SÉRGIO CRUZ (HP Ed. 2.960, 23 de abril de 2008)
O comportamento heróico de Tiradentes diante de seus algozes o une a vários revolucionários do mundo que não se renderam diante do inimigo, mas, ao contrário, usaram os tribunais-farsa para denunciar a opressão com coragem e firmeza e defender seus ideais
Em 21 de abril de 1791, era martirizado no Rio de Janeiro, depois de dois anos de prisão, o Alferes da Cavalaria de Minas Gerais Joaquim José da Silva Xavier, conhecido por todos nós como o “Tiradentes”. Sua coragem e firmeza diante dos algozes e a força de seus ideais, mantidos intocáveis durante todo o processo movido contra ele, feriram de morte o velho regime colonial português e serviram de base para a construção de um vigoroso movimento de emancipação nacional no Brasil. O comportamento heróico de Tiradentes durante a prisão e no julgamento-farsa montado para condená-lo, foi decisivo para que, mesmo conseguindo, num primeiro momento o seu intento, a Coroa Portuguesa visse, apenas trinta anos depois, cair por terra o seu domínio sobre a região.
Porém, mais do que destacar este fato no dia de hoje, ou seja, mais do que lembrar a vitória que representou a firmeza de Tiradentes diante da reação portuguesa, nosso objetivo é também apontar os traços comuns que unem o líder brasileiro a vários outros importantes personagens da história da Humanidade. Líderes que, como ele, também fizeram dos tribunais poderosas armas de luta contra a opressão. Estes traços presentes na personalidade do alferes, como veremos, são comuns aos maiores revolucionários.
Patriotas e revolucionários de vários cantos do mundo derrotaram a reação, a violência e até mesmo vermes como o fascismo e o nazismo, agindo com firmeza e coragem diante de situações as mais difíceis. Homens como George Dimitrov, Nelson Mandela, Fidel Castro, Saddam Hussein e, inclusive, Slovodan Milosevic, também souberam fazer dos tribunais e prisões verdadeiras trincheiras de luta contra tiranos e agressores. Todos eles, mais cedo ou mais tarde, por conta disso, acabaram transformando-se em verdadeiros símbolos da luta e da vida de seu povo. Exatamente como ocorreu com o nosso Tiradentes.
LÊNIN
A maneira pela qual se deve seguir lutando em situações de cárcere ou de extrema violência, sempre foi um tema caro a todos os revolucionários em qualquer parte do mundo. Qual deve ser a melhor forma de agir diante do inimigo em caso de prisão ou julgamento? Calar-se ou aproveitar qualquer brecha para atacar a reação e defender a causa? Esta sempre foi uma questão presente, a qualquer tempo, na alma de todos os que lutam pela liberdade. A luta toma várias formas a depender das circunstâncias, da característica de cada época, do tipo de regime, da correlação de forças política, e de muitos outros fatores. Mas, a sistematização dos traços comuns que devem reger a ação de todo revolucionário nestes momentos acabou sendo feita por um dos maiores líderes revolucionários de todos os tempos, o comandante da primeira revolução proletária vitoriosa no mundo, Vladimir Ilitch Lênin.
Em carta dirigida ao Comitê Central do partido bolchevique, em 1905, ao responder a um questionamento da militância sobre o assunto, ele pôde sistematizar os princípios gerais a serem observados por todo revolucionário ao ser preso, seja em que época for. Na carta, que ficou conhecida como “Carta a Stassova”, numa referência a Helena Dmitrievna Stassova, militante bolchevique que havia levantado o assunto, Lenin lança as linhas gerais do enfrentamento com o inimigo sob as condições de cárcere ou julgamento: “Mostrar-se politicamente corajoso. Não prestar informações ao inimigo sobre o que ele deve ignorar. Atacar o regime acusador. Dirigir-se ao povo, por cima da cabeça do juiz. Defender sua causa e não sua pessoa. Não confiar sua defesa política a advogados”.
Veja, caro leitor, como, muito tempo antes de sua elaboração por Lenin, no ano de 1791, foram exatamente esses os aspectos principais que marcaram a atuação do nosso alferes de Minas Gerais diante da repressão e da encenação jurídica imposta a ele pela Coroa Portuguesa. Dois anos de prisão incomunicável, sem direito a nenhum contato com amigos ou familiares e sob um regime de tortura permanente. Onze interrogatórios e um julgamento fraudado, onde sua pena de morte já havia sido previamente decidida. Mesmo assim, diante de tudo isso, o réu permaneceu sereno e firme durante todo o processo. Seguiu denunciando, de forma contundente, o acintoso assalto de Portugal às riquezas do Brasil e ainda contribuiu, ao assumir toda a responsabilidade pelo movimento, para livrar seus companheiros da morte. Impôs, dessa forma, uma derrota sem precedentes aos seus opressores.
