(HP, 07/06/2017)
Conheci o poeta e jornalista Nei Duclós durante a Feira do Livro de Porto Alegre, há cerca de uma década. Já conhecia sua obra, mas como ele morava em Florianópolis há bastante tempo, só então nos encontramos. Além da poesia, aproximou-nos um assunto da mesa de bar após aquele dia de palestras: a avaliação praticamente idêntica de um período fundamental para o progresso do nosso país, a chamada Era Vargas, em que a soberania, rifada pelos governos recentes, era um valor essencial e incontornável.
Ficamos amigos e fizemos outros em comum, entre os quais o cineasta Caio Plessmann de Castro, diretor do ótimo documentário São Paulo: Cidade Aberta, acerca da experiência revolucionária anterior à vitória de 1930, que resultou no bombardeamento da capital paulista pelas forças conservadoras da República Velha em 1924, produzindo escombros tão reais quanto os de Roma ao final da Segunda Guerra, estes registrados em filme de Roberto Rossellini.
Nei Duclós é um dos melhores poetas brasileiros da atualidade, sem qualquer exagero ou agrado indevido, basta ler No mar, veremos (Ed. Globo, 2001) ou Outubro (IEL/A Nação, 1975, agora em 3ª edição). Publicou dois romances, sendo o último Tudo o que pisa deixa rastro (Ed. Autor, 2015), o livro de contos O refúgio do príncipe (Empreendedor, 2006), o de ensaios Todo filme é sobre cinema (Unisinos, 2014) e os infanto-juvenis Meu vizinho tem um rottweiler (e jura que ele é manso) e A trilha da lua cheia (Record, 2007 e 2011), estes dois em parceria com o escritor e cineasta Tabajara Ruas, entre outros de poesia e crônica. São dezoito livros já, se acaso não me escapa algum. Enquanto jornalista, trabalhou nas revistas Senhor, Isto É, Brasil 21, nos jornais Folha de S. Paulo, A Tribuna (Vitória), O Estado (Florianópolis), tendo publicado ainda em O Estado de S. Paulo, Diário Catarinense, Zero Hora, Veja e Escrita.
No texto a seguir, objeto de sua investigação no curso de História da Universidade de São Paulo, Nei Duclós trata da luta do presidente Vargas contra o império financeiro dos cartéis, e fala de sua relação profissional e de amizade com o jornalista Samuel Weimar, editor da Última Hora, após a volta deste do exílio.
Em abordagem inédita, mostra que Getúlio “Foi o estadista que inaugurou o riso em público no Brasil. Ao contrário dos psicopatas da República Velha que o antecederam, todos de rosto cavernoso”, e compara a alegria de Getúlio com “alguns bandidos que o sucederam”, entre os quais, “os de olhar rútilo dos dementes como Collor, os de expressão que mistura bonomia com esperteza, como Lula, os caras de múmia como FHC”, para anteciparmos os ainda atuantes.
Publicado no blog Outubro, do próprio Nei Duclós, em 2009, sob o título Vargas: o estadista solar punido pela sombra, ainda não estavam em tanta evidência certos bandidos atuais. Os de rosto bifronte como o de Dilma, que afundou o país no desemprego para repassar 1,7 trilhão de reais em juros aos bancos, entregou o pré-sal à Shell e Total e ainda queria ser tida como de esquerda e equiparada a Getúlio ao cair. Os de rosto de vampiro como o de Temer, o antissocial elevado a estadista por Lula, a continuar a entrega, a destruição econômica e o assalto aos direitos do trabalhador. Os de cara de playboy como a de Aécio, o bandido ressuscitado por aquela, que agora volta ao necrotério da política. Nem se conhecia totalmente a face de Lula sem máscara, escarafunchada pelo cupim da hipocrisia, apesar de antes ele já ter feito adulações do tipo “a CLT é uma bola de ferro amarrada na perna do trabalhador”. Ninguém sabia da inteira “esperteza” deste admirador cada vez mais reacionário de Meirelles, preocupado apenas com o seu mesquinho e luxuoso bem-estar e, ultimamente, em salvar-se do xadrez, perfilando-se ao lado de Temer no ataque à Lava Jato. Estão todos enlameados até a nuca no roubo e na propina, resultado da sua subserviência aos bancos e cartéis, aqueles que Getúlio, de sua honrosa parte, soube conter e colocar no devido lugar para desenvolver o Brasil.
