Hoje, a obra de Alencar se transformou em um caso literário e ideológico.
Como já fizemos essa observação em outras oportunidades, cabe agora esboçar muito rapidamente os motivos dessa transformação, aparentemente tão inesperada, na apreciação do fundador – muito mais do que Macedo – do romance brasileiro.
A questão somente tem lógica em um contexto onde a própria nacionalidade tornou-se um “caso” ideológico. Na verdade, a partir dos anos 90 do século passado, tivemos em nosso país uma lastimável contrarrevolução política – os governos Collor, Fernando Henrique, Dilma, e a maior parte do governo Lula, foram seus, por assim dizer, marcos institucionais.
Mas a maior parte dos aparelhos acadêmicos, tomados por incrível mediocridade, tornaram-se porta-vozes dessa infâmia antinacional.
Não nos estenderemos sobre esse assunto – não hoje – mas é relativamente fácil entender por que um escritor que pretendeu construir uma rapsódia brasileira, poucos anos após a Independência, e só pode ser justamente apreciado se essa tentativa é levada em conta, tenha sofrido tanto, nos últimos anos, sobretudo pelo silêncio sobre a sua obra. Não é pelos defeitos ou insuficiências desta obra que tal reação foi desencadeada – e sim por suas qualidades, basicamente por sua identificação com a nação brasileira.
Sobre este aspecto, central no romancista cearense, começamos a publicar nesta edição o importante ensaio de Nelson Werneck Sodré, “José de Alencar, a ficção numa sociedade escravocrata” (constante de seu livro “A Ideologia do Colonialismo”, ISEB, Rio, 1961, pgs. 37 a 57).
Tivemos a honra de editar o general Nelson Werneck Sodré, em sua volta ao jornalismo, com o artigo “A farsa do neoliberalismo”, publicado aqui, na Hora do Povo. Nelson Werneck Sodré foi um dos maiores críticos, maiores historiadores e um dos maiores homens nascidos em nosso país. Os jovens que ainda não o conhecem terão, através do ensaio que agora publicamos, como comprová-lo.
C.L.
NELSON WERNECK SODRÉ
Alencar iniciou há um século a sua atividade como escritor, com os folhetins do Correio Mercantil, reunidos depois no volume Ao Correr da Pena; comemoramos há pouco também o centenário de O Guarani. No decorrer desses decênios, ocorreu com a personalidade do romancista cearense e com as suas obras um caso curioso: à proporção que os seus romances penetraram a massa de leitores — já leitores de gerações diferentes —, foram sendo esquecidos pelos homens de letras, de tal sorte que, tendo exercido um papel de importância indiscutível, no seu tempo e fora dele, Alencar permanece um assunto a explorar, em termos de história e de crítica literária. Sua posição não foi ainda definida, com a precisão que exigem os novos métodos. Permanece imprecisa, ao sabor do julgamento dos seus contemporâneos. A necessidade de revisão de tais julgamentos, entretanto, está na razão direta da importância do seu papel, de sua larga difusão entre os leitores. Conforme escreveu com acerto Agrippino Grieco, “o romancista morto em 1877 mantém, ainda hoje, pela perfeita familiaridade com os seus livros ou pela simples menção de seus protagonistas, — mantém, como nenhum outro, o prestígio das nossas letras na admiração do povo.” Acrescentando: “Continua a ser uma espécie de contemporâneo nosso e, ante a variedade com que tratou da gente brasileira de norte a sul, uma espécie de contemporâneo de todos nós.”
Pertenceu Alencar, sem dúvida alguma, ao reduzido número daqueles cuja obra não se apaga com o passar dos tempos. Há nela um sentido popular que a vincula ao gosto médio da nossa gente. Gente que, na verdade prefere ainda se aproximar “de autores que se dirigem mais ao sentimento do que à inteligência, exigindo e oferecendo mais sensações do que ideias”, conforme acentuou um crítico contemporâneo. E para esclarecer: “Nenhum romancista está mais vivo no seio do povo do que José de Alencar ou, antes, do que os personagens e os romances de José de Alencar”, explicando a razão dessa afinidade secreta entre a obra e a massa de leitores pela posição de Alencar na galeria dos autores “mais naturalistas do que psicológicos, compreendendo mais a natureza das paisagens exteriores do que a alma humana… mais capazes de sentimentos do que de ideias”.
