CARLOS LOPES
(22/01/2016)
Vai além da fronteira do cinismo a resposta do governo (através da Advocacia-geral e da Controladoria-geral) ao Tribunal de Contas da União (TCU), sobre a Medida Provisória nº 703, que, entre outras coisas, afasta o TCU da consecução dos “acordos de leniência” com empresas que formaram cartéis, superfaturaram obras, estabeleceram sobrepreços e passaram propinas a funcionários para assaltar o dinheiro público. Além disso, essa Medida extingue os processos por improbidade administrativa contra essas empresas e proíbe a abertura de outros processos após o fechamento do “acordo de leniência” .
Diz o governo, nessa resposta, que “a Medida Provisória conferiu maior segurança jurídica para a incidência da Lei n° 12.846, de 2013”, que é a chamada – e badalada, por Dilma – “lei anti-corrupção” (cf. AGU/CGU, Informações nº 00002/2016, § 8, pág. 3, grifo nosso).
Apenas nove meses antes da MP nº 703, o governo, em março de 2015, já regulamentara essa mesma lei, denominando essa regulamentação de “pacote anti-corrupção”.
Então, por que, depois de tão pouco tempo do espalhafato e da marketagem sobre o suposto “pacote anti-corrupção”, emitir uma medida provisória para regulamentar outra vez a mesma lei?
Nem estamos entrando aqui, exceto de passagem, no fato de que – como nós e muitos outros apontaram na época – o “pacote anti-corrupção” (tudo nesse governo, exceto o roubo e o reacionarismo, é um faz de conta) já era uma adulteração da lei para aliviar assaltantes do Erário, em especial quanto às regras para os “acordos de leniência” (v. HP 20/03/2015, e, também, a entrevista do jurista Modesto Carvalhosa em O Globo, 24/03/2015).
Pois a MP nº 703 concede um alívio ainda maior – inclusive imunidade às suas empresas, quanto a processos por improbidade – aos ladrões que assaltaram o povo e sua maior construção, a Petrobrás.
Chamam isso de “segurança jurídica”.
Há muito que, sob esse nome, esconde-se (ou revela-se) um precioso e moderno princípio jurídico: todos são iguais perante a lei, menos os monopólios privados e os tubarões que os controlam. Esses, em nome da “segurança jurídica”, têm direito (ou deveriam ter, segundo o atual governo) à impunidade, não importa o crime que cometam contra a coletividade, contra o patrimônio e o dinheiro públicos.
A forma como os próceres do governo Dilma repetem essa gosma, bem caracteriza o quanto se tornaram apenas neo-tucanos: pois foi um tucano, Pérsio Arida, que apareceu no Brasil – em artigo, por sinal, escrito em inglês – com a interessante teoria de que, para que o país crescesse, era preciso dotar os investidores, monopólios e outras quadrilhas de “segurança jurídica”.
Como até hoje o país não cresceu sob uma política econômica que impede que ele cresça, esses elementos querem mais e mais “segurança jurídica”, ou seja, mais e mais privilégios e impunidade.
Em suma, só quem não tem direito à segurança jurídica é o cidadão brasileiro, que não é dono de empreiteira monopolista, não subornou ninguém para roubar a Petrobrás, não turbinou com propinas campanhas eleitorais à Presidência (além de outras) e não tem contas na Suíça ou bordéis fiscais de pior categoria.
O cidadão pode viver – e vive – na mais completa insegurança jurídica, e que se dane a “sacralidade” dos contratos, que só vale para magnatas ladrões, de preferência estrangeiros, ou para os desnaturalizados tipo Odebrecht, tão preocupados com o Brasil quanto a General Electric ou a Coca-Cola.
CASUÍSMO
A ação contra a Medida Provisória nº 703 foi empreendida pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público de Contas junto ao TCU, e foi acolhida, com pedido de esclarecimento ao governo, pelo ministro Walton Alencar Rodrigues, relator do processo.
Em sua representação, o procurador Oliveira demonstra que a MP nº 703 é, nas suas palavras, “uma aberração jurídica”, ilegal, inconstitucional e atentatória às instituições do país.
Mas, segundo a resposta da advocacia-geral do governo, a MP é legal porque “o fato é que tal procedimento [o afastamento do TCU na realização dos acordos] foi criado por meio de uma medida provisória que tem força de lei” (cf. idem, § 20, págs. 5/6).
