CARLOS LOPES
(HP, 05/11/2014)
A forma mais grosseira e vulgar de oportunismo é aquela que quer justificar qualquer barbaridade – inclusive qualquer traição e qualquer crime – com base em uma suposta “correlação de forças” que não permitiria outra alternativa.
Assim, se os juros são os mais altos do mundo; se esses juros sobem mais ainda (e não subiram por ação da natureza); se o maior campo petrolífero do mundo é aberto para as multinacionais; se mais um leilão do petróleo é marcado para maio de 2015; se o país regride em direção ao que era antes de 1930, com a indústria nacional sendo destruída e as empresas, em geral, desnacionalizadas a ritmo de mercado persa; se o emprego industrial está caindo há 35 meses; se a parte pública do setor elétrico é desmontada; se a infraestrutura é privatizada com cláusula obrigatória para que empresas estrangeiras se apossem dela; ou se o governo se abaixa indignamente ante a política norte-americana – não se preocupe, estimado leitor, pois o governo não pode fazer outra coisa.
Tudo é por causa da “correlação de forças”. Portanto, segundo os adeptos governistas dessa tese, a covardia torna-se coragem, a falta de vergonha torna-se integridade, o parasitismo adesista torna-se patriotismo – e, claro, a mentira descarada torna-se a mais pura, cristalina e imaculada verdade.
Como se isso tivesse alguma chance de continuar indefinidamente…
Mas essa chance não existe. A “correlação de forças” (mesmo quando é verdadeira e não falsificada) nunca determinou a política de ninguém ou de nenhum partido. Nem mesmo a dos oportunistas, que têm uma política oportunista porque são oportunistas, não por causa da “correlação de forças”.
Chama-se “política” – no sentido mais usado, mais comum, da palavra (isto é, no sentido tático) – exatamente ao que uma força política pretende fazer para mudar a correlação de forças, obviamente para que seja possível realizar o seu programa, se ela o tem (na verdade, todas têm algum, mesmo que seja o de se submeter ao programa dos republicanos dos EUA; mas é outra característica do oportunismo esconder o seu programa – o verdadeiro, bem entendido).
A correlação de forças, portanto, condiciona a política de uma determinada força ou partido. Mas não a determina.
Logo, a submissão proclamada à “correlação de forças” é mero conformismo – mais exatamente, adesão ao “mais forte”, colaboracionismo com os monopólios financeiros imperialistas, do mesmíssimo modo que Pétain e Laval resolveram colaborar com o nazismo. Afinal, era preciso respeitar a “correlação de forças”…
Como sempre acontece, essa miséria autoritária e submissa tem pouco a ver com a realidade. Haja visto que, para essas damas e cavalheiros, a correlação de forças sempre é favorável aos inimigos do país, mesmo quando ela é, evidentemente, favorável ao povo e à Nação – como no caso de Libra, campo descoberto pela Petrobrás no pré-sal, com nenhuma outra companhia em melhores condições para explorar, com a própria lei destinando à empresa brasileira a exploração das áreas estratégicas, mas que o governo Dilma leiloou, para que a Shell e a Total entrassem no negócio.
CONTAS
Vejamos o déficit orçamentário (déficit “primário”, ou seja, falta de dinheiro – portanto, necessidade de tomar empréstimos ou de emitir dinheiro – para as despesas não-financeiras, chamadas “despesas primárias”), que provoca manchetes horrorizadas da imprensa reacionária desde sexta-feira – fazendo o governo, depois de aumentar os juros, preparar outro estelionato eleitoral recessivo: um pacote de corte nos gastos e investimentos públicos, já extremamente exíguos.
Em suma, uma estupidez, sobretudo para um país que já está em recessão, com a produção industrial recuando ao patamar de 2007.
[Por falar nisso, um dos propalados conselheiros da presidenta, o hoje consultor Luiz Gonzaga Belluzzo, declarou, no dia do segundo turno das eleições, que havia lido um relatório da OCDE mostrando a importância da indústria para o crescimento. Da próxima vez, talvez Belluzzo diga que ao ler o “Relatório Sobre Manufaturas” – que Alexander Hamilton apresentou ao Congresso dos EUA em dezembro de 1791 -, não ficara muito convencido sobre o papel da indústria no crescimento, mas que, depois de ler o relatório da OCDE, aí, sim… Só falta Belluzzo convencer a sua cliente – quer dizer, aconselhada (dizem que é ex-aluna) – de que a indústria tem alguma função na economia.]
