(HP, 22-27/05/2009)
No dia 20 de maio, completamos quatro anos sem a presença física de nosso fundador, Cláudio Campos, em nossa redação. Durante esse tempo, procuramos seguir o seu legado – e sem esse legado nenhuma edição da Hora do Povo conseguiria ser realizada. Como todo grande homem, ele ultrapassou, por suas ideias, por seu exemplo e pelas pessoas que se formaram na convivência com ele – e por aquelas que não o conheceram, mas que tiveram com ele contato através de nós ou através de seus escritos – as fronteiras da simples vida biológica. Goethe, um dos autores mais respeitados por Cláudio, traduzindo um dos aforismas de Hipócrates, escreveu: “breve é a vida, longa é a arte”. Mas o que é a arte dos grandes homens senão sua vida, multiplicada e interiorizada pelos demais?
Os tempos atuais confirmaram inteiramente o pensamento de Cláudio. Em especial a crise de hoje nos centros imperialistas, que ele via com nitidez no auge daquela infâmia que se chamou neoliberalismo. Onde outros não conseguiam encontrar a saída, Cláudio, também secretário geral do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, a descortinava com precisão.
O texto que reproduzimos hoje, publicado originalmente em nossa edição de 30 de junho de 1995, é uma demonstração esplêndida dessa capacidade. No início do governo Fernando Henrique, quando jamais em toda a nossa História, as luzes do país pareciam se apagar, Cláudio sintetizou as discussões e debates sobre os caminhos para o Brasil. Foi ele o principal redator, a alma e o pensamento do “Programa de Emancipação do Brasil”, naqueles momentos que pareciam tão funestos para o nosso povo – e, de resto, para a Humanidade.
Relendo hoje esse texto, passados quase 15 anos, o leitor verá a atualidade com que Cláudio aborda cada aspecto de nossa trajetória enquanto Nação, desbravando o caminho que ela seguiu – e seguirá no futuro.
C.L.
Programa de Emancipação do Brasil
CLÁUDIO CAMPOS
O Brasil atravessa momentos decisivos da sua história. Ao mesmo tempo em que uma catástrofe econômico-social ameaça desabar sobre nosso país. Nosso povo, cansado de tantas promessas não cumpridas, traições, desenganos, injustiças, se prepara para tomar seu destino nas mãos. Cada vez mais se desmascara a prática de uma oligarquia que tem governado este país com o único objetivo de locupletar-se, pouco se lixando para os interesses nacionais e as necessidades mais sentidas de nosso povo. O manifesto em defesa da soberania e da integridade do Brasil, lançado por figuras de proa do meio civil e militar e pelas entidades populares mais representativas, expressa, com profundidade, a vontade de mudança do Brasil.
A raiz da crise brasileira está no esgotamento, desde meados da década de 70, de um modelo econômico que tem como característica básica a dependência externa e que, em consequência disso, tem que excluir a quase totalidade de nosso povo dos frutos do progresso. As riquezas aqui produzidas, em lugar de serem investidas no desenvolvimento do país, na geração de emprego e na melhoria dos níveis de vida dos brasileiros, vêm sendo apropriadas por monopólios estrangeiros, em conluio com uma oligarquia financeira interna. Expressão disso é o fato de que, nos últimos seis anos, as 7.500 filiais de empresas estrangeiras instaladas no Brasil transferiram para suas matrizes US$ 9 bilhões, enquanto só investiram US$ 458 milhões em nosso país.
Essa nova dependência externa do país substituiu um período de relativa independência econômica inaugurada pela Revolução de 30. As empresas transnacionais, particularmente as norte-americanas, após o término da Grande Guerra, da Guerra da Coreia e do período de reconstrução econômica da Europa, invadiram agressivamente países como o nosso, passando a dominar o essencial de nossas economias. A economia dependente que daí nasceu, além de explorar exaustivamente nossas riquezas naturais e sugar o sangue e o suor do nosso povo, freou nossas possibilidades de desenvolvimento, deformou nossa economia e a tornou altamente vulnerável.
