CARLOS LOPES
(HP, 08/06/2016)
Os jornais dos últimos dias, além das emocionantes páginas político-policiais, parecem estar tomados por um frisson em torno de um artigo, aparecido em uma revista do FMI, “Finance & Development”, intitulado “Neoliberalism: Oversold?” (“Neoliberalismo: Superestimado?” – por sinal, “oversold”, literalmente, refere-se a uma venda acima da capacidade de fornecimento do vendedor).
O mais ridículo é a tentativa de alguns petistas – por exemplo, a senadora Gleisi Hoffman – de passar o texto como uma condenação ao governo Temer, ou coisa semelhante, como se Dilma, que aplicou exatamente aquela política, não tivesse nada a ver com o assunto, ou como se Dilma fosse diferente de Temer em alguma das coisas que o artigo aborda.
O artigo, de três membros do Departamento de Pesquisa do FMI (Jonathan D. Ostry, vice-diretor, Prakash Loungani, chefe de divisão, e David Furceri, economista), não traz novidade, como notam os próprios autores, em relação ao já dito por Stanley Fischer, ex-vice-diretor-gerente do FMI (atualmente, vice-presidente do banco central dos EUA) ou por Olivier Blanchard, quando economista-chefe do mesmo FMI.
Trata-se de neoliberais que tentam salvar, em teoria, algo do neoliberalismo, supostamente jogando no lixo o seu “lado ruim”. Infelizmente, é uma tentativa fadada ao fracasso. O neoliberalismo, ao final dessas tentativas, torna-se mais insustentável do que antes. Esta é a razão pela qual o artigo merece alguma atenção.
Porém, por trás da teoria – como sempre, bastante tosca – existe um problema prático: a instabilidade explosiva a que chegaram as economias imperialistas, e, especialmente, o afundamento da economia norte-americana, depois de milhares de anúncios de “recuperação”, desde 2008. Isso faz com que esses neoliberais até mostrem algum interesse pelas economias periféricas (as principais, que eles chamam de “emergentes”), pelo menos como pasto dos monopólios imperialistas.
Resumindo, nas palavras dos autores:
“Nossa avaliação da agenda neoliberal restringe-se aos efeitos de duas políticas: a remoção de restrições aos movimentos de capital através das fronteiras de um país (a chamada liberalização da conta de capital); e a consolidação fiscal, às vezes chamada de ‘austeridade’, o que é uma abreviatura para políticas de redução dos níveis de dívida e de déficits fiscais. Uma avaliação dessas políticas específicas (e não da ampla agenda neoliberal) chegou a três conclusões inquietantes:
– “Os benefícios em termos de aumento do crescimento parecem bastante difíceis de estabelecer quando se olha para um grupo amplo de países.
– “Os custos em termos de maior desigualdade são proeminentes. Tais custos condensam a relação entre os efeitos sobre o crescimento e sobre a igualdade de alguns aspectos da agenda neoliberal.
– “O aumento da desigualdade, por sua vez, derruba o nível e a sustentabilidade do crescimento” (Finance & Development June 2016, pp. 38-39).
Exceto para governos tipo Dilma e Temer – ou para economistas tucanos e neotucanos -, isso é óbvio. Tanto que também se torna imediatamente óbvio que o ponto de partida dos autores é falso: o objetivo do que eles chamam de “agenda neoliberal” jamais foi fazer um país crescer ou tornar a sociedade mais igual.
Pelo contrário, toda a ideologia neoliberal é a de que a desigualdade é inerente ao ser humano, à suas sociedades e é mesmo desejável. Como dizia aquela bruaca, a senhora Thatcher: “nossa função é atingir a glória na desigualdade”. Ou o estranho guru do governo Reagan, um certo George Gilder: “o progresso material é inelutavelmente elitista: faz os ricos ficarem mais ricos”; quanto aos pobres, “eles necessitam, antes de tudo, da espora da sua pobreza”.
Certamente, ao final e ao cabo, os neoliberais prometem a igualdade – mas somente se a desigualdade aumentar…
Suas políticas (privatização, desregulamentação geral – inclusive do trabalho -, juros altos, escancaramento comercial, eliminação de barreiras à entrada e à saída de dinheiro, etc.) sempre tiveram, e têm, por meta o domínio maior dos monopólios financeiros sobre o país (no caso de países como o nosso, domínio de monopólios financeiros estrangeiros, sobretudo norte-americanos), sobre as riquezas naturais e sobre o produto do trabalho do povo daquele país. O que joga, inevitavelmente, o crescimento para baixo – e torna a sociedade mais desigual.
O melhor exemplo é a economia brasileira atual, estrangulada por juros, pela desnacionalização, pelo “ajuste neoliberal” (isso que os autores do FMI chamam de “consolidação fiscal”), com o salário real em queda e com o número de desempregados em alta – ou seja, com um país cada vez mais desigual, não importa quantas pessoas o Bolsa-família atenda.