Voltemos ao déficit: certamente, ele não teria importância alguma – em nossa situação atual, seria até auspicioso e alvissareiro, como dizia um político das antigas – se significasse que os investimentos e gastos públicos estão aumentando, e, por consequência, o país está crescendo ou vai crescer. A ideia (?) de que a função do Estado é acumular “superávits primários” – desviar dinheiro que está alocado nas “despesas primárias” (Educação, Saúde, etc.) para os juros que locupletam bancos e demais rentistas – não é apenas absurda e criminosa: é, também, o suprassumo da ineficiência econômica. Para comprová-lo, basta olhar o país no governo Dilma.
Portanto, um “déficit primário” que significasse aumento de recursos para as despesas não-financeiras, até que seria bem-vindo.
Infelizmente, não é nada disso o que ocorreu – e nem vai ocorrer, como é claro pelo pacote em preparo no governo.
Aliás, o sr. Arno Augustin, secretário do Tesouro, ao anunciar o resultado das contas do governo, não conseguiu convencer nenhum vivente de que está havendo uma sensacional ampliação nos investimentos do governo federal. O número mencionado por ele (sempre é possível tirar um rato de alguma cartola, sobretudo manejando despesas “empenhadas” e “restos a pagar” como se fossem gastos efetivos) não tem importância alguma, pois é informação do próprio Tesouro, em documento oficial, que, de janeiro a setembro, o governo liberou efetivamente (ou seja, “pagou”), do Orçamento de 2014, apenas R$ 11,686 bilhões em investimentos orçamentários, menos de 15% do que foi aprovado pelo Congresso – ao mesmo tempo que os investimentos das empresas estatais caíram em relação ao ano passado (cf. STN, “RREO setembro 2014” e DEST/MPOG, “Orçamento de Investimento das Empresas Estatais, 4º bimestre 2014”).
Porém, o problema do sr. Arno não é, evidentemente, falta de leitura do que ele próprio assina. Ao reconhecer que a queda na arrecadação foi devida ao baixo crescimento, ele cometeu duas fraudes (o que é grave, mais ainda no cargo que ocupa):
1) esse “baixo crescimento” não foi devido a uma “expansão internacional menor que a esperada”, ao contrário do que disse Augustin;
2) Augustin omitiu as “desonerações”, feitas com o propósito de aumentar a margem de lucro dos monopólios multinacionais, na vã esperança de que eles iriam resolver os problemas econômicos do Brasil.
Quanto à primeira questão, o Brasil, na última lista do FMI, ocupa a 171ª posição em crescimento , e a 140ª quanto à taxa de investimento – e isso porque há 16 países que ainda não divulgaram dados sobre essa taxa, alguns com crescimento muito superior a essa mediocridade do governo Dilma, portanto, com taxa de investimento certamente maior (cf. FMI, “World Economic Outlook Database October 2014”).
Se é assim, em que a “expansão internacional”, maior ou menor, tem nos prejudicado? Por que não tem prejudicado os outros países?
O crescimento econômico do nosso país (0,27%, talvez menos, em 2014) está abaixo não apenas da China (7,4%) e da Índia (5,6%), mas também, por exemplo, do Turcomenistão (10,1%), Chade (9,6%), Mongólia (9,1%), República Democrática do Congo (8,6%), Costa do Marfim (8,5%), Myanmar (8,5%), Moçambique (8,3%), Etiópia (8,2%) e Serra Leoa (8%).
Ou, na América Latina, por que o Brasil é o 28º em crescimento, entre 32 países – abaixo, por exemplo, da República Dominicana (5,3%), Bolívia (5,2%), Nicarágua (4%) e Equador (4%)?
POLÍTICA
Não vamos perder tempo com os devaneios colonizados que vagueiam pelo Planalto ou pelo Alvorada. A crença de que os EUA e outros países centrais vão resolver os nossos problemas já era um delírio senil – e acoelhado – na época de Washington Luiz. Tanto assim que o nosso caminho foi outro, aliás esplendidamente bem sucedido.