Tal afinidade apareceu desde o início, entretanto, não foi uma tarefa insensível do tempo. Alencar encontrou, no instante mesmo em que começou a escrever romances, essa ressonância que todo escritor busca. Ao escrever O Guarani, que assinala o seu momento de comunicação com o público, não era um estreante. Mesmo sem considerar os seus folhetins, já havia escrito Cinco Minutos e A Viuvinha. Foi porém o romance indianista que o lançou nos braços do público. Taunay observa, em suas Reminiscências, o espetáculo dessa ressonância singular, numa época em que o escritor raramente encontrava um prolongado eco: “… o Rio de Janeiro em peso, por assim dizer, lia O Guarani e seguia comovido e enleado os amores tão puros e discretos de Ceci e Peri e com estremecida simpatia acompanhava, no meio dos perigos e ardis dos bugres selvagens, a sorte vária e periclitante dos principais personagens do cativante romance, vazado nos moldes do indianismo de Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo estilo é tão caloroso, opulento, sempre terso, sem desfalecimentos e como perfumado pelas flores exóticas das nossas virgens e luxuriantes florestas.” E acrescenta mais adiante: “… e ainda vivamente me recordo do entusiasmo que despertou, verdadeira novidade emocional, desconhecida nesta cidade tão entregue às exclusivas preocupações do comércio e da bolsa, entusiasmo particularmente acentuado nos círculos femininos da sociedade fina e no seio da mocidade, então muito mais sujeita ao simples influxo da literatura, com exclusão das exaltações de caráter político”. O eco das aventuras de Peri não se restringia, entretanto, à Corte. É o mesmo Taunay quem nos conta que “quando a São Paulo chegava o correio, com muitos dias de intervalo então, reuniam-se muitos e muitos estudantes numa república em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de vez em quando, por elétrico frêmito, a leitura feita em voz alta por algum deles, que tivesse órgão mais forte. E o jornal era depois disputado com impaciência e pelas ruas se via agrupamentos em torno dos fumegantes lampiões da iluminação pública de outrora — ainda ouvintes a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor”.
Tornava-se Alencar, assim, desde o início de sua carreira literária, uma figura ao mesmo tempo destacada nas letras brasileiras e um escritor de projeção entre os que constituíam o reduzido público da época. Parece que a sua posição, quanto à primeira parte, seu lugar na galeria literária, sofreu um progressivo declínio. Quanto à sua projeção como artista, entretanto, não há dúvidas: a sua popularidade cresceu à medida que se desenvolveu, entre nós, a massa de leitores. As restrições que com o passar do tempo se fizeram à qualidade de seus trabalhos em nada influíram no seu prestígio junto ao povo. Para este, Alencar é um autor vivo — mais vivo do que muitos dos mais divulgados dos autores contemporâneos. A importância de sua obra deve ser aquilatada também através desse contraste. Qual o segredo dessa afinidade com o público, como permaneceu ela constante, através de um século, em que características se fundamentou? É que, sem dúvida, se o indianismo, como fórmula, pereceu definitivamente, o romantismo não desapareceu: mais do que escola literária, permanece como traço do gosto popular. Já muitos anos passados, Taunay poderia acrescentar àquelas impressões sobre o lançamento de O Guarani, um juízo mais sereno: “Suscitam ainda hoje o máximo interesse quase todas as suas páginas, acalmada a fogosidade com que nós moços outrora, as acolhemos…”
O sucesso inicial de Alencar e a primazia literária que assumiu, primazia indisputável, a que Machado de Assis se refere em páginas nítidas, tem sido explicado de muitas maneiras. Há, entretanto, traços inconfundivelmente marcantes apontados por todos os críticos e historiadores que se ocuparam do problema. Eles constituem, no consenso geral, como que as características do romance alencariano, as explicações de seu triunfo, os motivos de sua difusão. Em primeiro lugar está, certamente, o romantismo. A propósito, um crítico dos nossos dias acentuou que “será preciso pensar que existe entre o povo brasileiro e o romantismo uma certa harmonia que se tornou mais forte com a circunstância de terem coincidido, numa mesma época, a ideia da emancipação política e a eclosão desse movimento espiritual. Em toda parte o romantismo se enriqueceu de questões e problemas sociais, ao lado dos propriamente literários; entre nós, o romantismo se enriqueceu com a questão política de uma nação que afirmava a sua autonomia”. Vemos, assim, junto à explicação de escola, aparecer a coincidência, muitas vezes citada, entre o romantismo e a nossa autonomia política. Podemos considerar, pois, a afirmação do sentimento de independência como um motivo a mais para explicar o sucesso de Alencar. Aquele mesmo crítico acrescenta: “Ele procurava a autonomia literária no sentimento da própria terra, nas suas lendas, nas suas paisagens, nas suas figuras primitivas”. Escrevendo uma introdução para uma das reedições de Iracema, um poeta contemporâneo poderia afirmar, a respeito do assunto: “Era uma maneira romântica e literária de sublinhar a nossa emancipação”, completando: O indianismo foi a mais marcada corrente desse movimento nacionalizador da literatura brasileira” e acrescentando, adiante, como conclusão: “E, na sua entusiástica feição de revolta nativista — agressivamente patriótico — o Romantismo Brasileiro, com as mesmas mãos com que fez uma pátria, quis criar também uma língua”.