Os autores mostram – são tímidos na demonstração, pois esta é apresentada no campo das probabilidades – que a falta de controle de um país sobre o dinheiro que atravessa suas fronteiras leva a crises financeiras: “Além de aumentar as chances de um ‘crash’, a abertura financeira tem efeitos distributivos, aumentando sensivelmente a desigualdade”.
Aqui vem o que é realmente interessante no artigo:
“Entre os governantes, hoje, há maior aceitação dos controles para limitar os fluxos de dívida a curto prazo, que são vistos como susceptíveis de conduzir a – ou compõem – uma crise financeira. Ainda que não seja a única ferramenta disponível – políticas de taxa de câmbio e financeiras também podem ajudar – os controles de capital são uma viável, e, às vezes, a única opção quando a fonte de um boom de crédito insustentável é o dinheiro que vem do exterior” (p. 39).
Dilma estava (e está), portanto, à direita do FMI. Não é uma façanha pequena…
Quanto à política de arrocho fiscal:
“Limitar o tamanho do Estado é outro aspecto da agenda neoliberal. A privatização de algumas funções de governo é uma maneira de conseguir isso. Outra é restringir gastos governamentais através de limites sobre o tamanho dos déficits fiscais e sobre a capacidade dos governos de se endividar” (Finance & Development June 2016, p. 40).
Os autores defendem que reduzir a dívida – através de crescentes superávits primários – é uma má política para os países centrais (exemplos: “Alemanha, Reino Unido ou os Estados Unidos”), porque há “muito baixa probabilidade de uma crise da dívida em países que têm um forte registro de serem fiscalmente responsáveis”.
Um argumento tipicamente neoliberal, que considera o domínio dos países imperialistas sobre os demais como uma superioridade moral…
Mas até que os argumentos – se aplicados a todos os países – não são ruins. Por exemplo:
“A noção de que a consolidação fiscal pode ser expansionista (ou seja, aumentar a produção e o emprego), em parte pelo aumento da confiança e do investimento do setor privado, tem sido defendida por, entre outros, no mundo acadêmico, Alberto Alesina, economista de Harvard, e, na arena política, por Jean-Claude Trichet, ex-presidente do Banco Central Europeu. No entanto, na prática, episódios de consolidação orçamentária foram seguidos, em média, por gotas, ao invés de expansões, de crescimento. Em média, uma consolidação de 1% do PIB aumenta a taxa de desemprego, a longo prazo, em 0,6 ponto percentual e gera, em cinco anos, um aumento de 1,5% no índice de Gini, que mede a desigualdade de renda”.
Foi essa parte que incomodou os economistas tucanos e neotucanos – pois essa ideia imbecil de que o corte de gastos públicos irá aumentar a confiança e o investimento do setor privado é comum tanto a tucanos verdadeiros quanto aos de imitação, isto é, os peto-dilmistas.
Entretanto, ainda aí, a preocupação dos autores é com os EUA e demais países centrais: “No caso de consolidação fiscal, os custos de curto prazo, em termos de crescimento mais baixo, diminuição do bem-estar e aumento do desemprego têm sido subestimados e a conveniência, para países com amplo espaço fiscal, de, simplesmente, viver com dívida elevada, permitindo que as razões da dívida [dívida/PIB] declinem organicamente através do crescimento, é subestimada”
Já sabemos o que o FMI chama de “países com amplo espaço fiscal”: precisamente, os países imperialistas.
Apesar disso, é correta a conclusão:
“Além disso, uma vez que tanto a abertura [financeira] quanto a austeridade estão associadas com a crescente desigualdade de renda, esse efeito distributivo configura um ciclo de feedback negativo. O aumento da desigualdade, engendrada pela austeridade e abertura financeira em si pode minar o crescimento, a única coisa que a agenda neoliberal tem a intenção de impulsionar. Agora há fortes evidências de que a desigualdade pode diminuir significativamente o nível e a durabilidade do crescimento” (grifo nosso).
Outra vez, a afirmação de que “a única coisa que a agenda neoliberal tem a intenção de impulsionar é o crescimento” é tão errônea quanto o resto é correto. Mas aqui ela parece uma mentira consciente – isto é, uma mentira neoliberal. Porque, se tomarmos qualquer região do mundo, por exemplo, a América Latina – nas devidas dimensões, o mesmo pode ser constatado nos países da OCDE – teremos a seguinte média anual de crescimento:
1951-1960: 5,1%;
1961-1970: 5,3%;
1971-1980: 5,6%;
1981-1990: 1,4%;
1991-2000: 3,2%;
2001-2010: 3,4%;
2011-2015: 2,4%.
Se há algo que esse quadro mostra, é que o neoliberalismo é a morte do crescimento econômico – e, portanto, de qualquer justiça social.