Monteiro Lobato saiu desta vida no dia 4 de julho de 1948 – há 69 anos, portanto.
Mas sua obra não teria descanso, o que é sinal de sua grandeza, até hoje sendo o centro de uma – aliás, de várias – polêmicas.
Escreveu Nelson Werneck Sodré que Lobato foi um “demolidor” (“Estranharão alguns que a palavra ‘demolidor’ tenha aparecido, aqui, para caracterizar um homem que se preocupou, em todos os lances, com o sentido de construir, isto é, de fomentar riqueza, de emancipar uma população abandonada, de conferir novas condições ao trabalho. Para construir, entretanto, no Brasil, há muito que demolir, tanto a nossa estrutura permanece ainda colonial, tanta é a resistência de um meio em que as tradições têm raízes profundas, tamanha a sua inércia aos ímpetos novos e destinados a alterar as suas linhas simples e antigas”).
Colocado entre o Brasil velho – ele, que nasceu em Taubaté, no Vale do Paraíba, em 1882, na família de um barão do Império – e o novo Brasil que desaguou na Revolução de 30, nenhum escritor condensaria com tanta intensidade essa transição.
Não importa que ele não tenha compreendido, muitas vezes, a essência e as necessidades dos novos tempos que se abriam para o país. Numa página modelar, Lenin observou que Tolstoy “claramente não compreendeu”, “claramente se afastou” da revolução na Rússia, mas nem por isso deixava o grande escritor de ser “o espelho da revolução russa” (“Tolstoy refletiu o ódio acumulado, a aspiração amadurecida a um destino melhor, o desejo de se libertar do passado, e a imaturidade dos sonhos, da falta de educação política, da frouxidão revolucionária”. cf. V.I. Lenin, “Liev Tolstoi, espelho da revolução russa”, Obras Completas, T. 15).
Algo semelhante acontece com o nosso Monteiro Lobato. Já no início do século XX, antes de qualquer outro escritor, ele percebeu a decadência da República Velha – e a expressou, como um grito de protesto ou uma denúncia do ridículo, nos contos de “Urupês”, “Cidades Mortas” e “Negrinha”. E também expressou, com sua obra para as crianças, o nascimento de um novo Brasil.
Não nos estenderemos, até porque nos falta tempo e espaço para fazê-lo. Abaixo, o leitor encontrará os primeiros dois textos de “Cidades Mortas”.
O café passara pelo Vale do Paraíba e fora em direção ao oeste do Estado de São Paulo – depois, invadiria o Paraná -, deixando, atrás, ruínas. Em 1907, Lobato é nomeado promotor e designado para a cidade de Areias. Somente em 1916, o escritor mudaria do Vale do Paraíba para a capital do Estado.
Os contos de “Cidades Mortas” são anteriores aos de “Urupês”, apesar deste livro ter aparecido antes daquele. Os dois textos que hoje publicamos são de 1906 e 1908.
E mais não precisamos dizer, pois o leitor verá.
C.L.
MONTEIRO LOBATO
A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.
A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.
Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte.
Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.
Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes.
Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial – o carro de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de megatérios donde as carnes, o sangue, a vida para sempre refugiram.
Vivem dentro, mesquinhamente, vergônteas mortiças de famílias fidalgas, de boa prosápia entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio da morte. Há nas paredes quadros antigos, crayons, figurando efígies de capitães-mores de barba em colar. Há sobre os aparadores Luís XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados – e por tudo se agruma o bolor râncido da velhice.
São os palácios mortos da cidade morta.
Avultam em número, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, três e quatro: antigos armazéns hoje fechados, porque o comércio desertou também. Em certa praça vazia, vestígios vagos de “monumento” de vulto: o antigo teatro – um teatro onde já ressoou a voz da Rosina Stolze, da Candiani…
Não há na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se estes remendões; aqueles, meros demolidores – tanto vai da última construção. A tarefa se lhes resume em especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendá-las mal e mal. Um dia metem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil-réis o milheiro – e fica à inclemência do tempo o encargo de aluir o resto.
Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegado. O resto é a “mob”: velhos mestiços de miserável descendência, roídos de opilação e álcool; famílias decaídas, a viverem misteriosamente umas, outras à custa do parco auxílio enviado de fora por um filho mais audacioso que emigrou. “Boa gente”, que vive de aparas.
Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças – sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim, donde os casadouros fogem. Pescam, às vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de carreira – e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de lendas.
Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio – magro estafeta bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir-e-vir com duas malas postais à garupa, murchas como figos secos.
Até o ar é próprio; não vibram nele fonfons de auto, nem cornetas de bicicletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plás-plás de mascates sírios. Só os velhos sons coloniais – o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recruzam o céu.
Isso, nas cidades. No campo não é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.
À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.
Raro é o casebre de palha que fumega e entremostra em redor o quartelzinho de cana, a rocinha de mandioca. Na mor parte os escassíssimos existentes, descolmados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam-se do melão-de-são-caetano – a hera rústica das nossas ruínas.