Vemos, agora, aparecer um terceiro motivo: o da criação de uma linguagem literária tipicamente brasileira, em contraposição à portuguesa, para afirmar nitidamente uma diferenciação política que era recente. A linguagem brasileira constituiu uma preocupação dominante para o romancista cearense. No prefácio aos Sonhos D’Ouro, no epílogo à segunda edição de Iracema e à quarta edição de Diva, em trabalhos especiais, ainda inéditos, como nos Rascunhos de Gramática Portuguesa, A Língua Portuguesa no Brasil e também nas Questões de Filologia, que apareceram em parte na revista América Latina, Alencar abordou o tema que lhe era particularmente grato. Chegou a afirmar, com ênfase, que “a nossa filologia brasileira que já não é, nem será nunca mais, a mesma de Portugal”, poderia adquirir características peculiares. Ao correr da pena, acudir-lhe-iam expressões como: “Em português, ou antes, em brasileiro…” E repetiria sempre que a “tendência de nossa literatura, como de nossa raça é, sem contestação, o americanismo”. Conforme lembrou Alceu Amoroso Lima, foi esse precisamente “o seu testamento literário”. Os modernistas, herdando a tarefa alencariana, empreenderiam nova arrancada no sentido da diferenciação do idioma, e Mário de Andrade, que foi o único talvez a realizar alguma coisa de positivo nesse sentido, chegou a referir-se a José de Alencar como a um irmão de cruzada.
A crítica do nosso tempo não deixou de frisar esse aspecto da obra de Alencar. Um dos nossos atuais comentadores anotaria: “Assim, o romantismo de José de Alencar foi pelo menos lógico, ao tentar ao mesmo tempo uma nova linguagem e um novo ideal de criação literária”. Uma nota bibliográfica a respeito do romancista deixaria em evidência o sentido de diferenciação idiomática: “O Guarani, ao contrário, vinha falado na linguagem de casa e do tempo, sem ênfase, fora dos moldes clássicos…”
Outra característica de Alencar, posta sempre em relevo pelos que estudaram sua obra, quer antigos quer modernos, foi a calorosa exaltação da natureza, dessa natureza cuja grandeza descritiva sempre o apaixonou. Um dos comentadores escreveria a propósito: “Acrescia à linguagem o que era indefinível, mas sensível na obra, o perfume que a impregnava, da floresta virgem, a sonoridade das aves agrestes, a atmosfera radiante do trópico; e tudo lhe fazia a alma brasileira, e criava a afinidade da gente nova com o indígena reabilitado na idealização do seu heroísmo. Sentiu-se que havia nascido a literatura nacional”. Ronald de Carvalho, em sua Pequena História da Literatura Brasileira, tão cheia de deficiências e de despautérios, ofereceria um juízo que é o juízo comum, vulgar e médio sobre a obra de Alencar: “Seus romances de fundo americanista, incontestavelmente os melhores que produziu, são, para servirmo-nos de um conceito de Chateaubriand sobre Atala, “poemas descritivos e dramáticos”, onde a urdidura da intriga é quase sempre um pretexto para pintar a natureza. O sentimento discreto do artista e do homem concorreu para realçar o encanto dos seus livros, de um colorido sóbrio e penetrante. Alencar era antes de tudo poeta, a vida lhe sabia mal, tanto assim que mui raramente conseguiu apanhar-lhe os flagrantes prosaicos e corriqueiros, como, por exemplo, Manuel de Macedo. Sem um laivo de exotismo não se lhe movia plenamente a imaginação; suas figuras não têm calor quando expostas aos olhos de todos, na rua barulhenta ou no salão festivo. Perdidas, porém, nas selvas, entre o rumor das cachoeiras e dos córregos, à sombra das árvores silenciosas, ganham um aspecto de legenda, crescem de repente, tornam-se míticas, iguais às forças elementares de onde surgem como por milagre”.
Outros, não circunscrevendo a característica descritiva de Alencar à exaltação da natureza apenas, mas ampliando os conceitos, preferem ver um dos traços de sua grandeza na oferta de um estilo. Ronald de Carvalho é positivo, nesse sentido: “Aprendemos com Ele a ter estilo, isto é, a considerar o romance como uma obra de arte, e não simplesmente como um divertimento, um mero jogo de situações, mais menos possíveis, ou um punhado de anedotas picantes. Se não bastassem as suas qualidades de lirista delicado e sutil, Alencar teria ao menos influído pelo brilho da forma, antes dele descurada, ou melhor, desconhecida em nossa literatura”. Para estender-se e frisar ainda: “Onde e quando houve em nossa literatura pré-romântica, uma voz assim, uma tal energia, um tal poder descritivo, sem ênfase, sem recursos de retórica, suave e temeroso como a própria natureza onímoda e fecunda?” E o próprio Sílvio Romero, que não foi pródigo em elogios ao romancista cearense, escreveria: “Junte-se a isto a sua extraordinária facilidade de escrever num vocabulário rico, e, ao mesmo tempo, transparente, simples, e num estilo sonoro e vibrante; sua poderosa imaginação, sempre pronta a alçar voo, seu talento descritivo, lesto nas cenas humanas, brilhantíssimo na paisagem e nas cenas da natureza, e ter-se-á ideia da valia deste escritor”. Machado de Assis, em crítica ao romance As Minas de Prata, não era menos caloroso: “… antes de tudo notarei o apuro do estilo, com que está escrito este livro; a pena do autor do Guarani distinguia-se pela graça e pela sobriedade; essas duas qualidades dobraram na sua nova obra”. E Agrippino Grieco, completando um estudo sobre Alencar, escreveria: “Já Alencar tem a poesia, o entusiasmo dos adolescentes e das raparigas enamoradas e, com ou sem música de Carlos Gomes, vale em si mesmo, na mais deliciosa música, na mais rica pintura de sílabas com que um homem de prosa e um homem de tinteiro envergonhou os nossos alinhadores de estrofes e os nossos manejadores de pincel…”