Óbvio que precisamos exportar, mas, diferente de outros países, que entram periodicamente em estagnação porque dependem do mercado dos outros, nós temos a quinta maior população do mundo, logo, potencialmente, o quinto maior mercado interno.
Não precisamos de mais para chegar à conclusão de que o “baixo crescimento” mencionado pelo secretário do Tesouro é uma consequência direta da política econômica do governo de que faz parte – a começar pelo estrangulamento das empresas e consumidores por juros altíssimos e pelo favorecimento despudorado às mercadorias e empresas estrangeiras.
No momento, os empresários brasileiros, infelizmente, nem estão reivindicando (pelo menos não ainda) que suas empresas sejam tratadas pelo governo preferencialmente em relação às externas, embora isso seja o mais eficiente, do ponto de vista de fazer o país crescer.
Aliás, por que o Estado nacional não deveria tratar, como acontece em todo o mundo, as empresas nacionais prioritariamente, em relação às que não são nacionais? Para que serve um Estado nacional, senão para congregar e proteger os nacionais? Um Estado que não o faz, no mínimo, está sendo usado por forças antinacionais – o que significa que está no caminho de deixar de ser um Estado nacional para ser uma feitoria colonial.
No entanto, hoje, os empresários nacionais estão apenas querendo que o governo deixe de prejudicá-los. O que, em nossa opinião, é pouco, mas revela a que ponto se chegou no atual governo.
[A propósito, não é sábio, porque não vai dar certo, descarregar sobre os trabalhadores as dificuldades impostas pela política do governo – por exemplo, colaborar com as multinacionais na campanha contra as leis trabalhistas. O problema das empresas nacionais não está aí. Rebaixar o poder aquisitivo dos trabalhadores serviria para deixar as empresas nacionais sem mercado, enquanto as multinacionais, que exploram uma faixa muito estreita do mercado – a de mais alta renda –, aumentariam os seus lucros e engoliriam o que resta das empresas nacionais. Da mesma forma, achar que a solução está em acordos comerciais da corda com o enforcado (Alca, União Europeia, etc.) é pedir para morrer.]
QUEDA
Quanto às “desonerações”, é evidente que um governo pode, em sua política econômica – e em sua política industrial – promover tais ou quais reduções de impostos, em função das necessidades nacionais, para estimular determinados setores, ou para promover maior justiça tributária, se for o caso.
Mas as “desonerações” do governo Dilma nada têm a ver com as necessidades nacionais, com estímulo à produção ou com justiça tributária. Nem com benefícios às empresas nacionais – exceto ao modo de M. Jourdain, aquele personagem de Molière que fazia prosa sem o saber.
Essas “desonerações” são parte de uma política anti-industrial, cujo lado mais visível é a bagunça, tão grande que faz lembrar aquela outra, aprontada por Dilma no setor elétrico.
Alguns diriam que é incompetência e demagogia – e quanto mais demagógico, mais incompetente, embora a recíproca não seja necessariamente verdadeira.
É verdade. Mas a questão de fundo é que a demagogia, secretada para tapar – ao modo de uma folha de parreira – o servilismo, aparece como incompetência (até porque também é incompetência).
De janeiro a setembro, em comparação com o mesmo período de 2013, em valores já corrigidos pela inflação, os bancos e outros antros financeiros pagaram -5,43% em impostos; a indústria automobilística, -15,51%; as teles, -15,56%; a indústria química, -9,17%; o setor eletro-eletrônico, -8,55%; a indústria de máquinas e equipamentos, -10,80%.
No conjunto dos setores econômicos, a queda na arrecadação foi de -8,51% (cf. SRF, “Análise da Arrecadação das Receitas Federais – Setembro 2014“; esses números não incluem a mal chamada “desoneração da folha de pagamento”, isto é, previdenciária).
No total das desonerações, de janeiro a setembro (R$ 75,690 bilhões, um aumento de R$ 19,784 bilhões ou +35% em relação ao mesmo período do ano anterior), as da Previdência atingiram R$ 14,238 bilhões (em relação a 2013, um aumento de R$ 6,163 bilhões ou +76%).