Ao tentar manter sob seu domínio a indústria de máquinas e equipamentos, particularmente nos setores de tecnologia mais avançada, os trustes e cartéis estrangeiros procuram, por todos os meios, impedir o desenvolvimento em países como o nosso desse setor industrial estratégico. Isso não apenas em face dos superlucros que obtêm com a venda desses bens para países em desenvolvimento, mas, também, porque sabem que um país que implanta sua indústria pesada está a um passo da independência, principalmente quando se trata de um país como o Brasil, que é autossuficiente em recursos naturais. Sem uma indústria interna de meios de produção, sobretudo na área de máquinas e equipamentos, um país é obrigado a comprá-los no exterior a preços exorbitantes e, ao mesmo tempo, deixa de participar de um segmento expressivo e altamente rentável do mercado internacional (quem exporta minérios brutos, participa de uma fatia que corresponde a apenas 1% do comércio internacional, quando, dispondo de uma indústria pesada, passa a participar de uma fatia acima de 50% desse comércio).
Por outro lado, ao ter que viabilizar simultaneamente um determinado nível de investimento interno e a remessa para o exterior de grande parte dos lucros obtidos pelo capital estrangeiro aqui investido, essa economia dependente impõe uma brutal exploração dos trabalhadores, empurrando seus salários para níveis que, na maioria das vezes, ficam abaixo do mínimo de sobrevivência. A massa salarial no Brasil, em consequência disso, caiu de 56,6% da renda nacional em 1949 para menos de 30% atualmente. O resultado direto é o estrangulamento do mercado interno, particularmente para os ramos que produzem bens de consumo popular (têxtil, calçados, alimentos). Para sobreviver, esse setor passa a depender do mercado externo, o que lhe confere um elevado grau de vulnerabilidade, que se transmite para o conjunto da economia.
Ao mesmo tempo em que barrava o crescimento interno das indústria de máquinas e equipamentos e de bens de consumo popular, o capital imperialista expandia, rapidamente, em nosso país, o setor de bens de consumo de luxo, sobretudo de bens duráveis de consumo, puxado pela indústria automobilística. Era a forma de desovar as fábricas obsoletas que perdiam competitividade no cenário de ressurgimento dos conflitos inter-imperialistas. Esse setor, ademais, contava com um mercado interno em expansão no Brasil, graças ao intenso processo de concentração de renda derivado do próprio modelo dependente, que fez nascer uma parcela ponderável de setores médios com elevados níveis de renda.
O principal instrumento utilizado para esse ingresso de capital estrangeiro foi a Instrução 113, da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito, atual Banco Central, da lavra do economista Eugênio Gudin, velho entreguista, que se aproveitou do clima de perplexidade que sucedeu à morte de Getúlio Vargas para assumir a pasta da economia no governo Café Filho. Antes, em polêmica com Roberto Simonsen, pregava uma suposta vocação agrícola para o Brasil, certamente com o objetivo de manter nosso mercado interno sob monopólio dos produtos industriais dos países centrais. No entanto, quando a industrialização se tornou inevitável, com o processo de substituição de importações deflagrado por Vargas, Gudin passou a defender que ela se desse sob controle estrangeiro. O que ele não queria mesmo era que o Brasil caminhasse com as próprias pernas, sob comando dos brasileiros.
Essa penetração massiva do capital estrangeiro em nosso país levou a que, já na década de 70, suas sucursais no país passassem a controlar um terço do capital industrial aqui instalado e 45% das vendas industriais internas. Além disso, ao provocar o crescimento desproporcional do setor de bens duráveis de consumo em relação aos demais setores produtivos, produziu uma economia totalmente desintegrada e deformada, dependente do exterior para abastecer-se de meios de produção e para vender sua produção de bens de consumo popular.
Do ventre da economia dependente, nasceu uma dívida externa, que, na fase inicial (quando chegou a US$ 12 bilhões), somou-se ao superlucro monopólico obtido em cima do arrocho salarial para ajudar a financiar o modelo dependente. Mas, a partir de determinado momento (1973/74), com a enorme e abrupta elevação das taxas de juros nos EUA, a dívida cresceu, de forma vertiginosa, tão-somente para bancar o pagamento de seus próprios encargos, chegando aos atuais US$ 149 bilhões, dos quais US$ 30 bilhões constituídos de capitais especulativos. Inaugurava-se uma ciranda em que a dívida passou a gerar mais dívida, aumentando o poder do capital financeiro internacional sobre nossa economia e intensificando, em consequência, a forma mais espoliativa do domínio imperial: ganhar sem nada produzir.