A esse coro singular sucedeu, entretanto, com o passar do tempo, uma diversificação interessante: enquanto os escritores passavam a descobrir as deficiências do escritor, o povo continuava a ler-lhe as obras e a justificar, portanto, o juízo entusiástico de tantos críticos do passado e do presente. Taunay, nas Reminiscências, já havia verificado, revendo juízos próprios, algumas daquelas deficiências: “Nem se lhe leve a mal” — escreveria — “o convencionalismo das suas sorridentes paisagens e grandiosas perspectivas, quase todas mais criações da ardente e prodigiosa fantasia, do que da observação exata da natureza ou do conhecimento pleno do cenário em que deviam mover-se e agir os seus simpáticos heróis e adoráveis tipos de mulher; e esse contraste entre a realidade e a imaginação se torna então flagrante em O Gaúcho, em que um filho do Rio Grande do Sul não pode absolutamente reconhecer a feição particular da sua província natal”. Mas, nas Memórias, que resguardou, por disposição expressa, do conhecimento dos seus contemporâneos, Taunay iria mais longe: “Possuía Alencar, não há contestar, enorme talento e grande força de trabalho; tinha pena dúctil e elegante; mas não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto pretendia reproduzir nem dela estava imbuído. Não lhe sentia a possança e verdade. Descrevia-a do fundo do seu gabinete, lembrando-se muito mais do que lera do que daquilo que vira com os próprios olhos. Parecendo muito nacional, obedecia mais do que ninguém à influência dos romances franceses. Nos seus índios, deixou Alencar a trilha aberta por Fenimore Cooper para de perto seguir Chateaubriand e reeditar as pieguices de que se constituiu porta-voz este escritor, tornando-as toleráveis a poder da pompa e do brilhantismo da frase. Tudo porém artificial e cansativo”.
Um crítico moderno, Olívio Montenegro, frisaria as qualidades e apontaria as deficiências, ficando mais preso a estas do que àquelas. De um lado, justificaria: “Não sei de autores românticos do Brasil que tenham sobrevivido com mais glória a José de Alencar, e livros de José de Alencar que tenham sobrevivido aos seus romances mais poéticos, Guarani, Iracema, Ubirajara. É que nestes romances de José de Alencar, o clima quente e úmido de sentimentalismo em que se desenvolve a ação dos seus personagens é constantemente arejado por um grande sopro lírico, e que de certo modo o purifica, o torna respirável. Pode ser um clima artificial mas não é enervante como o da maioria dos seus outros romances”. Mas logo condena justamente aqueles recursos de paisagista que tanto haviam encantado a outros críticos: “A paisagem… é sempre de um colorido imenso, um colorido sem nuance, sem meio tom, sem a pausa de um esfuminho onde o leitor repouse a vista. Tudo é enorme e flamboyant na paisagem”. E se adianta, para condenar também os personagens: “Ele procurou criar o homem não à sua própria semelhança mas à semelhança da sua paisagem, disforme como a natureza que Ele inventa. Daí tipos como Iracema, Peri, Ubirajara darem mais a ideia de figuras de retórica do que de figuras de gente: são personagens puramente decorativas, que vão exaltar de um colorido mais veemente o quadro da Natureza”.
Também, Agrippino Grieco, reconheceria o avesso do romancista, justificando-lhe embora os méritos: “Poderão objetar-me agora que nos seus dramas florestais há muita cenografia, maquinaria, carpintaria de bastidor, e que, a rigor, Peri é falsíssimo com seu cavalheirismo e sua nobreza pundonorosa, tão falso quanto dom Antônio de Mariz e Ceci, tão falso quanto, em outros autores, Paulo e Virgínia, Atala e os Incas. Concordamos que seja, em boa parte, uma linda mentira, de precioso romantismo. Mas o indiscutível é que existe aí não sei que inexplicável originalidade local e tudo isso tem o cheiro e o gosto do nosso Brasil. Se o índio não foi assim, devia ser assim”.
Como estamos longe, hoje, daquele entusiástico juízo de Ronald de Carvalho, oferecido com a leviandade, a prodigalidade vazia do historiador: “Nunca se tinha visto, nem no próprio Gonçalves Dias, tanta frescura de emoção, tanta elegância de estilo, tanta graça nas ideias e nas narrativas. O indianismo de Alencar é superior ao de Gonçalves Dias, não só por ser mais sincero mas também por ser mais amplo e majestoso. Seus índios não se exprimem como doutores de Coimbra, falam qual a natureza os ensinou, amam, vivem e morrem como as plantas e os animais inferiores da terra”. Pois Ronald achava até que os índios de Alencar “falam qual a natureza os ensinou”, e isto é levar muito longe, sem dúvida, a gratuidade do julgamento, ou a obtusidade da incompreensão…
A SITUAÇÃO
Mas, destruída a sua qualidade de reviver os quadros naturais, obscurecida a sua capacidade de paisagista, desmerecida a força de seu estilo, julgadas falsas, as suas personagens, aquilatada a inanidade do seu esforço na diferenciação do idioma, que restaria de Alencar? Qual a sua posição; a de um autor decaído para a literatura vulgar e popular, cuja importância literária seria meramente histórica, ou a de um escritor de mérito, que encontrou divulgação mercê de qualidades especiais, sem diminuição do teor literário de suas obras? Parece que nos juízos extremados, no entusiasmo de alguns de seus contemporâneos, ou na frieza dos que vieram depois, há alguma dose de incompreensão. É injusto afirmar que os seus índios falam qual a natureza lhes ensinou, que o seu estilo é despido de retórica, que a sua paisagem é natural e real. Mas parece que é igualmente injusto condenar toda a sua obra, fazendo uma vaga exceção, cheia de restrições, para os livros de fundo indianista, relegando-o à posição de folhetinista inexpressivo.
