CARLOS LOPES
(HP 15/03/2017)
Um artigo de André Lara Resende (“Juros e conservadorismo intelectual”, publicado no Valor Econômico de 13/01/2017), recentemente causou alguns faniquitos em monetaristas e neoliberais estabelecidos na praça. O artigo é uma demonstração de como se tornou insustentável a criminosa farsa financeira que devasta a nossa economia há duas décadas, com o estrangulamento do país pelos maiores e mais hediondos juros reais do mundo.
Lara Resende faz uma resenha de dois escritos (“papers”) do economista norte-americano John H. Cochrane, hoje na Universidade de Stanford (cf. J.H. Cochrane, “Do higher interest rates raise or lower inflation?”, de fevereiro de 2016, e “Michelson-Morley, Occam and Fisher: the radical implications of stable inflation at near-zero interest rates”, de dezembro de 2016).
A questão de Cochrane é a seguinte (todos os grifos são nossos):
“[Desde a eclosão da crise, em 2008] Os bancos centrais aumentaram a oferta de moeda numa escala nunca vista. O Fed, por exemplo, aumentou as reservas bancárias de US$ 50 bilhões para US$ 3 trilhões, ou seja, multiplicou a base monetária por 60, num período inferior a dez anos. A inflação não explodiu, ao contrário, continuou excepcionalmente baixa. O mesmo aconteceu no Japão, na Inglaterra e nas economias da zona do euro. Diante do aumento, verdadeiramente extraordinário, da oferta de moeda, a inflação manteve-se excepcionalmente baixa e ainda menos volátil do que no passado. (…) A resposta contradiz frontalmente o que sustentava a teoria monetária quantitativista e a macroeconomia ensinada nas grandes escolas até muito recentemente: nada acontece. A inflação não explode, continua estável e impassível”.
E isso, frisam Cochrane e Lara Resende, com juros negativos ou próximos de zero na maioria dos países do mundo, a começar por aqueles que expandiram de maneira colossal a base monetária, isto é, o dinheiro em depósito ou em circulação:
“Segundo a chamada Regra de Taylor, para estabilizar a inflação, o juro deve ser reduzido ou aumentado mais do que proporcionalmente e de maneira inversa ao movimento observado na inflação. Se a política monetária for passiva, ou seja, não reagir de maneira inversa e mais do que proporcional aos movimentos observados na taxa de inflação, a inflação ficará instável. Assim que a taxa de juros atingisse, como de fato atingiu, um limite inferior nominal, próximo de zero, o processo deflacionário se tornaria incontrolável. Também não foi o que ocorreu.”
A “regra de Taylor”, uma dessas indigências mentais típicas do neoliberalismo, é o “fundamento” (como diria o sr. Meirelles) do Banco Central, no Brasil, para manter os juros nos píncaros do absurdo. É a ela, e não a qualquer fato, que as atas do Copom aludem, quando mencionam a “experiência internacional” que preconizaria o aumento de juros automático para “combater” a inflação, ainda que esta não exista, ou, segundo a “previsão” do Copom, somente vá existir nove meses à frente – se os juros não forem aumentados, é claro… (para os leitores interessados, v. John B. Taylor, “Discretion versus policy rules in practice”, Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy 39, 1993, pp. 195-214).
O que essa “regra” significa, na verdade, é que os bancos, fundos e outros rentistas precisam ser compensados – e mais que de sobra – toda vez que a inflação diminui o juro real, portanto, toda vez que os seus ganhos são reduzidos pela inflação. Por isso, o juro deve ser aumentado “mais do que proporcionalmente”, em relação a qualquer aumento da inflação.
Mas, voltemos ao artigo do sr. Lara Resende.
Os trechos que provocaram a reação fisiológica dos neoliberais – inclusive do ex-ministro de Dilma, Nelson Barbosa (que, segundo o PT, seria um “progressista”) – são os seguintes:
“Desde a estabilização da inflação crônica, com o Real – e já se vão mais de 20 anos -, a taxa básica de juros no Brasil causa perplexidade entre os analistas. Por que tão alta? (…) As altíssimas taxas brasileiras ficaram ainda mais difíceis de serem explicadas diante da profunda recessão dos últimos dois anos. Como é possível que depois de dois anos seguidos de queda do PIB, de aumento do desemprego, que já passa de 12% da força de trabalho, a taxa de juro no Brasil continue tão alta, enquanto no mundo desenvolvido os juros estão excepcionalmente baixos? Há quase uma década, nos Estados Unidos e na Europa, e há três décadas no Japão, os juros estão muito próximos de zero, ou até mesmo negativos, mas no Brasil a taxa nominal é de dois dígitos e a taxa real continua acima de 7% ao ano”.