Essa economia ainda conseguiu crescer durante um certo tempo, mantendo a trajetória que vinha de antes. A economia brasileira foi a que mais cresceu no mundo capitalista – 7% ao ano – nas cinco décadas que vão de 1930 a 1980. Mas isso se deveu, sobretudo, ao processo de desenvolvimento independente deflagrado com a Revolução de 30, que manteve algumas de suas características básicas e, portanto, suas potencialidades desenvolvimentistas mesmo depois que se consolidou o modelo dependente. Formara-se antes uma economia tão pujante – crescia 10% ao ano – que o domínio imperialista não conseguiu subjugá-la inteiramente ou mesmo destruí-la, como fez com outras nações mais débeis.
Reforçando esse fato, a presença de forças nacionais ao interior do regime de 64 permitiu não apenas preservar como, inclusive, desenvolver algumas das características mais importantes da economia independente – as estatais estratégicas, a substituição de importações, a reserva de mercado, medidas protecionistas, mecanismos oficiais de financiamento de empresas nacionais, etc. No entanto, o entreguismo deslavado que, por muito tempo, preponderou na área econômica, sob o comando de Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen, todos discípulos confessos de Eugênio Gudin, impediu que essas características independentes tivessem um maior desenvolvimento, ao mesmo tempo em que reforçava a dependência externa.
O grau de vulnerabilidade externa e as deformações internas, nascidos do ventre da dependência, cresceram a tal ponto que haveriam de bloquear, rapidamente, as virtualidades desenvolvimentistas de nosso país. Foi o que ocorreu a partir da primeira metade da década de 70. A economia norte-americana, tão logo entrou em decadência, na virada dos anos 60 para os anos 70, sob a pressão do avanço econômico do Japão e da Alemanha (a participação norte-americana no PIB do G-7, constituído dos sete países capitalistas mais desenvolvidos, que era de 68,6% em 1950, mal chega a 38,2% atualmente; enquanto isso, os PIBs japonês e alemão, que, no final da guerra, não passavam, cada um, de 10% do norte-americano, atingem, hoje, respectivamente, dois terços e um terço, sendo, ademais, mais desenvolvidos tecnologicamente em todos os setores fundamentais), enfrentou ao consequente ressurgimento dos conflitos inter-imperialistas com a tentativa de aumentar a espoliação dos povos do Terceiro Mundo. Amarrada que estava à economia do império em declínio, a economia brasileira perdeu seu impulso desenvolvimentista. A economia dependente passou a brecar e a deformar muito mais profundamente do que antes nossas possibilidades de desenvolvimento.
Vulnerável como estava, os efeitos da crise mundial, nascida nos EUA no começo dos 70, se fizeram sentir imediatamente na economia brasileira. A crise da economia dos EUA, que já vinha, silenciosamente, devorando suas entranhas, prorrompeu em 1971, quando, no maior calote de todos os tempos, o governo Nixon suspendeu os “acordos de Bretton Woods”, que estabeleciam a paridade e a livre-conversibilidade do dólar. Era a expressão monetária da estagnação tecnológica dos EUA e do simultâneo aumento da produtividade do trabalho do Japão e da Alemanha. Esgotava-se a ordem internacional de pós-guerra, hegemonizada pelo dólar e pela economia norte-americana. A profunda e generalizada recessão que lhe sucedeu (1973/74) invadiu todo o mundo capitalista, afetando grandemente aos países dependentes, entre eles o Brasil.
Sem uma indústria interna de meios de produção, o Brasil teve que aumentar drasticamente suas importações desses produtos: cresceram de US$ 1,7 bilhão em 1970 para US$ 10,1 bilhões em 1975, em grande parte devido ao aumento dos preços praticados pelos monopólios dos países centrais, como resposta à crise. Com uma dívida externa explosiva, a remessa de juros multiplicou-se por sete de 1970 para 1975/76, em face da elevação abrupta das taxas de juros pelos banqueiros norte-americanos. Com o mercado interno de bens de consumo popular estrangulado, esse setor teve seu crescimento bloqueado quando lhe faltou o mercado externo, em recessão.