Ante a premência do decisivo momento que vive o país, a oportuna alusão do artigo à distância entre “a bandidagem de hoje” e “o grande presidente” é o que nos faz publicá-lo agora, e não na data histórica do 24 de agosto, como seria natural. Nele, pode-se vislumbrar a grandeza de um líder verdadeiro, limitando a remessa de lucros das multinacionais ao exterior, inclusive pela criação da Petrobrás, e enfrentando o rebote com a própria vida, e a miséria dos vermes, a desfazer-se da riqueza do petróleo que seria a nossa redenção e entregando, de Lula a Temer, mais de 3,5 trilhões de reais somente em juros, os mais altos do planeta, a bancos majoritariamente internacionais, fundos e rentistas, dinheiro público arrancado das necessidades do povo brasileiro.
SIDNEI SCHNEIDER
NEI DUCLÓS
Escolhi a bela foto acima para ilustrar este texto sobre Getúlio Vargas, que foi forçado a se suicidar em 24 de agosto de 1954, exatamente 55 anos atrás, depois de uma campanha bandida difamatória, que jogou lama na obra de construção nacional do grande presidente. Uma calúnia histórica, até hoje em vigor, a cargo da ultradireita, dos ladrões e dos imperialistas que não se conformaram com as sucessivas medidas de Getúlio contra a espoliação internacional.
Principalmente, não engoliram a acachapante vitória nas eleições presidenciais de 1950, quando Getúlio Vargas alcançou 48 por cento dos votos, o que deixou seus adversários na rabeira. Venceu sem apoio de ninguém, nem da imprensa, da rádio ou da televisão. Seus comícios eram convocados por panfletos jogados nas cidades e atraíam multidões que urravam seu nome. Por que será? Porque era um ditador pai dos pobres enganador? Ou porque o povo sabia que ali estava seu principal aliado, seu líder, que o tirou da brutalidade pré-histórica da República Velha, onde famílias inteiras eram exploradas pelos tubarões de sempre, e o colocou numa vida decente, segura, das leis trabalhistas, dos salários compatíveis?
Vi minha cidade, Uruguaiana, inteira aos prantos no dia do desfecho. Fui acordado com um sussurro sinistro: “Getúlio se matou! Getúlio se matou”. Porto Alegre, como aconteceu em outras cidades, foi depredada pela multidão em fúria. Os jornais de direita do Rio de Janeiro, como O Globo (sempre eles!) foram empastelados. A reação popular adiou o golpe por dez anos. Só em 1964 eles conseguiram reunir forças para derrubar o herdeiro político de Getúlio, João Goulart, que acabou sendo assassinado no exílio.
Lembro quando Samuel Wainer, o fundador da Última Hora, o único jornal favorável a Getúlio, criado depois das eleições de 1950, me contou como ele viu o 24 de agosto. Eu era seu editor no tabloide Aqui São Paulo, em 1976. Samuel voltara do exílio acabado, com grossas sobrancelhas brancas e cabelo de algodão. Imaginava que ele tinha uns 80 anos, mas estava mais ou menos na altura da idade que eu tenho agora, 60 anos. O que não esqueço é um detalhe das suas lembranças (mais tarde reunidas no exemplar livro escrito por Augusto Nunes, Minha razão de viver): a população avançou sobre os veículos que traziam os pacotes da UH com a notícia do suicídio, arrancavam os exemplares e jogavam o dinheiro para dentro das carrocerias! O povo pagava o jornal que ia ler! Esse era o povo brasileiro daquela época, que não se comportava, em massa, como hoje, em que tudo é saqueado, basta haver um acidente em qualquer lugar. Eles pagavam pelo jornal que iam ler! As caminhonetes, os caminhões, ficaram cheios daquele troco que remunerava a UH pelo seu trabalho.
Não vi nenhum destaque hoje nos jornais sobre o suicídio, como se eles tivessem enfim conseguido erradicar a existência, a presença, o legado do grande presidente. Vejam na foto acima Getúlio em visita a um orfanato em Petrópolis: o semblante claro, franco, aberto, rodeado de crianças naqueles idos do Brasil soberano. Vejam o rosto dessas crianças. Existia pobreza, existia dor naquela época, claro, existiam famílias destroçadas, mas não havia o estímulo ao crime contra a infância, não havia o abandono criminoso, como ocorre hoje.
