CARLOS LOPES
(HP 11/05/2016)
“Os interesses opressores do escravismo, ainda hoje, entre nós mesmos, não recuam ante a ingenuidade característica de invocar a antiguidade remotíssima do cativeiro, como valente argumento contra os que julgam exagerado o prazo extintivo desse flagelo, no sistema de emancipação que entrega mais ou menos exclusivamente à morte a solução do problema. Como se, por mais antediluviana que seja a escravidão, a liberdade não fosse ainda mais antiga do que esta!”
(Rui Barbosa)
Em sua obra “O que se deve ler para conhecer o Brasil”, Nelson Werneck Sodré diz a respeito do “Parecer sobre a Emancipação dos Escravos”, de Rui Barbosa:
“Não há talvez em toda a literatura sobre a campanha abolicionista estudo tão profundo e tão circunstanciado como o parecer de Rui Barbosa. Com a sua capacidade de captar as razões, de alinhá-las, num encadeamento cerrado, Rui mostra todos os aspectos da questão do trabalho escravo, analisando detalhadamente cada um deles. Na fase em que o problema, colocado no campo partidário, motivaria o parecer de Rui Barbosa, aumentavam as resistências a todos os passos no sentido de concretizar, de uma forma ou de outra, com indenização, sem indenização, depressa ou com prazo marcado, a abolição do trabalho escravo. Rui foi derrotado em seus propósitos, mas a sua contribuição continua a ser das mais importantes fontes para o estudo do problema. Um lustro depois, a Abolição seria consumada, e a República viria em seguida” (Nelson Werneck Sodré, op. cit., Civ. Bras., 3ª edição, 1967, pp. 174-175).
Trata-se de uma das obras fundamentais sobre o Brasil – e, infelizmente, pouco conhecida.
Em 1884, Rui era deputado federal e elaborou seu “Parecer” como relator das Comissões de Orçamento e de Justiça Civil. Levou 19 dias para escrever as quase 200 páginas desse relatório, tentando transformar o projeto de lei dos sexagenários, enviado ao Congresso pelo senador Dantas – então Presidente do Conselho de Ministros – em uma base para a emancipação geral dos escravos.
Era o último esforço da ala esquerda do Partido Liberal. Em 1880, seu chefe – e então primeiro-ministro e ministro da Fazenda -, o Conselheiro Saraiva, preferira deixar de lado a questão da Abolição, o que fez com que Angelo Agostini, em sua “Revista Illustrada”, lhe dedicasse a capa que publicamos nesta página e mais um comentário:
“Eu tinha razão: o governo triunfou de todos os obstáculos.
“Os horizontes momentaneamente enegrecidos pelo projeto Nabuco, aclararam-se de novo; e o Sr. Saraiva continua a não pensar na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.
“É muito mais cômodo.
“Depois, o partido conservador já tem feito tanto pelo programa liberal que bem merece se lhe deixe, a ele o cuidado de extinguir de todo a escravidão.
“Eusébio de Queiroz aboliu o tráfico, o Sr. Rio Branco libertou o ventre; e quando mais tarde se perguntar aos liberais o que fizeram pela extincção dessa chaga, eles dirão com o Sr. Martinho Campos:
“– Fomos muito amigos dos escravos.
“E realmente tão amigos, que tudo fizeram para sempre os ter – escravos!”
O “projeto Nabuco”, apresentado pelo jovem deputado liberal Joaquim Nabuco, previa o fim da escravidão em 10 anos, com indenização aos senhores de escravos. Era, portanto, um projeto bastante conciliador. Mas nem isso o Conselheiro Saraiva aceitou. Como se diz hoje em dia, “fechou questão” contra o projeto. Na votação do regime de urgência, o projeto Nabuco só conseguiu 18 votos em 122 – o que significou o seu engavetamento.
É procedente a observação de Agostini sobre os conservadores e liberais – não somente o fim do tráfico e a lei do ventre livre foram obras dos conservadores, mas todas as leis anti-escravagistas – inclusive a Lei Áurea.