A dependência cobrava seu preço na instauração de uma crise cambial, que rapidamente impregnou o conjunto da economia brasileira. A crise cambial refletiu, na realidade, o aumento da espoliação imperialista sobre nossa economia, forma de os monopólios norte-americanos enfrentarem a estagnação em que mergulhariam a partir de então. Esse aumento da espoliação externa se manifestou através da elevação dos juros internacionais, das remessas de lucros para o exterior e dos preços dos bens de capital que importamos, ao lado da queda dos preços dos produtos que exportamos. O PIB brasileiro, que crescera a uma taxa anual de 10% de 1968 a 1974, só cresceu 5,7% em 1975. Começava o esgotamento do modelo dependente. Os estreitos limites da dependência externa impuseram um forte freio ao desenvolvimento econômico do país, derrubando, ao mesmo tempo, a fantasia de que era possível driblar, indefinidamente, os limites impostos por uma economia dominada pelo imperialismo.
O Brasil só não mergulhou imediatamente em profunda estagnação, como ocorria com o resto do mundo, porque em 1974 começou-se a implementar o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que, ao realizar algum grau de enfrentamento do modelo dependente e desenvolver um importante programa de substituição de importações nas áreas de energia, máquinas, equipamentos e insumos básicos, integrou mais e fortaleceu a economia nacional. Ao mesmo tempo, se paralisava o processo de redução do salário real, amenizando o caráter excludente e de estreitamento do mercado interno da economia dependente. Nesse período, as forças nacionais que integravam o regime ditatorial, que antes estavam em situação secundária, adquiriram peso ao interior do governo, bancando a implementação de um programa econômico relativamente independente (que, infelizmente, não foi levado às últimas consequências, por pressões externas). Isso permitiu que a economia brasileira, em lugar de mergulhar na crise, pudesse crescer a 6,8% ao ano entre 1974 e 1980.
Desmentindo aos eternos vassalos da metrópole, que procuravam desacreditar aos que tinham fé no desenvolvimento nacional, o Brasil, em cinco décadas, emergiu de uma economia agro-exportadora atrasada e construiu uma economia urbano-industrial moderna. De 1930 a 1960, na fase de desenvolvimento independente, internalizou-se a produção de bens de consumo popular e de alguns setores de insumos básicos; na fase de nascimento e expansão do modelo dependente, dos anos 50 ao início dos 70, desenvolveu-se a indústria de bens duráveis de consumo, sob controle estrangeiro, nos anos 70, com relativo enfrentamento da dependência externa, realizou-se a substituição de importações nas áreas de máquinas, equipamentos, energia e insumos básicos. Só não foi mais longe porque a dependência externa não permitiu.
Mesmo assim, estava o Brasil preparado, do ponto de vista da estrutura produtiva, para, nos anos 80, avançar na conquista das tecnologias de ponta (informática, micro-eletrônica, engenharia genética, biotecnologia, novos materiais etc.) e completar seu processo de industrialização e integração econômica interna. No entanto, mais uma vez, e desta vez de maneira mais dramática, a dependência cobrava seu preço: em lugar de dar esse salto, a economia brasileira mergulhou num período de estagnação, apenas com ligeiros interregnos de expansão, chegando a destruir forças produtivas antes acumuladas. Ao longo de toda a década de 80, nosso PIB só cresceu 22%, dando uma taxa média anual abaixo dos 2%. Como a população cresceu nesse mesmo ritmo, a renda por habitante permaneceu estacionária nos anos 80, na faixa dos US$ 3 mil. A taxa bruta de investimento baixou de 23,3% do PIB na década de 70 para a faixa dos 15% no começo dos 90, mal dando para repor a depreciação do capital fixo. A crise afetou gravemente ao setor industrial: a taxa média anual de crescimento da produção industrial baixou de 9% na década de 70 para tão-somente 0,8% entre 1980 e 1993.
