VALÉRIO BEMFICA (*)
O título desta matéria lembra, obviamente, o nome da franquia de filmes de Natal estadunidense. Mas não, leitor, não se trata de crítica cinematográfica ou de anúncio de mais um blockbuster. Pretendemos fazer uma pequena reflexão sobre a Cultura no Governo do capitão-messias.
Se a redemocratização de 1985 tinha, com muita justiça, dado à Cultura o status ministerial – temporariamente cassado por Fernando, o Fugaz – começamos 2019 reduzidos à condição de Secretaria Especial, subordinada ao Ministério da Cidadania. Alguns respiraram aliviados por, pelo menos, ter como titular alguém da área: Henrique Pires. O alívio dos otimistas durou pouco, pois as vozes do obscurantismo, bradando por censura, caça às bruxas, cancelamentos de editais, etc., se impuseram. O iludido ex-secretário não aceitou e foi de pronto substituído por alguém mais alinhado ao pensamento dominante no governo: Ricardo Braga, ex-diretor de Investimentos do Andbank Brasil e ex-superintendente de operações do Banco Votorantim. Paulo Guedes mostrando quem manda.
Durou pouco também. Não deve ter achado na área nada que pudesse ser transformado em títulos ou negociado em Bolsa. Foi para a Educação, onde seu amigo Abraham promete ótimos negócios. Mas o ministro-cidadão não aguentava mais a tal Secretaria Especial. Em dez meses só rendeu encrenca. Até conseguiu fazer uma festinha em seu reduto eleitoral, fazendo de conta que, em 15 dias de governo, conseguiu a proeza de resolver a situação dos monumentos das Missões, Patrimônio Cultural da Humanidade. Ninguém acreditou e, pior, tudo depois foi polêmica. Nada que prestasse, nenhuma notícia boa, nenhuma medida elogiada. Solução? Livrar-se da bomba! A Secretaria Especial de Cultura foi despejada no colo do cítrico ministro do Turismo. Ideia genial! Cultura = show de mulatas para gringo ver na Angra dos Reis transformada em nova Cancún! E, como novo titular, o neofundamentalista que conseguiu unificar a classe artística (contra ele!) ao xingar boçal e gratuitamente Fernanda Montenegro. Não iremos nos deter sobre o cidadão agora. A tarefa exigiria conversas com nossos superiores, versados em psiquiatria. Alguém que passa trinta anos dizendo fazer teatro sério, jurando ser de esquerda e, de repente, vira um Arauto do Evangelho, soldado do capitão-messias, Brancaleone convocando exércitos de artistas de direita – e isso sem ter visto Jesus na goiabeira – é caso patológico e como tal merece ser analisado.
Vamos nos deter em um fato que passou despercebido pela grande imprensa, embora lembrado aqui no HP e que justifica nosso título. No dia em que a transferência para o pomar do turismo foi anunciada, fomos ler o decreto exarado pelo capitão-messias. Estranhamente, a Funarte (criada em 1975, no governo Geisel), o IPHAN (1937, governo Vargas), Biblioteca Nacional (1810, Brasil Colônia), Fundação Casa de Rui Barbosa (inaugurada como museu em 1930 e transformada em fundação em 1966, no governo Castelo Branco), Fundação Cultural Palmares (1988, governo Sarney), Instituto Brasileiro de Museus (desmembrado do IPHAN em 2009, mas que administra museus centenários) e a Ancine (caçula do sistema MinC, mas que deita raízes em órgãos criados na primeira metade do século passado) tinham sido “esquecidos” no Ministério da Cidadania! Apesar de o decreto do dia 7 de novembro ter lançado todas as políticas da área à sombra do laranjal do Turismo, seus órgãos executivos foram deixados na pasmaceira da Cidadania. Só no dia seguinte algum burocrata do ministério Corona – ops, Lorenzetti, ops, LorenZona – lembrou de também os transferir. Talvez por reclamação do ministro Cidadão, que se disse aliviado em livrar-se do fardo e que não queria nem um restinho de cultura poluindo sua seara. O olvido terá sido um ato falho, um lapso? Talvez, mas como todo o ato falho, repleto de significados.
São décadas, séculos de memória, de acúmulo de conhecimento, de pesquisas, de documentos, de história, acumulados em sete instituições mundialmente respeitadas. Apesar de eventuais equívocos cometidos ao longo deste tempo e dos pífios orçamentos, formaram gerações de técnicos extremamente qualificados, servidores dedicadíssimos, preservaram partes fundamentais da alma brasileira, foram decisivos na construção de nossa identidade como país. Enfim, proporcionaram o acesso à Cultura e à arte a dezenas de milhões de brasileiros. Mas deram o azar de, ao contrário do Museu Nacional, não pegarem fogo antes da assunção do capitão-messias ao posto de Presidente.