HISTÓRIA
Em 1884, a questão decisiva era a das indenizações. Um dos escravocratas mais furibundos, o visconde de Muritiba, formulou do seguinte modo a posição contrária ao projeto Dantas:
“A libertação forçada e sem indenização dos escravos que tiverem atingido, e atingirem a 60 anos, é um atentado contra o direito de propriedade, uma restrição arbitrária e odiosa da propriedade servil, que deve ser tão garantida e respeitada como qualquer outra.”
Muritiba era contra a “libertação forçada” dos escravos. Achava um absurdo forçar um sujeito a ser livre…
Como Rui mais tarde relatou, os senhores de escravos chegaram a aceitar uma indenização simbólica, com o fim da escravidão até o ano de 1892 (!). Queriam aprovar o reconhecimento de sua propriedade sobre os escravos – e do direito de propriedade sem limitações. Por isso, chamaram o projeto Dantas, que não reconhecia o direito de indenização, de “socialista” e “comunista” (ao apresentar seu voto em separado, o deputado Sousa Carvalho, outro escravista, disse: “Esse projeto me parece um meio de suicídio da nação, de suplício da Constituição, de ruína dos particulares e do tesouro público, de bancarrota do Estado, de grande naturalização neste país para as doutrinas do comunismo e sua desenfreada aplicação”).
Apesar de não ter o conjunto de suas proposições aprovadas, a grande vitória do projeto Dantas (cuja redação original era do próprio Rui Barbosa, amigo pessoal e correligionário, nessa época, do primeiro-ministro) foi o reconhecimento de que a emancipação não obrigava à indenização – ou seja, que não havia um direito de propriedade do senhor sobre o escravo. Nas palavras do próprio Rui, dois anos depois:
“… a propriedade servil prelevava com poderio absoluto, acastelada no mundo oficial. O Senador Dantas quebrou esse encanto formidável, negando, no projeto 15 de julho, a propriedade-escravidão. A libertação incompensada dos escravos sexagenários era em gérmen a emancipação gratuita de todos os escravos.
“O princípio da indenização ficava repudiado para sempre, e rotos com ele os famosos títulos de senhorio da raça branca sobre a negra. Essa intuição iluminou em um relâmpago o futuro, e travou a pugna entre o ódio e a esperança. Um níquel, sequer, por cada velho, imploravam os inimigos do projeto: e deporemos as armas. Nem um real, dizíamos nós, ou o princípio está perdido” (v. Rui Barbosa, O.C., vol. XIII, t. 2, p. 288, grifo no original).
Além de complexas questões – por exemplo, a relação do escravismo com a estagnação econômica – Rui Barbosa enfrentou algumas outras que não são estranhas à grosseria atual de certas argumentações, sobre outros problemas, que se lê e vê, atualmente, na mídia, no Congresso e no governo.
Houve, por exemplo, quem sacasse a antiguidade da escravidão como motivo para mantê-la. A resposta de Rui, em seu parecer, é uma das melhores que já houve no país. Rui começa por chamar a atenção sobre “o espetáculo dado, em todos os tempos e países, pelas camadas sociais diretamente interessadas nos proventos da instituição servil, sempre que se trata de aboli-la, ou atenuá-la”. E continua:
“Esperar a anuência delas a essa transformação, dolorosa aos cômodos da grande propriedade, entre as nações onde esta se tem habituado, mediante uma herança multissecular, a ter por seiva o suor do escravo, é subordinar a reforma a uma condição, que nunca se realizará: porque os interesses opressores do escravismo, ainda hoje, entre nós mesmos, não recuam ante a ingenuidade característica de invocar a antiguidade remotíssima do cativeiro, como valente argumento contra os que julgam exagerado o prazo extintivo desse flagelo, no sistema de emancipação que entrega mais ou menos exclusivamente à morte a solução do problema. Como se, por mais antediluviana que seja a escravidão, a liberdade não fosse ainda mais antiga do que esta!