A verdade, infelizmente, é que Alencar deixou de ser uma leitura literária para se tornar uma leitura popular e, por isso mesmo, os críticos têm sido apressados em seu julgamento, e têm errado pela incompreensão funda em que se colocam, quando se voltam para um romancista que escreveu há um século, em condições inteiramente diversas das de hoje, quando a nossa literatura apenas se iniciava. Para compreender melhor o romancista de O Guarani é necessário, antes de tudo, situá-lo precisamente no quadro de seu tempo e de seu ambiente.
De um modo geral, as características de Alencar podem ser especificadas pelos seus vínculos com um nativismo que se fundamentou em três traços: o indianismo romântico, como processo; a exaltação da natureza tropical, como meio; e a busca da diferenciação idiomática, como expressão. A tais características, geralmente aceitas, é necessário acrescentar, entretanto, duas outras, de ordem acessória, já vistas por alguns de seus críticos, e que têm importância para a análise de sua obra: a primeira consiste em que Alencar dá realce, pela primeira vez no Brasil, a um estilo literário; a segunda, mais evidente ainda, é que Alencar é, na verdade, o fundador do romance brasileiro. Não se trata de uma questão de precedência cronológica, evidentemente, mas de uma questão de valor qualitativo, de continuidade, de unidade. Alencar não só foi um romancista de produção constante, que valorizou o gênero, como — o que é muitíssimo mais importante — levou-o ao grande público, difundiu-o, vulgarizou-o, tornou-o frequentado. Nesse sentido, Agrippino Grieco situou perfeitamente o problema: “… mas o romance brasileiro, de um modo mais amplo, começa com José de Alencar, o mesmo que foi, durante longos anos de abundante e ininterrupta produção, o melhor mantenedor desse gênero literário e, mesmo morto, continua a ser, pela irradiação do seu nome, pela leitura direta dos seus livros ou simplesmente pela recordação dos nomes dos seus heróis, o nosso autor mais vivo e o supremo valorizador das nossas letras no espírito popular”. E resume, nesta conclusão feliz: “Força é reconhecer que o nosso melhor romance só começou com o indianista, autêntico ou falso, do Guarani”. A propósito do estilo literário, Sílvio Romero frisou suficientemente o papel de Alencar, quando escreveu: “Basta dizer, por último, que foi o primeiro que deu à prosa, no Brasil, o lavor artístico do estilo aprimorado e brilhante, que tem sido até agora o mais aprimorado de nossos paisagistas e o que mais vigor tem revelado na habilidade de descrever e narrar”.
A tendência em relegar o romancista cearense ao plano secundário de autor popular, destituído de reais qualidades literárias, funda-se, de maneira geral, em incompreensões e em repetições que não resistem a uma análise que comece por desprezar as afirmações correntes, para colocá-las no crivo da interpretação, revendo julgamentos. As acusações contra Alencar podem ser resumidas pouco mais ou menos da forma seguinte: seu indianismo era falso e postiço, copiado de modelos estrangeiros, particularmente do francês, que já o recebera de segunda mão; seu esforço em prol de uma diferenciação idiomática, fundado num nativismo desorientado, não deu resultado algum e findou por se neutralizar na própria obra do romancista de O Guarani; seu senso da paisagem era falso — Alencar não conhecia a natureza brasileira e descreveu-a sem os recursos da observação, apenas fundado numa ênfase lírica que impressionou os leitores do tempo; suas personagens são meras idealizações, não têm vida, como que se apresentam desumanizados e falam uma linguagem postiça; seus romances não têm estrutura, tudo neles é trabalho de carpintaria, com os enfeites de uma prosa artificial e pomposa; postos de parte os trabalhos de fundo indianista, que ainda podem admitir exame, os romances de cenário citadino ou rural não merecem atenção; finalmente: Alencar vive na memória popular menos pelas suas qualidades literárias do que pela afinidade que existe, ainda hoje, entre o público brasileiro e o romantismo.