A situação só não foi mais dramática porque, de um lado, o desenvolvimento interno da indústria de máquinas, equipamentos, energia e insumos básicos, deflagrado pelo II PND, havia fortalecido a economia nacional e, de outro, porque o Plano Cruzado, preparado em 1985 e deflagrado em 1986, ao enfrentar, ainda que de forma insuficiente e temporária, as práticas monopolistas internas e realizar algum grau de distribuição de renda, chegou, pelo menos, a arranhar o modelo dependente, permitindo um crescimento anual do PIB de 7% na quadra 1985/86. Infelizmente, foi retardada a moratória da dívida externa, que só se realizou no começo de 1987, quando o Plano Cruzado já havia feito água e as reservas cambiais já estavam quase esgotadas.
A estagnação econômica dos anos 80 se deveu ao aumento da espoliação externa, decorrente de nova e mais drástica elevação das taxas de juros internacionais, combinada com a suspensão de novos empréstimos, caminho adotado pelo decadente imperialismo norte-americano como forma de sugar as economias do Terceiro Mundo a fim de tentar enfrentar a grave crise econômica em que mergulhara. O Brasil, em decorrência disso, foi sangrado anualmente, durante a década de 80, em um terço de sua poupança líquida, isto é, de sua capacidade de investimento. Para pagar esses juros externos, o governo brasileiro emitia títulos da dívida interna, os vendia no mercado a fim de obter moeda nacional e adquirir os dólares dos exportadores, com isso, produziu-se uma dívida pública interna, que saltou de 4,2% do PIB em 1980 para 15% em 1989. Apesar disso, a dívida externa não diminuiu; ao contrário; saltou de US$ 64,2 bilhões em 1980 para os atuais US$ 149 bilhões. Vejam o absurdo: pagaram-se, de 1980 a 1993, US$ 195 bilhões de “serviço” da dívida externa e, ainda assim, além de se haver gerado uma dívida interna monstruosa, se multiplicou por 2,3 a dívida externa. Quanto mais se pagava, mais se devia, num desafio frontal à aritmética mais elementar.
De lá para cá, já vivemos mais de uma década de cansativas, sacrificadas e infrutíferas tentativas de superar a crise pelo caminho dependente. Do decreto-lei 2045 ao Plano Real, passando pelo “feijão-com-arroz” da gestão Mailson da Nóbrega (padrinho e sócio do atual presidente do Banco Central) e pelo Plano Collor, praticamente todos os planos econômicos agravaram as causas da crise, em lugar de combatê-las. Nesse período, houve apenas uma tentativa, a do Plano Cruzado, de trilhar um caminho diferente, com algum grau de enfrentamento do modelo dependente e excludente – e, assim mesmo, por pouquíssimo tempo.
Com o enterro do Plano Cruzado, em novembro de 1986, abriu-se um período de grandes conflitos na nossa história recente. Na verdade, o anti-Cruzado de novembro condensou o esforço da oligarquia dominante em sabotar e barrar o processo de mudança que se iniciara com a reconquista da democracia. A partir daí, ao tempo em que, sob forte pressão popular, a Constituinte fazia uma Carta que consagrava os princípios da independência nacional, da democracia e da justiça social, assentando as bases para uma democracia avançada, o governo, em choque frontal com a voz das ruas e em oposição ao que fazia a Constituinte, retrocedia para uma política econômica que favorecia os laços da dependência externa, recriando as condições para o retorno ao núcleo do poder da oligarquia financeira externa e interna que tivera seu poder diminuído com o fim da ditadura. A “democracia burguesa” real que se construía ao nível do executivo, em oposição aberta ao texto constitucional, era uma verdadeira “ditadura dos cartéis”, particularmente estrangeiros.
Com Fernando Collor e Fernando Henrique no poder, a “ditadura dos cartéis” assume o controle do Estado como nunca fizera antes (mesmo na época da ditadura, ainda que predominasse no comando do Estado a oligarquia financeira internacional, havia certo espaço para as forças nacionais) e, a partir daí, tenta implementar um programa econômico com vistas ao controle total da economia brasileira pelos trustes e cartéis estrangeiros.