“A história, nossa e de todos os povos, concludentemente manifesta quão quimérica é a esperança de captar o assentimento geral dos proprietários a qualquer medida que fira seriamente a escravidão.” (Rui Barbosa, O.C., vol. XI, t. 1, pp. 208-209, grifo nosso).
REVOLUÇÃO
Rui é tido, com bastante razão, como um apóstolo do Judiciário – em geral, ele manifesta um apreço e uma fé nas leis e na Justiça enquanto instituição, que nenhum outro pensador ou político brasileiro demonstrou. Apesar disso, ele foi o ministro da Fazenda do governo que surgiu da Revolução Republicana. Aqui, nessa batalha de 1884, ele, igualmente – como disse um especialista em sua obra, Américo Jacobina Lacombe, em uma conferência proferida em 1949 – vê a revolução como alternativa. Diz ele aos escravagistas, na sessão de 28 de julho de 1884, da Câmara dos Deputados, em que o projeto Dantas foi rejeitado em sua forma original:
“… cada revés que julgardes infligir aqui à grande ideia, esmagando sob o número de votos um gabinete que a personifique, será, não uma vantagem para os interesses econômicos envolvidos nesta questão, mas um passo acelerado para a liberdade incondicional. (Apoiados, muito bem; apartes.)
“O movimento parlamentar da emancipação não retrocede uma linha. (Apoiados; muito bem) Não há maioria com forças para o deter. (Apoiados; muito bem) As vossas vitórias aparentes re-verter-se-ão contra vós. (muito bem.) De cada uma delas o espírito libertador reerguer-se-á mais poderoso, mais exigente, mais afoito, reencarnado em um plano mais amplo. (Muito bem, muito bem.) As concessões moderadas, que hoje recusardes, amanhã já não satisfarão a ninguém. (Muito bem; apartes.) Ouçam os nobres deputados a história, que não mente.
“Isso que vós defendeis com o zelo violento do fanatismo, e nós respeitamos, sob certas reservas, por confiança refletida nas soluções pacíficas e conciliadoras, não é um direito: é uma situação privilegiada, transitória, amaldiçoada em todas as consciências, a que ninguém, neste país, dá mais vinte anos de duração, e que, com certeza, não transporá as fronteiras deste século. (Apoiados ; muito bem. muito bem.)
“Pois bem! Se esse privilégio efêmero, caduco, agonizante, não transigir; se se enfatuar em sonoras invocações ao direito e à justiça, em que mais prudente seria abster-se de falar (apoiados); se não der ouvidos senão ao demônio da demência, com que uma espécie de conspiração providencial parece seduzir para o abismo as causas fadadas a perecer por uma crise instantânea (muito bem); (…) – tempo virá em que seja tarde para capitular com as honras da guerra. (Apoiados.)
“Mas então, da sua ruína ele mesmo terá sido o operário exclusivo. (Apoiados.) Nós, ante a razão e o patriotismo, estaremos absolvidos de toda a responsabilidade (apoiados; muito bem, muito bem); porque o projeto é a emancipação, adiantada, mas previdente e compensadora. (Apoiados.)
“… o abolicionismo servido pelos inimigos da abolição – esse, o pior dos abolicionismos, sois vós: é a reação que vós representais, em ódio à experiência, à humanidade, ao futuro. (Apoiados ; muito bem, muito bem.)”.
É a mesma visão – e sentimento – que aparecem em um trecho do “Parecer”:
“O ilustre Sr. Ferreira Viana, aplicando a esta tentativa de reforma uma exceção preliminar, de que S. Ex. costuma servir-se contra o movimento emancipador sob todas as suas formas, disse : “É um perverso quem levanta paixões na alma do fraco contra o forte.” Nós acreditamos que pior descaridade é ainda alimentar no ânimo do forte o sentimento da inviolabilidade da escravidão, e substituir, no coração do fraco, as consolações pacificadoras da esperança pelo desespero absoluto, sem plagas, nem horizonte. O estribilho de uma canção dos negros, na Martinica, em 1840, dizia : ‘Sem esperança, antes morrer’” (Rui Barbosa, O.C., vol. XI, t. 1, p. 129).