Mas se, por outro lado, considerarmos José de Alencar dentro do quadro das condições de seu tempo e de seu meio ambiente, verificaremos, em primeiro lugar, que o romantismo era a escola única. Note-se que não escrevemos que era dominante, mas única. Nenhum escritor que surgisse naquele tempo poderia aparecer como realista, por exemplo, tão somente porque o realismo não existia. Alencar começou a escrever em 1852, quando o romantismo acabava de ser lançado no Brasil, e constituía na Europa o processo comum. Alencar foi, pois, um romântico, e não poderia ter sido outra coisa. Nesse sentido, como em muitos mais, confundiu-se com a sua época, foi um intérprete dela. Filiando-se ao romantismo, entretanto, Alencar lhe empresta uma significação que não possuía no Brasil. Torna-se, por assim dizer, a expressão literária do romantismo brasileiro. Vai mais longe, porque leva o processo romântico ao grande público, coisa que não ocorrera com as principais figuras do movimento romântico brasileiro, poetas conhecidos de um público restrito. Alencar, por outro lado, cria uma prosa romântica, que não existia antes dele, isto é, dá caráter literário a um processo que vivera quase que tão somente em poesia feita para letrados. Essa prosa romântica, que nos parece hoje realmente solene e postiça, constituía, no seu tempo, o alimento literário comum. Alencar possuía uma intensa imaginação lírica — é um traço de união entre os poetas e os prosadores do romantismo, sem deixar de ser o criador da prosa romântica. E a força lírica “só se satisfaz na ênfase”, conforme observou, e muito bem, um dos críticos modernos da obra de José de Alencar.
Não nos deteremos na análise da coincidência, que tanto parece ter impressionado os modernos, entre o movimento romântico e a autonomia brasileira. A questão parece especiosa. O movimento romântico surge, entre nós, após a Independência, mas não se deve à Independência, como esta não tem origem no romantismo. A coincidência, no caso, parece mais da autonomia do que do romantismo, que era um processo literário do mundo ocidental, em plena vigência. Mas existe no movimento romântico brasileiro, sem dúvida, um sentimento nativista acentuado. Suas formas de exteriorização foram variadas. Nesse sentido, Araripe Júnior, que foi um dos críticos simpáticos a Alencar, em sua Carta sobre a Literatura Brasílica, publicada em 1869, acentuava que a nossa literatura devia ser cabocla, infensa às influências estranhas e valendo-se dos elementos de diferenciação disponíveis. Ainda sob este aspecto, Alencar foi não só um reflexo do sentimento literário dominante, como foi também o seu grande intérprete, a sua expressão mais destacada.
Alencar pretendeu sempre fazer literatura brasileira e, para isso, quis alterar o processo literário de composição na forma e no fundo, pela escolha de motivos brasileiros. Pretendeu mesmo seguir um plano, e pôs em primeiro lugar a exploração da fase primitiva da vida brasileira, “que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo”, conforme Ele próprio observou. Crítica de nosso tempo, Lúcia Miguel Pereira compreendeu nitidamente a tarefa que o escritor se propunha quando escreveu: “E, todavia, dentro do romantismo, que era a expressão única de sua época, adotou a atitude mais próxima, não direi da realidade, mas do meio em que vivia. É possível que a Ele se deva o não haverem os nossos românticos enveredado pelo subjetivismo puro. O seu indianismo, embora falso, correspondia a um estado de espírito nacional; e, nos limites consentidos pelo seu idealismo, buscou fazer ‘o romance da vida mestiça brasileira, do nosso meio provincial ou sertanejo, com a sua paisagem, os seus moradores, os seus costumes, as suas atividades peculiares’”.
O fundamento nativista da busca de diferenciação idiomática não chegou a ser levado por Alencar a limites amplos, sem dúvida alguma. Embora constituísse uma preocupação constante de sua atividade de escritor, e tenha acabado por vir a ser como que o seu testamento literário, conforme já foi observado, a verdade é que, apesar de tudo, Ele próprio ficou muito próximo dos modelos portugueses de seu tempo. A tarefa estava acima de suas forças. A diferenciação só se transfere para uma literatura e adquire nela a sua consistência, quando esta literatura ganhou maturidade; numa literatura em esboço, como a nossa, no tempo em que ele escreveu, a diferenciação da linguagem literária não poderia mesmo vingar. Os modernistas, um século depois, não conseguiram senão dar um impulso, desta vez real e profundo, para a solução do problema. O erro, mais uma vez, consiste na deformação constante em que nos colocamos, vendo uma literatura brasileira onde ela não existe, vendo-a desde Gregório de Matos, desde Bento Teixeira, desde Anchieta, como querem alguns, quando, a rigor, tudo isso não passa de proto-história literária, quando muito. Nesse sentido, não seria muito mais justo e de acordo com a realidade aceitar o início da literatura brasileira com o romance de José de Alencar?