Para a indústria nacional, essas “desonerações” têm pouca importância. Tanto isso é verdade que a indústria nacional de máquinas e equipamentos está, provavelmente, com o pior desempenho da sua história, apesar dessas desonerações. No entanto, alguns empresários nacionais, asfixiados pela atual política econômica, festejaram essas “desonerações” – mas isso é apenas uma medida do seu desespero.
O que as empresas nacionais precisam, sobretudo, é de financiamento, prioridade nas compras governamentais e mercado interno com maior poder aquisitivo – ou seja, precisam que mude a política econômica.
Para as filiais de multinacionais é diferente, pois sua principal função é enviar lucros para suas matrizes no exterior. Portanto, as desonerações, assim como os financiamentos do BNDES, são uma ajuda inestimável para que aumentem suas remessas para fora, ou seja, para que saqueiem o nosso país – sobretudo nos atuais tempos, em que não são muitos os patos que elas podem, ou conseguem, depenar.
Quando conferimos os resultados por tributo, o que mais chama atenção é a diminuição dos impostos recolhidos pelo setor financeiro, justamente o setor que não foi afetado pelo baixo crescimento, até porque a sua expansão cancerosa é uma das principais causas do baixo (aliás, nulo) crescimento.
1) A arrecadação do Imposto de Renda das empresas caiu -2,41%, mas isso foi devido, exclusivamente, a uma queda de -17,49% no IR dos bancos e demais empresas financeiras.
2) O Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) teve uma redução, no montante arrecadado, de -6,22%.
3) A arrecadação da Contribuição Social Sobre o Lucro (CSLL) das “entidades financeiras” caiu -14,89%.
Quanto ao mais, notemos que a arrecadação do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) em um setor hoje altamente desnacionalizado – o de fabricação de bebidas – caiu -9,91%.
Além disso, a arrecadação do Imposto sobre Importação caiu -4,84% de janeiro a setembro, em relação ao mesmo período do ano passado. Ao mesmo tempo, a do Imposto Sobre Produtos Industrializados vinculado à importação caiu -4,17% (a redução das importações, devido à estagnação econômica, no mesmo período, foi bem menor: -2,75%; portanto, o governo está, não apenas por mecanismo cambial, mas também fiscal, subsidiando importações contra a indústria nacional).
Para encerrar esta breve amostra: a arrecadação da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) teve uma queda de -3,74%, enquanto a do Pis/Pasep foi de -3,21%.
MEMÓRIA
É apenas óbvio que uma política dessas, que só faz percorrer o caminho de ida e volta (ou de volta e ida) da completa histeria até o capachismo aos bancos, multinacionais e pistoleiros do mercado financeiro, não podia deixar de ter como consequência a bancarrota das contas públicas.
Mais uma vez, ressaltamos que essa bancarrota não está no “déficit primário” em si. Os “superávits primários” para transferir imensos recursos públicos da Educação, Saúde, etc., para os cofres dos bancos e outros rentistas, sob a forma de juros, é uma aberração neoliberalóide que compete com o genocídio em teor criminoso – inclusive por sua completa ineficiência econômica.
A questão é, portanto, outra. O déficit não resulta de investimento público algum – não houve gasto a mais em favor do país e de sua economia – mas exatamente do seu oposto: a postura de lacaio diante dos inimigos do país.
Como nem coragem para emitir dinheiro esse governo tem (todo o dinheiro em circulação, mais os depósitos em contas-correntes, chegava, em setembro, apenas a R$ 311,115 bilhões ou 6% do PIB, o que é pouquíssimo para o Brasil – e outra forma de manter os juros altos), ele tentará fabricar um “superávit primário” através de um arrocho geral, num país em que, nos últimos quatro trimestres, em três deles o “crescimento” foi negativo.
Entretanto, a História não é feita pelos submissos, pelos covardes e – vamos falar francamente – pelos traidores. Quem se lembra do sujeito que traiu Leônidas nas Termópilas? Certamente, os 300 de Esparta poderiam ter “respeitado a correlação de forças”, rendendo-se aos persas. O que eles ganharam, ao resistir, além da preservação da honra e a eterna memória dos seres humanos?
Pode ser que a honra seja pouco – ou nada – para alguns. Não é o nosso ponto de vista, muito menos a nossa convicção. Mas, realmente, Leônidas e seus companheiros ganharam algo mais.
Eles ganharam a guerra.