Getúlio não tinha cara de mau, não fazia cara de mau. Foi o estadista que inaugurou o riso em público no Brasil. Ao contrário dos psicopatas da República Velha que o antecederam, todos de rosto cavernoso, e de alguns bandidos que o sucederam, os de riso maroto como JK, os de caratonha fechada como Médici, os de olhar rútilo dos dementes como Collor, os de expressão que mistura bonomia com esperteza, como Lula, os caras de múmia como FHC e Sarney, Getúlio era uma pessoa inteira, íntegra, solar. Desde sua infância, cultivou uma vida pessoal reservada e assumia, nas amizades e na política, uma postura séria, consequente. A alegria vinha de sua concentração e grandeza.
Por que o forçaram ao suicídio? Porque inventaram um atentado contra um jovem major da Aeronáutica, que fazia a segurança do vilão Carlos Lacerda (toc toc toc), conhecido como o Corvo, que liderava a campanha difamatória. Envolveram o presidente nesse embrulho e o forçaram a renunciar. Getúlio, ao dar um tiro no coração, puxou a toalha na hora em que se sentavam para o banquete do poder. Mas o motivo principal foi a intervenção de Vargas contra a espoliação do Brasil pelo capital estrangeiro e a criação da Petrobrás. Sim a Petrobrás, que hoje aparece nas propagandas como uma das maiores empresas do mundo. Só que agora ela não é mais totalmente brasileira. Agora está nos conformes.
Destaco, do livro de Luthero Vargas, um dos filhos de GV, autor de Getúlio Vargas, a revolução inacabada, publicado em 1988, a denúncia sobre as perdas internacionais, feita pelo próprio GV em 31 de dezembro de 1951. O presidente se refere à artimanha que solapou as boas intenções do decreto do presidente Dutra, que o antecedeu, de 1946, que assegurava “aos capitais estrangeiros aplicados no Brasil o direito de retorno ao seu país de origem, mas na proporção máxima de 20% ao ano”. Ao mesmo tempo, diz GV, no mesmo ano foi feito um regulamento, baixado pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil (e mais tarde completado por vários aditivos), onde se permitiu que os juros, dividendos, lucros do capital estrangeiro que ultrapassassem os 8% previstos em lei eram também considerados como capital estrangeiro.
Essa artimanha permitiu que em cinco anos tenha sido subtraída “da economia brasileira uma soma fabulosa, quase equivalente ao papel moeda circulante no país e que foi escandalosamente incorporado ao capital estrangeiro”. Isso sabotou o espírito e o texto “do decreto-lei, inaugurando na surdina e sem que ninguém se desse conta”, um grande e extorsivo “sistema de vazamento do fruto do trabalho de milhões de brasileiros.” Em 1952, em função desse escândalo, Getúlio Vargas fez o decreto limitando em 10% as remessas de lucros para o Exterior. Foi o estopim. Estava armada a conspiração.
Décadas mais tarde, quando Brizola falava em perdas internacionais, todos riam. Tinham esquecido as origens desse crime. Já vivíamos então em pleno Brasil sem soberania. Ficamos acostumados ao roubo do nosso trabalho. O país não vai para frente. Claro, é tudo levado para fora, com a conivência geral. É por isso que esquecer o suicídio é crime.
Getúlio Vargas, presidente do Brasil Soberano, presente.
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RETORNO – O Jornal Nacional deste 24 de agosto fez matéria sobre os bilhetes de Vargas, que foram guardados pelo seu assessor Lourival Fontes, que deixou ordem para só liberar 40 anos depois de sua morte. Um bestinha metido a historiador, entrevistado no programa, dando sorrisinhos espertos, capturou um bilhete de Getúlio abordando vagas de cargos públicos. Não aprofundou a questão querendo saber do que realmente se tratava, se eram cargos que o Executivo deveria decidir nem nada. Simplesmente serviu para a conclusão óbvia: a de que GV usava os mesmos expedientes de hoje. Canalha estúpida. Comparar a bandidagem de hoje com o grande presidente. É como costumo dizer: o antivarguismo, esse aleijão ideológico, não dorme nunca.