Deixando para o fim o problema do indianismo, resta-nos analisar a ênfase descritiva de Alencar e o caráter postiço de suas personagens. Parece-nos, ainda aí, que se trata mais de um erro de interpretação. Se o índio não fosse apresentado com aquelas qualidades, que eram meramente literárias, e falando e sentindo daquela maneira, evidentemente falsa em confronto com a realidade do seu modo de sentir e de expressar, não serviria, simplesmente, para fornecer o fundo do romance nativista, em que Alencar pretendia fixar a existência de uma literatura brasileira. Como escreveu Agrippino Grieco, se “o índio não era assim, devia ser assim”. Isto é, se ele não era assim na realidade, devia ser assim em termos literários. Pois isso é de uma evidência espetacular, desde que não se tratava de traduzir, em termos de realismo, a posição do índio, mas de transpor, em termos de romantismo, os motivos indígenas para a literatura. A deformação era inevitável. O erro tem consistido em confrontar o índio de Alencar com o índio real, e afirmar que aquele é falso. Está claro que é falso, mas a análise é que não está bem posta. O julgamento literário não está nesse confronto, mas na verificação isolada do seu indianismo, na apreciação desse indianismo não como relatório naturalista ou antropológico, mas como processo literário, processo idealista sem dúvida, mas estreitamente ligado ao temário e ao conteúdo do romantismo. E não só do romantismo brasileiro, mas do romantismo em geral.
O indianismo, aliás, foi uma tendência universal do romantismo. Esclareceremos, todavia, como o indianismo de Alencar não ancorou apenas na cópia do método, tomando-o a Chateaubriand ou a Cooper. A propósito do indianismo, entretanto, é interessante anotar as palavras com que Sérgio Buarque de Holanda o aprecia: “Pode-se dizer que foi a maneira natural de traduzir em termos nossos a temática da Idade Média, característica do romantismo europeu. Ao medievalismo dos franceses e portugueses opúnhamos o nosso pré-cabralismo, aliás não menos preconcebido e falso do que aquele. Seguíamos ainda nesse ponto, com liberdade, os modelos do Velho Mundo”. Verifica-se como o indianismo era uma saída espontânea, a única existente, por assim dizer, para o romantismo brasileiro.
AS RAZÕES DO INDIANISMO
Erram, entretanto, os que pretendem ver nele mera cópia dos modelos europeus ou mesmo norte-americanos. A valorização do elemento indígena, entre nós, era muito antiga, era muito mais antiga do que o romantismo. E, a bem dizer, nem era nossa, também, porque se levantara como movimento generalizado da cultura ocidental. Se remontarmos ao tempo, verificaremos as suas origens na idealização do índio estabelecida pela literatura jesuítica, e, mais do que na sua literatura, na sua política, não apenas em terras coloniais portuguesas. Uma gente que não se impressionaria com a escravidão do negro, levantaria ondas de protesto em torno da submissão do índio, e de vez que fizera dele o suporte natural de sua obra de catequese, elaboraria os temas de sua grandeza. Mas, se não quisermos descer aos primeiros tempos da colonização, poderemos ficar nos enciclopedistas, que traduziram, de uma maneira tão expressiva, embora também falsa do ponto de vista do confronto com a realidade, o encantamento do europeu com o índio, a tendência para torná-lo qualquer coisa feita à sua imagem e semelhança, com as suas qualidades e traços — qualidades e traços que estão presentes nos índios de Alencar —, qualidades e traços que não eram senão os que a cultura do tempo havia forjado para o homem branco europeu, e que ele generalizava, ao julgar com benevolência o índio. Em torno do interesse dos pensadores do tempo a respeito do índio brasileiro, para não falar do índio em geral, é interessante consultar a monografia de Afonso Arinos de Melo Franco, O índio Brasileiro e a Revolução Francesa.
O indianismo não era pois, apenas uma saída natural e espontânea para o nosso romantismo. Mais do que isso, era alguma coisa de profundamente nossa, em contraposição a tudo o que em nós era estrangeiro, era distante, viera de outras fontes. O indianismo era nativista, efetivamente, não só por coincidir com a fase da autonomia e dela provir como consequência direta, mas porque, logo após o processo da Independência, desenvolveu-se entre nós um nacionalismo vago e virulento, traduzido em jacobinismo desenfreado, de que as nossas rebeliões provinciais mostraram traços evidentes. Provar que o Brasil podia subsistir sem o português, e que podia viver de seus elementos próprios, entre os que estavam presentes na tarefa da colonização mas não eram lusos, constituía um tema excelente e próprio da época. Dos três grupos humanos que haviam colaborado na obra da colonização, entretanto, excluído o português, contra o qual se voltava aquele extremado nativismo, só o índio servia como fundamento para uma temática rica e agressiva. Não podia servir o outro elemento, o negro, em virtude mesmo das condições da estrutura econômica brasileira, herança da fase colonial, ainda com extraordinária força, que o colocara na mais baixa camada, a do trabalho puramente servil.