Porém, é exatamente a legalidade da MP nº 703 que o procurador está contestando. Se o governo pudesse tornar qualquer coisa legal por medida provisória – apenas porque as medidas provisórias têm “força de lei” – não seria necessário o Judiciário, nem o Legislativo, nem o TCU e nem as eleições.
Pela argumentação do governo, não importa que uma medida provisória seja um estupro à todas as outras leis, inclusive à Constituição, para não falar no atentado à moralidade mais elementar. Ela é legal porque é uma medida provisória…
Com isso, a advocacia-geral equiparou as medidas provisórias aos atos institucionais da ditadura, que não precisavam ser constitucionais ou legais porque “legitimavam a si mesmos”.
Mas, com isso, também, confessou que a MP nº 703 é um casuísmo. Isto é, algo emitido para beneficiar meia-dúzia de ladrões acoitados pelo governo, que bancaram as campanhas eleitorais dos partidos governistas.
Quanto à suprema ilegalidade – o fato de que a medida é inteiramente inconstitucional, pois a Constituição proíbe MPs sobre questões penais e processuais, como é o caso da MP nº 730 – diz a advocacia do governo que “as leis (e as medidas provisórias, que possuem status de lei ordinária) gozam de presunção de constitucionalidade” (cf., idem, § 21, p. 6).
Entretanto, é exatamente essa “presunção” que está sendo contestada no processo do TCU, pelo Ministério Público. Aliás, é mais que a “presunção”: é a própria constitucionalidade da medida que está sendo contestada.
Então, que sentido tem responder a essa contestação da constitucionalidade, dizendo que as medidas provisórias têm “presunção de constitucionalidade”?
Quem está discutindo a “presunção de constitucionalidade” das medidas provisórias em geral, ou seja, em abstrato?
O que se está discutindo é, precisamente, a inconstitucionalidade dessa medida provisória particular, concreta, a MP nº 703.
A “presunção de constitucionalidade” das leis em geral, ou das MPs, é exatamente igual à presunção de inocência em relação às pessoas em geral. Quem, diante de um assassinato filmado, com o rosto do autor em close, ou diante de um ladrão que foi agarrado pela polícia em flagrante, argumentará que eles são inocentes por causa da presunção de inocência que existe sobre as pessoas em geral?
Talvez o governo Dilma, cujo líder no Senado está na cadeia, fazendo companhia ao sr. Vaccari e a outros correligionários da presidenta, possa argumentar essa genialidade – e, aliás, tem feito isso. A suposta (e falsa) “presunção de constitucionalidade” da MP nº 703 serve, exatamente, ao mesmo propósito.
Mais ridículo – porque é apenas aquele fascismo de meia-tigela que revela impotência, e não força – é a argumentação (?) de que, se não existisse “presunção de constitucionalidade”, “se instalaria a total desordem, com todo tipo de agente público ou privado se negando a cumprir leis ao seu talante, sob o argumento de que a considera inconstitucional, perigosa, imoral ou qualquer outro argumento” (cf., idem, § 25, p. 6).
Evidentemente, ninguém está contestando a “presunção” de constitucionalidade de qualquer lei ou MP, mas da MP nº 703.
Além disso, é evidente que existem coisas que são ilegais, inconstitucionais e imorais – e, portanto, nenhum cidadão pode respeitar ou colaborar, mesmo que tenham o nome de leis ou de MPs.
Caso contrário, os criminosos que aplicaram as leis de Nuremberg – emitidas por Hitler para, supostamente, “preservar a pureza racial ariana” – teriam que ser promovidos a modelos de cidadania…
A ORDEM
Mas o governo pretende, com essa defesa da MP nº 703, que o único direito das pessoas é baixar a cabeça diante de qualquer desmando seu, pois tudo o que o governo faz é legal, porque tem “presunção de legalidade”. Se fosse um governo com alguma força, seria sinistro; nesse governo avacalhado de hoje em dia é, apenas, risível.
Mas isso não apaga o conteúdo da medida: em suma, lançar uma medida ilegal, cujo objetivo é livrar da justa punição as empresas dos ladrões do dinheiro do povo não é, segundo o governo, uma “desordem”.
