dois. Com exceção de Alexander Gerasimov, com quem iniciamos esta série, ele foi, provavelmente, o pintor que, pessoalmente, foi mais próximo de Stalin.
Mas isso lhe causa problemas até hoje – quase seis décadas após a sua morte.
Recentemente, li um ensaio – russo – sobre Grabar onde se dizia que sua proximidade com Stalin era tanta, tanta, tanta, que lhe permitiu até sustentar pontos de vistas opostos aos do governo soviético e do Partido Comunista – ou seja, opostos aos pontos de vista do próprio Stalin.
Portanto, somente podemos concluir que esse Stalin devia ser um sujeito muito democrático… Por mais que seja verdade, não era essa a tese do ensaísta.
[N.HP: Esse tipo de moto-nivelamento da história – pois se trata de extirpar contradições insanáveis, que mostram o conjunto da falsificação – proliferou, na Rússia, há mais de 20 anos, quando, após a abertura dos arquivos soviéticos, alguns sentiram necessidade de explicar por que o conteúdo dos arquivos não confirmava aquilo que se disse de Stalin, do Governo Soviético e do Partido Comunista durante décadas e décadas. O exemplar mais conhecido no gênero é o livro de um oportunista com passagem pelo teatro e pela TV, segundo o qual o fato dos arquivos não confirmarem as narrativas kruschevistas e imperialistas, é a maior prova de que elas são verdadeiras, pois Stalin era tão maquiavélico, tão maquiavélico, que não dava ordens para que seus associados cometessem crimes. Ele os fazia adivinhar qual era a sua vontade (e ai de quem não adivinhasse!). Lá por 1997, o sujeito enriqueceu com esse tipo de bobagem. Hoje, devido à decadência do gênero nos últimos anos, vende ingressos – aliás, caros – para palestras sobre o que escreveu. Sempre às custas de Stalin.]
Entretanto, um homem como o pintor soviético Alexander Labas – que não era exatamente um entusiasta do realismo socialista – esboçou, em suas Memórias, a sua lembrança de Igor Grabar:
“Foi nos anos trinta. Eu estava no estúdio de Igor Emanuelvitch Grabar. Ele me mostrou uma série de retratos de cientistas. Eram grandes, um pouco maiores que o tamanho real. Igor Emanuelvitch disse que esse tamanho correspondia ao seu ponto de vista de que, em nossa época, pessoas notáveis, figuras públicas, deveriam ser pintadas para salas grandes, museus, e não como antes, para um ambiente de câmara [isto é, para coleções particulares]. Ele mostrou-me muitos retratos e me disse que pintou tudo aquilo em um ano. Lembro que estendi minhas mãos – tudo isso! Sei como é difícil pintar retratos e quanto tempo extra é preciso gastar para que aconteçam as sessões de pintura com os retratados.
“Ele respondeu: ‘Sim, isso é verdade, sempre se gasta muito tempo, mas depende muito de como você distribui o seu tempo e com que firmeza você mantém essa distribuição’.
“Perguntei, então, como era o seu dia de trabalho. Ele respondeu que estava trabalhando em um livro sobre I.Y. Repin e o escrevia pela manhã, três ou quatro horas todos os dias, começando muito cedo. Então, fazia uma pequena pausa e começava a pintar os retratos. Depois de trabalhar por várias horas, seguia para outras atividades.
“Lembro-me de Igor Emanuelvitch em Leningrado, quando trabalhamos na comissão organizadora da exposição para o 15º aniversário do Poder Soviético. Nós, membros dessa comissão, morávamos no Hotel Astoria, e, às vezes, pela manhã, íamos até Igor Emanuelvitch, que era o presidente da comissão, e tomávamos café da manhã com ele. À mesa, durante uma reunião improvisada, ele conseguia servir café a todos e oferecer algo mais – em uma palavra, era o anfitrião mais hospitaleiro. Seu senso de organização também era visível ali. A mesma coisa no jantar – que ele sempre conduzia. Às 11 horas da noite, Igor Emanuelvitch dizia ‘boa noite’ e não havia mais debates, nem conversas. Obviamente, não havia regras gerais. Igor Emanuelvitch era único.”
Pelo livro sobre Ilya Repin – o grande pintor realista russo anterior à Revolução, que foi seu professor – Igor Grabar recebeu, em 1941, o Prêmio Stalin.
Grabar também recebeu os títulos de Artista do Povo da Rússia (1943) e Artista do Povo da URSS (1956).
Foi condecorado duas vezes com a Ordem de Lenin (1945 e 1946) e duas vezes com a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho (1940 e 1954).
Membro da Academia de Ciências da URSS desde 1943, fundou, nessa instituição, o Instituto de História da Arte, do qual foi diretor desde 1944 até a sua morte, em 1960, iniciando a publicação dos 13 volumes da “História da Arte Russa”.
Por fim, foi, desde 1947, membro da Academia de Artes da URSS.
Entre os seus livros, além daquele dedicado a Repin, há monografias sobre Serov e sobre Rembrandt.
VIDA
Grabar não nasceu na Rússia, mas na Hungria – isto é, no então Império Austro-Húngaro -, em Budapeste, no ano de 1871.
Pertencia à minoria rutena, eslavos que, na Hungria, resistiam a ser assimilados pela etnia dominante, os magiares.