Esse programa econômico, inspirado nos princípios do chamado neoliberalismo, recebeu forma definitiva, em 1989, nos Estados Unidos, tendo sido batizado de Consenso de Washington, e vem sendo implementado por toda a América Latina. Sob os termos “abertura da economia”, “privatização”, “desregulamentação” e “flexibilização”, se escondem os reais objetivos da estratégia do senil e voraz imperialismo norte-americano para o atual momento: monopolização dos nossos mercados para desovar as quinquilharias de seus cartéis em crise (em quatro anos, de 1991 a 1994, o PIB norte-americano só cresceu 11,5%, o da Inglaterra 7%, da França 3,9%, da Alemanha 3,2% e o do Japão 1,9%); abertura de novos campos para aplicação rentável, segura e rápida das imensas massas de recursos financeiros que se descolaram da produção e vivem da especulação (US$ 13 trilhões, isto é, mais de dois PIB´s dos EUA e 26 PIB´s brasileiros, circulam pelo mundo à ordem de US$ trilhão por dia); controle dos nossos recursos naturais estratégicos, particularmente das fontes de energia (as reservas de petróleo dos EUA só conseguem abastecer cinco anos de seu consumo); monopólio dos avanços tecnológicos (lei de patentes); espoliação desenfreada de nossa força de trabalho (tentativa de destruição do movimento sindical e de eliminação dos direitos trabalhistas e previdenciários).
Esse é o caminho perseguido pela oligarquia financeira norte-americana para tentar emergir da crise estrutural em que mergulhou há mais de duas décadas. Propõe abrirmos nossas economias para a penetração de seus capitais especulativos e de seus produtos, mas acirra seu próprio protecionismo. O acirramento recente da disputa entre EUA e Japão, levada, inclusive, ao palco da Organização Mundial de Comércio, mostra o nível a que chegou o protecionismo nesses países. É o velho ditado: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. A alegação de que o Estado está falido e que cabe ao mercado a regulação eficiente da economia busca esconder o fato de que nunca houve tamanha pilhagem, pelos cartéis, sobre o patrimônio e os recursos públicos (para citar só uma dessas formas de pilhagem, estimativas dão conta de que, a permanecerem as atuais taxas de juros praticadas pelo governo, os juros desembolsados pela União em 1995 poderão consumir 80% de sua receita) e de que o chamado mercado se encontra, há bastante tempo, sob completo domínio dos monopólios privados. Tirar o estado da economia significa, na verdade, entregar a esses monopólios privados o domínio completo de nossas economias.
Servil até a medula a esses interesses externos, o governo Collor deflagrou a aplicação dessas medidas em nosso país, deixando um rastro de destruição, que só não foi maior em face da imensa resistência nacional, que, inclusive, culminou com sua derrocada. A queda da produção industrial, do emprego e do salário real, além do sucateamento dos serviços públicos, expressam essa destruição. A política de abertura da economia para os produtos estrangeiros, ao lado da política recessiva, começou, na verdade, a realizar a desindustrialização do país: a participação da produção industrial no PIB, que fora de 44% em 1984, baixou para 36% em 1994. O emprego industrial nos setores internos que “concorrem” com produtos importados caiu 35% de 1990 a 1994; na Grande São Paulo, a queda do emprego industrial foi de 21,7%, de setembro de 1989 a setembro de 1994. O salário médio real dos trabalhadores caiu 44% de 1989 a 1994 e seguiu caindo em 1995. Essa política de lesa-pátria estava destruindo um parque industrial construído por nosso povo ao longo de seis longas e sofridas décadas, além de lançar milhões de brasileiros nos desvãos da miséria. Ainda foi pouco o destino que o povo reservou, através do impeachment, a um presidente tão desnaturado.
O governo de FHC tenta levar às últimas consequências esse caminho de traição nacional. A combinação do Plano Real com a proposta golpista de rasgar a Constituição reproduz, em essência, a estratégia neocolonial condensada no Consenso de Washington, ou seja, no consenso dos trustes e cartéis norte-americanos. Ainda que prometendo a modernidade, o que, na verdade, enseja essa estratégia é o retrocesso; é a destruição do que existe de mais moderno no país, nosso parque industrial, para preparar o retorno a uma economia neocolonial, baseada na mineração e na agroindústria de exportação, bem como na absorção de capitais especulativos, como já ocorreu com o México, o Chile e a Argentina. Sintoma desse retrocesso é a queda, no primeiro quadrimestre de 1995, em 22% no volume das nossas exportações de produtos manufaturados e o simultâneo aumento em 12% no volume exportado de produtos básicos.