Por aí se vê a ordem que eles querem para o país: aquela em que a “desordem” é não se conformar em ver o país roubado, em que a “desordem” é não apoiar nenhuma vergonha – ou contestar, ainda que por via inteiramente institucional, a sua legalidade.
Portanto, de acordo com a ideologia governista, contestar uma medida do governo é subversão. Os leitores mais velhos já não ouviram isso em algum lugar?
MOTIVAÇÃO
Ao modo cínico, a resposta do governo confirma o que foi dito pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira em sua representação (v. HP 15/01/2016).
Em resumo, diz o governo:
1.Antes da Lei nº 12.846, de 2013 (a “lei anti-corrupção”), não havia nada “semelhante ao acordo de leniência” na legislação brasileira.
2.A Lei n° 12.846 “em momento algum previu a atuação, participação ou qualquer ato pelos Tribunais de Contas estaduais e da União no acordo de leniência (…). Em nenhum momento da Lei, em sua redação original, havia referência sobre a participação do TCU no acordo de leniência”.
Daí, supõe-se, o governo conclui que o TCU deve ser afastado da realização dos acordos de leniência. Exatamente, é o que está na nova redação que a MP nº 703 dá ao parágrafo 14 do artigo 16 da “lei anti-corrupção”: o “acordo de leniência depois de assinado será encaminhado ao respectivo Tribunal de Contas”.
Com isso, é o próprio governo, através da advocacia-geral e da controladoria, que fecharia os “acordos de leniência”, afastando o órgão, que, pela Constituição, é responsável pelo controle externo – o TCU, órgão-auxiliar do Congresso na fiscalização do Executivo.
No entanto, o fato é que a “lei anti-corrupção” não proíbe que o TCU seja parte nesses acordos. Quem faz isso é a MP nº 703, ao remeter os “acordos de leniência” ao TCU somente depois de assinados entre o governo e as empresas.
A participação do TCU (e outros tribunais de contas) nos “acordos de leniência” não está prevista pela “lei anti-corrupção” porque ela é óbvia: a Constituição (artigo 71) obriga que, não somente os atos da administração pública federal – inclusive empresas estatais – sejam julgados pelo TCU, como também “as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público” – o que inclui, por exemplo, as empresas do cartel denunciado pela Operação Lava Jato.
Logo, como é possível fechar “acordos de leniência” (mais ainda se eles implicarem em imunidade quanto a processos por improbidade administrativa) sem o TCU – ou com este tomando conhecimento deles somente após a assinatura dos acordos?
Essa é a última questão: por que o governo quer afastar o TCU da realização dos “acordos de leniência”?
Porque já havia um procedimento a respeito dos “acordos de leniência”, precisamente, estabelecido pelo TCU, de acordo com a Constituição, a Lei Orgânica do TCU (lei n 8.443/1992) e a própria Lei n.º 12.846/2013 (lei anti-corrupção).
Esse procedimento é inteiramente atropelado pela MP nº 703.
Mas em que consiste ele?
Entre outras coisas:
“§ 1º Em cada uma das etapas [para fechamento do acordo] o Tribunal [de Contas] irá emitir pronunciamento conclusivo quanto à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos praticados.
“§ 2º Para cada caso de acordo de leniência será constituído no Tribunal [de Contas] um processo de fiscalização, cujo Relator será definido por sorteio” (cf. TCU, Instrução Normativa nº 74/2015, DOU, seção 1, p. 91, 18/02/2015).”
Como diz essa Instrução Normativa, qualquer questão que envolva “reparação de dano ao erário é ato administrativo sujeito à jurisdição do Tribunal de Contas da União” e “a jurisdição própria e privativa do Tribunal abrange qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada,que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda”.
Porém, o problema do governo está, justamente, em evitar que os monopólios privados que financiaram o partido palaciano tenham que “reparar o dano ao erário”.
Afinal, são esses monopólios que abarrotaram de dinheiro os partidos e as campanhas governistas nos últimos anos – não foi apenas a mágica do presidente Lula que elegeu uma nulidade como Dilma.
Daí, essa MP nº 703, que atropela o TCU, a Constituição, o povo – e a mais primitiva noção de moral ou de pudor na condução dos negócios públicos.