A valorização do negro, realmente, nunca chegou a merecer a atenção dos nossos escritores — e com muito mais forte razão não poderia impressionar um homem dos meados do século XIX, que morreu antes que o movimento abolicionista tomasse corpo. Pertencendo a uma classe que condicionava a posição do negro a uma inferioridade irremissível, os escritores do tempo não podiam fazer dele o suporte natural de um movimento nativista no plano literário. A atividade literária, no Brasil do tempo de Alencar, estava estreitamente condicionada à classe dominante, de senhores de terras e de escravos. Nessa classe é que se recrutavam os escritores e nessa classe é que estavam os leitores. Valorizar o negro corresponderia a entrar em conflito com tais origens. Demais, as condições de cultura, os padrões estabelecidos, relegavam o trabalho, que era sinal de subserviência, ao negro escravo. Não seria possível valorizar o trabalho numa sociedade escravocrata e latifundiária, em que a diferença estava, justamente, na situação superior dos que não trabalhavam, mas apenas usufruíam. O índio nada tinha a ver com o trabalho — era uma criatura livre, e assim o viam os contemporâneos de Alencar. E tinha, além de tudo, para a ânsia nativista, um traço de valorização histórica a mais: fora ele o adversário do português colonizador: ele que, dono da terra, e livre nessa terra, opusera-se ao domínio luso, lutara contra esse domínio e fora vencido, sempre combatendo. Podia figurar excelentemente o sentimento da autonomia, mas sob uma condição: a de que, continuando o mesmo índio, estivesse revestido de determinadas qualidades, evidentemente emprestadas, que pertenciam à ética da classe dominante.
As fontes do indianismo estavam, ainda mais, na própria memória popular. Capistrano de Abreu, que juntou, nos seus primeiros anos de atividade como escritor, a tarefa de crítica literária com os seus pendores naturais para a investigação histórica, situou, em trabalho incluído depois nos Ensaios e Estudos, com uma precisão singular, as fontes folclóricas do indianismo. Definiu os três ciclos dos contos populares, filiando o indianismo ao terceiro ciclo. Capistrano, com a sua peculiar honestidade, confessava a fragilidade de suas pesquisas, fazendo notar que elas haviam sido efetivadas somente no Ceará — justamente a terra de Alencar. Tais origens folclóricas não escaparam ao romancista, que definiu uma primeira etapa de sua obra como girando em torno “das lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; … as tradições que embalaram a infância do povo”. Estamos longe, pois, do indianismo de cópia servil de Chateaubriand e de Cooper. Verificamos, ao contrário, as profundas raízes que esse indianismo tinha lançado em terras brasileiras. Que a leitura de Chateaubriand e Cooper também tenha tido a sua influência, no caso pessoal de Alencar, é aceitável, e é ainda aceitável que a influência do primeiro tenha sido maior do que a do segundo, conforme já notara Taunay. Mas já é tempo de mostrar como Chateaubriand não é uma leitura popular, na França, enquanto Alencar o é, no Brasil; enquanto Cooper não é matéria literária essencial, ou qualitativamente superior, em sua pátria, Alencar é o criador, aqui, do romance brasileiro e o teor literário de sua obra merece ainda um grande apreço, tanto maior quanto mais compreendido, em face das condições do seu meio e da sua época.
Os elementos caracterizadores do indianismo, pois, conforme observou com muita agudeza Mário Camarinha da Silva, em artigo de jornal, podem ser assim alinhados: o elemento folclórico, em torno do qual Capistrano levantou uma pista tão segura; a influência estrangeira, vinda através de Cooper e, de forma particular, de Chateaubriand; o elemento nativista, polarizando a tendência antilusa dominante na época e frisando a primazia da contribuição humana que resistira ao colonizador português, a qual se constituía na população primitiva do continente; o elemento condicionado pela escravidão, que forçava a exclusão do negro como matéria literária, ficando vedada, pelas condições culturais, em consequência da estrutura econômica do país recém-independente, a valorização do africano; o elemento idiomático, por último, constituindo a preocupação do romancista em afirmar a autonomia literária não só através do fundo como através da forma, escrevendo diferente dos portugueses e mostrando que havia, no Brasil, uma linguagem diferente, ou pretendendo contribuir para que houvesse e se afirmasse cada vez mais acentuada a diferenciação.
A obra de José de Alencar, surgida numa época em que a nossa literatura mal se esboçava, trouxe em si traços marcadamente brasileiros. Ele soube confundir-se com a sua gente e com a sua época, particularmente com a sua classe, e foi um intérprete fiel de todas elas: vê-lo através de condições diversas é deformar o critério de julgamento. Sua importância literária é muito grande, quer no sentido da função histórica que exerceu, trabalhando a língua com esmero, dando o molde de uma forma literária e fundando o romance como gênero popular, quer tomado isoladamente, como intérprete de seu tempo, estudioso do seu ambiente, narrador dos seus costumes.
O segredo da popularidade constante de José de Alencar está, sem dúvida, na afinidade que existiu sempre entre o público médio, nem só do Brasil como de todos os países em condições semelhantes, e o teor essencial das criações do romantismo. Mas há que distinguir uma particularidade que explica a preferência do público pelos romances de Alencar às obras de outros românticos brasileiros. Esta particularidade é certo, a secreta intuição que faz com que muitas vezes o povo julgue com mais acerto do que os homens de pensamento, e compreenda melhor e, principalmente, sinta mais fundo aquilo que tem para ele uma significação real e que de fato lhe pertence. No sentido de que povo, entre nós, nesta fase, é ainda classe média, em que os padrões elaborados pelo colonialismo conservam extrema resistência; no sentido de que nessa classe é que são recrutados, agora, os leitores, em sua maioria; no sentido de que a sociedade brasileira conserva ainda muito do que lhe proveio da herança colonial.