Até aqui são apenas fatos – o que já é suficiente para despertar o rancor de qualquer serviçal financeiro. Mas há, ainda, a conclusão de Cochrane, que Lara Resende expõe do seguinte modo:
“… no longo prazo, a relação entre a taxa de juros e a inflação é inversa à que sempre se acreditou: quando o banco central eleva a taxa de juros, a inflação não cai, mas aumenta; e quando o banco central reduz a taxa de juros, a inflação não sobe, mas ao contrário, cai” (Lara Resende, art. cit., grifo nosso).
Parece óbvio – e, realmente, é óbvio – para quem não tenha a mente pervertida dos porta-vozes de monopólios financeiros, que juros altos implicam em custos maiores para as empresas produtivas, portanto, em preços maiores das mercadorias. Logo, em qualquer economia nacional, eles são uma causa de inflação – e não um remédio contra ela.
O extraordinário é que alguém veja nisso alguma novidade. No entanto, o monetarismo não existe por ser lógico, ou por respeitar as economias nacionais, mas porque é a ideologia do setor financeiro, parasitário, da economia de um país capitalista. De tal forma que seu “combate” à inflação implica em juros tão altos a ponto de derrubar a produção e o crescimento do país – ou seja, implica em matar a economia ou asfixiá-la permanentemente. Sem mercadorias e sem dinheiro – quase todo canalizado para os bancos e outros especuladores – realmente, a inflação tende a cair, ao mesmo tempo que o país e os seres humanos que o habitam tendem a morrer de miséria e fome.
O suposto combate à inflação dos neoliberais e monetaristas, portanto, equivale a matar o paciente como remédio para uma suposta doença. É esse o resultado da pilhagem de todo o país, através dos juros altos, em prol de um pequeno número de rentistas, sobretudo daqueles que, do Brasil, sabem apenas que o sr. Meirelles nasceu em um lugar com esse nome.
A outra decorrência (ou função) dos juros altos vai na mesma direção e sentido: eles têm o efeito de aspirar para dentro do país algumas, não poucas, toneladas de dólares, que hipervalorizam o real, subsidiando as importações, ao barateá-las, e encarecendo a produção interna. Essa é a notória “âncora cambial” – e, mais uma vez, o “combate” à inflação, aí ancorado, implica na destruição da economia nacional, sobretudo da economia industrial própria do país (v. Nilson Araújo de Souza, Economia Brasileira Contemporânea, Atlas, 2007, pp. 220 a 284).
Por exemplo, de 1995 a 2015 o dinheiro externo, em termos líquidos, que entrou no país, montou a US$ 1 trilhão, 364 bilhões e 911 milhões (cf. BC, Balança de Pagamentos 1995-2015).
Nesses mesmos 20 anos, a participação da indústria de transformação – o setor chave para o crescimento – no Produto Interno Bruto (PIB) do país caiu de 16,6% (1995) para 11,8% (2015). Essa participação, nesse último ano, é inferior à que existia em 1947, ou seja, 68 anos antes (cf. FIESP, Panorama da Indústria de Transformação Brasileira, 12ª Edição, p. 6).
CAUSAS
Em princípio, Lara Resende não disse uma novidade. E nem se trata de que a alternativa que ele aponta seja progressista – na verdade, a consequência que tira, daquilo que diz, é o apoio ao esbulho fiscal de Meirelles e Temer, ainda que recomendando juros mais baixos.
Então, por que tantos ataques de nervos?
A questão é que tornou-se publicamente incoerente, e exposto por alguém que os neoliberais achavam que era do seu time, aquilo que já era logicamente absurdo: não é, evidentemente, por nenhuma exigência “teórica” ou “científica” – e, muito menos, por alguma demonstração da “experiência internacional” (como repete o BC, a cada 45 dias) – que os juros são altos, estupidamente altos, no Brasil.
Os juros são altos, no Brasil, porque o Banco Central mantém alta a taxa de juros – e não é para combater a inflação. Mas, se não é para combater a inflação, a única razão que resta é transferir a riqueza nacional para o setor financeiro. Embora Lara Resende não chegue a essa conclusão, a histeria com o seu artigo tem esta motivação: se ele estiver certo (e, na relação entre juros e inflação, ele está) o biombo com que os neoliberais encobriam a sua drenagem, via juros, dos recursos do país para os rentistas, está destinado ao aterro sanitário.
Também aqui não há, para nós, alguma novidade, exceto uma: ela está, exatamente, em que é Lara Resende (e Cochrane, economista de trajetória arqui-reacionária) que está dizendo que os juros altos aumentam – e não diminuem – a inflação.
Depois de tanta tinta consumida em explicações (inclusive de economistas supostamente “progressistas”) sobre o “por quê” é alta a taxa de juros no Brasil, o sr. Lara Resende chegou à uma conclusão que, embora não seja inédita, é verdadeira.
Não é, portanto, pelo que há de reacionário e falso no artigo de Lara Resende que os neoliberais empreenderam contra ele o que alguém chamou de “patrulha”. Pelo contrário, essa reação explica-se pelo que há de verdadeiro no artigo de Lara Resende.