As fazendas são Escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Ladeando a Casa-Grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas guanxumas nos interstícios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa. Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicamente, como lagartixas na pedra, um pugilo de caboclos opilados, de esclerótica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a querência, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem frutificam – a fauna cadavérica de última fase a roer os derradeiros capões de café escondidos nos grotões.
– Aqui foi o Breves. Colhia oitenta mil arrobas!…
A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!… A mesma morraria nua, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto – o tremendo deserto que o Átila Café criou.
Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxima-se de vagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; permanece imóvel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça… O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo a Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos… E lá ficará ele, atestando mudamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que a ruína consuma o rijo poste de “candeia” ao qual o amarraram um dia – no tempo feliz em que Ribeirão Preto era ali…
Os três livros
A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além.
Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho.
O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo que se lhe desbota a mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotões.
Trazem-lhe os jornais o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas como os jornais vêm apenas para meia dúzia de pessoas, formam estas a aristocracia mental da cidade. São “Os Que Sabem”. Lembra o primado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.
Atraídos pelas terras novas, de feracidade sedutora, abandonaram-na seus filhos; só permaneceram os de vontade anemiada, débeis, faquirianos. “Mesmeiros”, que todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do presente e pitam — pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.
Entre as originalidades de Oblivion uma pede narrativa: o como da sua educação literária.
Promovem-se três livros venerandos, encardidos pelo uso, com as capas sujas, consteladas de pingos de vela — lidos e relidos que foram em longos serões familiares por sucessivas gerações. São eles: La Mare d’Auteuil, de Paul de Kock, para o uso dos conhecedores do francês; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo das imaginações femininas; e Ilha Maldita, de Bernardo Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas.
O dono primitivo seria talvez algum padre morto sem herdeiros. Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros forraram-se à propriedade individual. Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole diz na rodinha da farmácia:
— Onde andará o Rocambole?
Informam-no logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor último, ficando desde esse momento como o seu novo depositário. Processo sumaríssimo e inteligente.
Quando se esgotou a minha provisão de livros e, ignorante ainda da riqueza literária da terra, deliberei recorrer ao estoque local, dirigi-me a um dos Seis. O homem enfunou-se de legítimo orgulho ao dar-me os informes pedidos.
— Temos obras de fôlego, poucas mas boas, e para todos os paladares. Gênero pândego, para divertir, temos, “por exemplo”, La Mare d’Auteuil, de Paul de Kock. Impagável!
— Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.
— Temos o célebre Rocambole, “gênero imaginoso”; infelizmente está incompleto; faltam uns dezessete volumes.
— Não me serve o resto.
— E temos uma obra-prima nacional, a Ilha Maldita, do “nosso” Bernardo Guimarães.
Parando aí o catálogo, era forçoso escolher.
No concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça — mas uma roça adjetivada por menina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas e invariáveis amenidades. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas cor de jambo.
Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos, Bernardo aponta doçuras, insetos maviosos, flores olentes.
Bernardo mente.
Mas como mente menos que o Paul de Kock ou o truculento Ponson, pai do Rocambole, escolhi-o.
Veio o livro. Volume velho como um monumento egípcio e como ele revestido de inscrições. Cada leitor que passava ia deixando o rastro gravado a lápis.
“Li e gostei”, dizia um, “Li e apreciei”, afirmava certa senhorita. Inscrição quase em cuneiforme rezava “Fulano leu e apreciou o talento do grande escritor brasileiro”. Outro versificava: “Já foi lido — Pelo Walfrido”. Tal moça notara parcimoniosamente: “Li” e assinou. Um amigo da ordem inversa pôs: “Li e muito gostei”.
Houve quem discordasse. “Li e não gostei”, declarou um fulano.
O patriotismo literário dum anônimo saiu a campo em prol do autor: “Os porcos preferem milho a pérolas”, escreveu ele embaixo.
Monograma complicadíssimo subscrevia isto: “O Rocambole diverte mais”.
E assim, por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capítulo, as apreciações se alastravam com levíssimas variantes ao sóbrio “Li e gostei” inicial. Havia nomes bem antigos, de pessoas falecidas, e nomes das meninas casadeiras da época.
Os intelectuais de Oblivion bebiam à farta naquela veneranda fonte. Em Bernardo abeberavam-se de “estilo e boa linguagem”, conforme afirmou um; no Rocambole truncado exercitavam os músculos da imaginativa; e no Paul de Kock, os eleitos, os Sumos (os que sabiam francês!) fartavam-se da grivoiserie permitida a espíritos superiores.
Essa trindade impressa bastava à educação literária da cidade. Feliz cidade! Se é de temer o homem que só conhece um livro, a cidade que só conhece três é de venerar. Veneração, entretanto, que não virá, porque o mundo desconhece totalmente a pobrezinha da Oblivion…