Esse é o caminho do desastre – como bem o demonstrou o colapso da economia mexicana -, porque, além da destruição e deformação da economia interna, provoca um elevadíssimo grau de vulnerabilidade externa. Supostamente para dar estabilidade à moeda nacional, mas, na verdade, para abrir nosso mercado para a ocupação pelos monopólios estrangeiros, FHC ancorou nossa economia na sobrevalorização artificial da moeda nacional e na redução das tarifas de importação, encarecendo nossos produtos no exterior e barateando no país os produtos estrangeiros, o que provocou um rombo na balança comercial, passando nossas compras no exterior a superar nossas vendas (nos sete meses encerrados em maio de 1995, o déficit na balança comercial foi de US$ 4,85 bilhões, projetando um rombo acima de US$ 8 bilhões para 1995, depois de mais de uma década de superávits comerciais, cifra que vem se somar ao déficit de US$ 16 bilhões estimado para a balança de serviços, sobretudo na conta de juros da dívida externa). Para cobrir esse rombo e garantir as reservas cambiais, necessárias à sobrevalorização do real, o governo tenta atrair capitais externos especulativos, através do estabelecimento de taxas de juros estratosféricas. O destino da nossa economia passa a depender, portanto, do movimento especulativo de uma massa de capitais que passeia pelo mundo na velocidade da luz, ampliando, como nunca, nossa vulnerabilidade externa. Exemplo disso é que, depois da crise mexicana, em dezembro de 1994, US$ 8,4 bilhões desses capitais foram embora do Brasil em apenas quatro meses.
O colapso das contas externas, com a consequente evaporação das nossas reservas cambiais, como aconteceu com o México, será o resultado inevitável dessa política. Os remendos ensaiados pelo governo (aumento de algumas alíquotas de importação ou fixação de cotas de importação de veículos) apenas postergarão um pouco o estouro da boiada (diz-se que os capitais especulativos têm o “comportamento de manada”), mas não conseguirão evitá-la.
Ao mesmo tempo, os juros siderais, usados como chamariz do capital especulativo, provocam o estrangulamento das contas públicas, das finanças das empresas e dos orçamentos das famílias. Com US$ 63,9 bilhões, isto é, 80% de suas receitas comprometidas com juros, as finanças da União ameaçam explodir a qualquer momento. Com US$ 70 bilhões de encargos financeiros para este ano, as empresas mergulham em inadimplência generalizada: no primeiro quadrimestre de 1995, houve 2.158.759 protestos, 80% acima de igual período de 1994; as concordatas chegaram a 349, 50% mais que em igual período de 1994, atingindo inclusive, grandes empresas, como a Casa Centro, uma das cinco maiores redes de eletrodomésticos do país. As famílias, submersas até o pescoço em dívidas contraídas sob a promessa ilusória do crediário fácil e barato, atingiram níveis inéditos de inadimplência: aumentaram 266% de abril de 1994 para abril de 1995, em São Paulo.
Nessa política, a renda nacional ou é drenada para o exterior ou esterilizada na especulação financeira, caindo nos bolsos do capital financeiro estrangeiro, em conluio com uma oligarquia financeira interna, e escapando da produção, do emprego, do mercado interno e dos investimentos sociais. Vendem a imagem de que a economia está crescendo porque comparam os atuais níveis de produção com o primeiro trimestre de 1994, quando a economia estava no fundo do poço. Na verdade, desde o segundo trimestre de 1994, o PIB estacionou, mantendo-se ao redor de um índice de 131 (base 1980 – 100), e começa a desabar a partir do segundo trimestre de 1995, sob a pressão dos juros estratosféricos. A produção industrial nacional caiu 3,4% de março para abril e as vendas industriais diminuíram 15%, queda inédita, segundo a Confederação Nacional da Indústria. O nível de emprego industrial em São Paulo, que vinha experimentando um certo crescimento, começou a cair em maio. A Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas, por sua vez, alerta que, caso não seja revertido esse quadro, 1,5 milhão de trabalhadores do comércio perderão o emprego no próximo semestre. A seguir essa política, não tarda o colapso econômico-financeiro.