Em um governo que se orgulha da ignorância, dissemina o obscurantismo e inveja os valores medievais, elas são, mais do que inúteis, nocivas. De que serve uma fundação que não lança editais exclusivamente para a arte evangélica, com ênfase na teologia da prosperidade? Ou um instituto que não eleve o Templo de Edir Salomão à condição de patrimônio brega, quer dizer, cultural da humanidade? Ou uma biblioteca que não tenha alas inteiras dedicadas ao astrólogo de Richmond? De que serve uma fundação que estuda o pensamento brasileiro e que não apoiou a principal atividade intelectual que esta turma promoveu, a saber, a Convenção Brasileira de Terraplanismo? Que dizer então de uma fundação que não controla a quantidade de arrobas que cada quilombola pesa? Ou um monte de museus que ignorem os elaboradíssimos memes criados pela intelectualidade whatsapiana amiga do Carluxo? E uma agência que ainda não teve a brilhante ideia de financiar um reality show chamado “Empreguinho Bom”, comandado pelo Queiroz, a ser exibido na TV do Bispo? Dinheiro posto fora!
A memória é traço distintivo dos mamíferos superiores. A maioria das espécies apenas age conforme seus instintos. No ser humano a memória vai além da simples capacidade de repetir algo que deu certo ou de evitar aquilo que deu errado. A mente humana tem a capacidade de aprender com situações diferentes, de não apenas repetir experiências anteriores, mas de aprimorá-las, transformá-las e, principalmente, de transmiti-las às gerações futuras. Ou seja, o ser humano tem, como principal diferencial em relação aos outros animais, o fato de ser portador de Cultura. Quando se coloca diante de nós um governo que odeia a Cultura, que quer ver suas instituições destruídas, sua história queimada, seus profissionais calados, só podemos concluir que seu núcleo é composto por seres que mal atingem a condição de primatas. A maior parte – incluindo aí o capitão-messias e seu entorno mais próximo – age apenas obedecendo seus (baixos) instintos, disparando contra inimigos imaginários, sejam eles hienas, adversários da quadrilha ou artistas, universitários, cientistas, estudantes. A meta é destruir a tudo e a todos, para que só sobrevivam aqueles ainda mais ignorantes que eles mesmos. Daí a eleição da Cultura, da Educação e da Ciência como inimigos prioritários.
Mas, é claro, um governo não se faz só com tal classe de alucinados. Não duraria mais de uma semana e descambaria para o canibalismo. Aproveitando-se da hybris instalada no palácio, vigaristas, golpistas, carreiristas e oportunistas de todos os quilates apresentam-se na corte, pousando de leais servidores, de luminares das platitudes, querendo garantir sua parte no butim. Assim é o arremedo de Friedman que se alojou no Ministério da Economia. Sim, leitor, estávamos falando do desmonte da Cultura. Mas, essencialmente, não há diferença entre o projeto de esquecer, esmagar, matar de inanição nossas instituições culturais e a Black Friday promovida pelo bandido nos ativos da Petrobras. Ou o projeto de transformar nossas Universidades Públicas em um lucrativo empreendimento privado. Ou a tentativa de fazer os aposentados brasileiros transformarem-se em escravos de arapucas privadas de capitalização. Ou, ainda, da destruição de todo o aparato de proteção social e de garantias trabalhistas alegando o aumento da liberdade econômica. Prova cabal é que, na última medida “modernizadora” enviada pelo escroque ao Congresso Nacional está incluída a extinção das duas fontes principais de financiamento federal à Cultura Brasileira: o Fundo Nacional de Cultura e o Fundo Setorial do Audiovisual. Escondidas, desvalorizadas, comandadas por ineptos, sem orçamento. Qual será o destino das instituições?
Felizmente, leitor, a história nos ensina que estes pesadelos não costumam durar muito. Não se apaga a Cultura de um povo – menos ainda uma Cultura rica e pujante como a brasileira – por decreto. A loucura e a estultice como forma de governo têm vida curta. Apedeutas só conseguem se fingir de sábios por pouco tempo. As forças vivas da Nação, os setores comprometidos da sociedade reagem e recolocam os tipos em seus devidos lugares: uns no ostracismo, outros na cadeia, o resto no manicômio.
(*) Presidente do CPC-UMES