A vida desses eslavos, os chamados rutenos dos Cárpatos, era bastante difícil, por motivos políticos – o avô materno de Grabar, Adolf Ivanovitch Dobryansky, era um expoente do movimento que pretendia unir os eslavos na Europa (os húngaros, ao contrário dos russos, não são eslavos). Tanto seu avô quanto sua mãe, Olga Grabar, chegaram a ser julgados por “alta traição”. Quanto ao pai, Emanuel Ivanovitch Grabar, deputado eleito pela minoria rutena, foi obrigado a entrar na clandestinidade – e, depois, a sair do país.
Somente quando tinha nove anos, em 1880, sua mãe conseguiu sair com ele da Hungria, mudando para Yegoryevsk, na província russa de Ryazan – onde seu pai já chegara.
Foi nessa época conturbada, antes de chegar à Rússia, que Grabar adquiriu gosto e prazer pelo desenho e pela pintura (em sua autobiografia, ele diz que não consegue lembrar de si mesmo “sem lápis, sem aquarelas e sem pincéis”).
No Liceu Tsarevitch Nicolau, em Moscou, aos 11 anos, ele descobriria, de maneira aguda, a desigualdade do mundo, e, especialmente, a desigualdade da Rússia de então: seus colegas, ricos, não lhe deixaram esquecer que era pobre.
Mas foi nesse momento que ele descobriu a arte de Ilya Repin, Vasily Surikov, Vasily Vereshchagin e outros pintores russos.
Em 1889, Grabar entrou na Faculdade de Direito da Universidade de Moscou. Nesse mesmo ano, ele faria sua primeira obra notável, “Telhado sob neve”.
Grabar se diplomou em 1893, mas, no ano seguinte, entrou, como estudante outra vez, na Academia de Artes.
Em 1895, ele fez uma viagem ao ocidente, algo que parece quase um ritual nos artistas russos dessa época: esteve na Itália (Veneza) e na Alemanha (Berlim, Dresden, Munique).
Seus trabalhos em história da arte, a partir de 1902, dão-lhe mais notoriedade. Tem obras expostas em Munique, Roma e Paris. Mesmo Sergei Diaghilev, que tem manifesta hostilidade a Grabar (e vice-versa), o incluiu na exposição de artistas russos, que promoveu em 1906 no Petit Palais, em Paris (Diaghilev é hoje mais conhecido pelo patrocínio dos Ballets Russes, onde atuaram Ana Pavlova e Vaslav Nijinski).
Em 1913, como já mencionamos, ele assumiu a direção da Galeria Tretyakov. No mesmo ano, tornou-se membro pleno da Academia Imperial de Artes.
Após fevereiro de 1917, com a queda do czarismo, Grabar foi nomeado para o Conselho de Artes do Governo Provisório.
Em outubro, ele apoia a Revolução liderada por Lenin. É então que participa da nacionalização das obras de arte da Rússia – antes usurpadas por alguns aristocratas e inacessíveis à população.
Mas ele recusa, em 1925, continuar à frente da Galeria Tretyakov (desde 1918, Galeria Estatal Tretyakov). Prefere, nessa época, concentrar-se em trabalhos de restauração de obras antigas, especialmente os ícones de Andrei Rublev, pintor russo do século XV.
Essa é uma atividade que manteria sempre. Foi, inclusive, o principal organizador do Museu Andrei Rublev de Arte Russa Antiga.
[N.HP: Rublev é mais conhecido, no Brasil, pelo filme de Andrei Tarkovski, de 1966; aqui, como não é o nosso tema, apenas anotamos que o personagem de Tarkovski tem pouco ou nada a ver com o Andrei Rublev histórico.]
Igor Grabar, pintor, ilustrador, historiador e arquiteto faleceu em maio de 1960, em Moscou, aos 89 anos.
Sua última obra foi acabada no ano anterior, o quadro “Alameda de bétulas” (um tema frequente em sua obra).
Ele se considerava, antes de tudo, um retratista. Mas seus quadros de paisagens têm importância estética. Neles, Grabar tenta responder a uma questão chave: como transformar em beleza artística aquilo que, aos seres humanos, já é belo sem nenhuma arte.
É uma parte do problema do realismo, que não é reprodução da realidade, mas síntese. Mas, nesse caso, não se trata da transformação da realidade em geral em arte, mas de uma dificuldade extra, específica: o objeto já é sentido como belo, mesmo sem nenhuma intervenção da arte.
Porém, em 1959, existe algo notável também no historiador e crítico Igor Grabar.
Aos 88 anos, ele publica, pelo Instituto de História da Arte, a coletânea “Contra o Revisionismo na Arte e na História da Arte” (cf. Krista Kodres, Kristina Jõekalda, Michaela Marek (eds.), A Socialist Realist History? Writing Art History in the Post-War Decades, Böhlau Verlag GmbH & Cie, Köln, 2019, p. 23).
Era um momento muito difícil, com o realismo socialista – e, na verdade, a própria URSS e a sua história, ou seja, a própria realidade – sob ataque desde dentro.
Grabar poderia, até pela idade, omitir-se. Mas, além de publicar a coletânea, escreveu um texto para ela, intitulado “O realismo sempre viverá” .
Abaixo, algumas imagens das obras de Igor Grabar.
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