A batalha de 1884 será um marco para Rui e para a maioria dos abolicionistas. A partir dali, os abolicionistas liberais (Rui, nessa época, era ainda membro do Partido Liberal) inclinam-se cada vez mais para a República.
Em 1888, o barão de Cotegipe – que seria o único senador do império a votar contra a Lei Áurea – acusaria Rui de subversão, pois, ao se referir às reformas que o Brasil estava necessitando, enunciara as condições em que, a seu ver, essas mudanças se realizariam: “… com a Coroa, se esta lhe for propícia, contra e sem ela, se lhe tomar o caminho”.
Em 1893, já durante a República, Rui enfatizou que o último fora o caminho da Abolição:
“… a abolição estava consumada. Não por obra da caridade imperial! Não! O consórcio do Império com a escravidão nunca se dissolveu senão quando a dinastia sentiu roçarem-lhe o peito as baionetas da tropa, e a escravaria em massa tomou a liberdade por suas mãos.”
[UMA NOTA: Não nos deteremos aqui sobre a destruição dos documentos referentes aos escravos, determinada por Rui Barbosa como ministro da Fazenda do primeiro governo republicano, por uma razão simples: na época, essa destruição era um consenso entre os abolicionistas. As queixas vieram dos ex-senhores de escravos – que não tinham desistido de pedir indenizações pela sua “propriedade” perdida – e, nos meios acadêmicos, de um notório racista, Nina Rodrigues. Somente muito depois tornou-se moda reclamar de Rui a conservação de documentos que, em sua maior parte, eram fraudados (a primeira lei de proibição do tráfico de escravos, a chamada “lei para inglês ver”, de 7 de novembro de 1831, fez com que os senhores de escravos falsificassem documentos em massa, a respeito dos escravos).]
Rui não era – nem um pouco – ingênuo em relação à situação dos libertos pela Lei Áurea. Em 1919, portanto, 31 anos após a Abolição, em um texto que ficaria famoso – “A questão social e política no Brasil” – ele diria:
“Dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram absolutamente da sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores. (…) E eis aqui está como a política republicana liquidou o nosso antigo operariado, a plebe do trabalho brasileiro durante os séculos da nossa elaboração colonial e os quase setenta anos do nosso desenvolvimento sob a monarquia”.
Este, por sinal, é o texto em que ele comenta o primeiro livro de um jovem escritor paulista, Monteiro Lobato, e o seu personagem, Jeca Tatu.
Também é o mesmo texto – uma conferência, pronunciada em 20 de março de 1919, no Teatro Lírico, Rio de Janeiro – em que ele aprecia positivamente o socialismo, e sintetiza a sua visão do povo brasileiro:
“Não! O Brasil não é isso. Não! O Brasil não é o sócio de clube de jogo e de pândega dos vivedores, que se apoderaram da sua fortuna, e o querem tratar como a libertinagem trata as companheiras momentâneas da sua luxúria. Não! O Brasil não é esse ajuntamento coletício de criaturas taradas, sobre que possa correr, sem a menor impressão, o sopro das aspirações, que nesta hora agitam a humanidade toda. Não! O Brasil não é essa nacionalidade fria, deliquescente, cadaverizada, que receba na testa, sem estremecer, o carimbo de uma camarilha, como a messalina recebe no braço a tatuagem do amante, ou o calceta, no dorso, a flor-de-lis do verdugo. Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cavadores do Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até aos ossos os tatus-canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil.
“O Brasil não é ‘isso’. É ‘isto’. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembleia. O Brasil é este comício imenso de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguel. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas energias. É o povo, em um desses movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.”
CARLOS LOPES