Não bastasse isso, o governo ainda quer entregar o patrimônio público e nossas riquezas naturais a esses mesmos grupos parasitários. Já entregou o setor siderúrgico e parte do setor petroquímico (segundo o relator da CPI da Desestatização, “com a privatização, foram jogados 20 bilhões de dólares pelo ralo… Roubaram o Estado transferindo os monopólios estatais para os monopólios privados”) e pretende, com as anti-reformas constitucionais, entregar o petróleo, a energia, os minérios e as telecomunicações. A crise mexicana é café pequeno diante do colapso econômico-financeiro embutido nesse programa irresponsável e anti-nacional, concebido para atender única e exclusivamente aos interesses dos monopólios estrangeiros e internos. No rastro desse colapso, o drama social, gerado no ventre perverso da dependência externa e que já inferniza a vida de milhões de brasileiros sem trabalho, sem teto, sem letras, sem saúde e sem comida, se converteria em verdadeira catástrofe.
O retrato da miséria no Brasil se espelha claramente nos dados do último censo do IBGE (1991): 60% da população ocupada só ganha três salários mínimos; o 1% mais rico da população brasileira tem renda total superior à do conjunto dos 50% mais pobres; o poder de compra do salário mínimo de abril de 1995 só representava um terço do que era em 1980, 15,51% do de 1940 (data de sua instituição) e míseros 8,61% do valor da dieta básica estabelecida pela lei que criou o salário mínimo; metade dos trabalhadores não têm carteira assinada, sendo que na zona rural esse índice chega a 63%; 26,7 milhões de analfabetos, sendo que cerca de 40 milhões não haviam concluído as quatro primeiras séries do fundamental (60% da população acima de 10 anos de idade só chegaram até o 4º ano primário); 43% dos domicílios sem filtro e 34% sem ligação de água potável; a mortalidade infantil atingia 45 crianças de cada mil nascidas vivas (no Nordeste, a cifra era de 75); haviam 4.973.455 crianças (de 0 a 5 anos) desnutridas, correspondentes a um terço da população infantil nessa faixa etária; a faixa da população que vivia abaixo da linha de pobreza era de 39,3% da população total em 1988 (no Nordeste era de 56,4%), o que corresponde, em termos de população do último censo, a 58 milhões de pessoas (se esse critério for ajustado para os que ganham até míseros dois salários mínimos, teríamos, segundo o último censo, 53% da população, ou seja, 76 milhões de pessoas vivendo em condições subumanas); 10 milhões de famílias não têm onde morar ou vivem em condições muito precárias; cerca de 8 milhões de trabalhadores estão desempregados.
Os gastos sociais, que, na Costa Rica, representam 19,4% do PIB, no Uruguai 16,8%, na Argentina 15,8%, no Chile 10,7% e 8% na Bolívia, Colômbia e Equador, só chegam a minguados 6% no Brasil. Desemprego, desabrigo, desamparo, analfabetismo, fome, miséria – eis a face social da dependência externa, cavalgada por uma oligarquia egoísta, perversa, desalmada, desumana.
Esse não é o caminho brasileiro. Não pode ser. Não é o caminho de um país que conta com incalculáveis riquezas naturais, imensas potencialidades agrícolas e um importante parque industrial, e já deu passos importantes no desenvolvimento científico-técnico. E, o que é mais importante, conta com um povo bravo e trabalhador, que, apesar dos terríveis sofrimentos a que tem sido submetido, chegou a construir a oitava economia do planeta, mesmo não tendo, até agora, usufruído de seus benefícios. Nosso caminho é outro: construir uma economia independente, baseada nos próprios recursos e no mercado interno e voltado para o benefício do nosso povo. Em síntese, caminhar com as próprias pernas, traçar nosso próprio destino. O primeiro passo, para libertar essas imensas potencialidades, é cortar as peias que atravancam nosso progresso, as peias da dependência externa.
É esse o grande desafio da hora presente: ou tomamos nosso destino nas próprias mãos ou permitimos que nosso país regrida para o neocolonialismo agroexportador.