Em réplica aos seus contendores, ele deixa a questão até mais clara:
“No Brasil, a inflação é muito pouco sensível à taxa de juros. (…) com a dívida pública em torno de 70% do PIB, uma taxa nominal de juros de 14% ao ano exige um superávit fiscal de quase 10% do PIB para que a dívida nominal fique estável. Com a economia estagnada e a inflação perto dos 6% ao ano, isso significa que é preciso um superávit fiscal primário de quase 5% da renda nacional para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB.
“ (…) Suponha o caso de um paciente com doença crônica para a qual se ministra um remédio há décadas. Há unanimidade médica de que, no caso desse paciente, a doença é resistente. Doses maciças vêm sendo receitadas sem resultado. Os efeitos secundários negativos são graves, debilitam e impedem a recuperação do paciente, que agora se encontra na UTI. Novos estudos, ainda que preliminares, questionam a eficácia do remédio. Pergunta: deve-se continuar a ministrar as doses maciças do remédio ou reduzir rapidamente a dosagem? Parece-me questão de bom senso” (André Lara Resende, “Teoria, prática e bom senso”, Valor Econômico, 27/01/2017).
COPOM
Há neoliberais que não se preocupam com a coerência, seja “teórica”, seja apenas a coerência de fachada do próprio discurso.
Outros, não são assim. Afinal, nem todos os que se submeteram, a partir dos acontecimentos do início da década de 90, ao neoliberalismo, são desprovidos de algum caráter.
Além disso, as supostas “teorias” neoliberais estão cada vez mais ridículas, portanto, mais difíceis de serem adotadas por alguém medianamente inteligente. Perto delas, os argumentos do lobo da fábula parecem elaborados por algum Aristóteles.
Por exemplo, veja-se a última ata do Comitê de Política Monetária do BC (Copom).
Depois de sábias considerações sobre a “taxa de juros estrutural” da economia, diz o BC que “suas estimativas [da taxa de juros estrutural] invariavelmente envolvem elevado grau de incerteza. Por essa razão, avaliações sobre a taxa de juros estrutural da economia necessariamente envolvem julgamento” (cf. BCB, Notas da 205ª Reunião do Copom, 21-22/02/2017, p. 4, §17, grifos nossos).
Resumidamente, o que há de “estrutural” nessa taxa é a vontade da diretoria do BC (isto é, o seu “julgamento”) de drenar dinheiro para os monopólios financeiros. Só isto e nada mais.
É inevitável, então, concordar com John Kenneth Galbraith, sobre “as pessoas que fazem a gestão da moeda”:
“… a tarefa [de gerir a moeda] atrai um nível muito baixo de talento, protegido, em sua profissão altamente imperfeita, pelo mistério que se pensa envolver os assuntos econômicos em geral e o tema da moeda em particular. A incapacidade, além do mais, é protegida pelo fato de que o fracasso quase nunca custa alguma coisa ao responsável. Assim, na gestão da moeda, como na gestão econômica em geral, o fracasso é frequentemente uma estratégia pessoal mais recompensadora que o sucesso. Em nossa época, existe uma relutância a atribuir grandes consequências à incapacidade humana – àquilo que, numa era semanticamente menos cautelosa, era chamado de estupidez” (J.K. Galbraith, Money: When It Came, Where It Went).
Mas se trata de uma estupidez altamente interessada. Chamar de “estrutural” uma taxa que é determinada pelo “julgamento” do sr. Ilan Goldfajn (que, antes de presidente do BC, foi economista-chefe do Itaú Unibanco, sócio do fundo Gávea Investimentos – hoje assumido pelo JP Morgan Chase – e ex-funcionário do FMI) é tão estúpido, que essa estupidez somente pode estar a serviço do roubo.
A taxa básica de juros (isto é, o piso dos juros, estabelecido pelo BC a cada 45 dias), em termos reais – descontada a inflação projetada para o ano – está em +7,3%, nada menos que 1,5 vezes a taxa do segundo colocado do mundo, a Rússia.
Mais importante, a taxa básica real dos EUA está em menos 2,17%, a do Japão em menos 0,7%, a da Alemanha em menos 1,7% e a média internacional está em menos 2,2%.
Qualquer financista ou magnata que tomar um empréstimo nos EUA (ou no Japão ou na Alemanha) e aplicar o dinheiro no Brasil (operação denominada carry trade) terá – e estão tendo – um ganho tão desvairado, que não existe outro maior no Planeta.
Têm esse ganho sem investir um centavo em algo produtivo, sem empreender nenhum esforço – apenas à custa do povo brasileiro, cujo trabalho e dinheiro é usado para locupletar esses ociosos nababos de outras terras.
É isso o que Goldfajn chama de “taxa de juros estrutural”.
Manter essa situação – e não se pense que é apenas por ideologia, pois aqui a ideologia é de uma rentabilidade extraordinária – faz com que o elemento se exponha ao ridículo de promover “patrulhas” contra, inacreditavelmente, até o sr. Lara Resende…