Até mesmo o advogado José Oliveira Fagundes, designado para defendê-lo, foi desprezado pelo alferes, como depois orientaria o próprio Lenin. O líder soviético argumentava que os advogados, mesmo os mais comprometidos com a luta, ao se aferrarem aos limites formais da lei, esquecendo-se que ela é apenas uma expressão de determinada correlação de forças estabelecida na sociedade, não conseguem fazer a defesa adequada no terreno da luta política, terreno este, onde, segundo Lenin, esta luta deve e pode ser travada.
A convicção de Tiradentes na vitória de seus ideais, mesmo numa situação bastante adversa, é oriunda da mesma fonte que nutre todos os revolucionários em qualquer parte do mundo. Ela vem de seu compromisso profundo com os interesses e anseios de seu povo e da conseqüente disposição inquebrantável para a luta. Mesmo com pouco acesso às teorias revolucionárias de seu tempo, desde logo em sua vida, o alferes havia percebido que o colonialismo português não tinha nada a oferecer ao Brasil, senão o saque, a violência, a humilhação e a imposição de um atraso secular ao país. Os portugueses, dizia ele, só vêm aqui para saquear nossas riquezas. Não há outro caminho que não seja libertarmo-nos do jugo de Portugal.
No início de sua movimentação, ainda jovem, ele procurou arregimentar para a causa algumas pessoas mais próximas. Nesta época já contava com o apoio decidido do padre José de Oliveira Rolim. Mas, é a partir de 1785, com a publicação da Carta Régia, pela rainha de Portugal, aumentando drasticamente a sangria externa e proibindo qualquer atividade econômica no país – que não fosse a extração de ouro e diamante para enviar a Portugal -, que ele viu crescer a força e as possibilidades do movimento. Daí em diante a vida do alferes foi regida exclusivamente pelos compromissos com a revolução. Fez contatos clandestinos com o movimento de estudantes brasileiros, que, da Europa, se dispunham a se integrar na luta pela independência. Entre esses estudantes estavam Álvares Maciel, que se formaria em engenharia de mineração, em Coimbra, e Joaquim da Maia, estudante de medicina em Montpelier, na França, que iniciou os contatos com Thomas Jefferson, líder da independência americana e, então, embaixador dos EUA em Paris. Buscando apoio entre os companheiros militares, onde gozava de muito prestígio, Tiradentes conquistou muitos adeptos para o movimento e até mesmo o apoio decidido de vários de seus comandantes.
Toda essa atuação certamente colocava em risco sua vida, mas o alferes, em nenhum momento pensou nisso como um obstáculo para a sua atuação. Trabalhou sem parar organizando o levante. Além dos contatos com líderes da independência americana, articulou encontros com revolucionários franceses e obteve deles a promessa de apoio ao movimento. Iniciou um amplo trabalho envolvendo todas as forças que se opunham ao domínio estrangeiro no Brasil. Elaborou um plano para sustentar o movimento, baseado no confisco pelos revoltosos do carregamento de ouro que seria levado para Portugal. Construiu, junto com intelectuais como Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e Alvarenga Peixoto, um amplo programa de libertação nacional. Preparou em detalhes, com seus companheiros, a tomada do poder. Mas, preso após a traição de um infiltrado disfarçado de inconfidente, o alferes enfrentou a prisão, a tortura e, em 18 de abril de 1791, foi a julgamento. Nele manteve-se impassível e reafirmou todas as denúncias contra o assalto praticado por Portugal. Defendeu a liberdade para o Brasil e afirmou serenamente perante seus inquisidores que, se mais vidas tivesse, todas elas seriam dedicadas à causa da liberdade. Essa atitude de Tiradentes diante da repressão foi, como dissemos, decisiva para a queda do domínio português. A vitória política de Tiradentes, que alguns mal informados, ou quem sabe mal intencionados, enxergam apenas como um fracasso militar, só foi possível graças a essa sua coragem e determinação.
Esta mesma coragem foi demonstrada também, muito tempo depois, na Alemanha, por um outro líder. Um líder operário búlgaro chamado George Dimitrov. As semelhanças de comportamento desses dois líderes diante de seus algozes é muito grande. Ante um tribunal nazista, mais de um século depois do martírio de Tiradentes, Dimitrov, este já um dirigente marxista experiente, também derrotaria a farsa montada por Adolf Hitler contra o movimento operário. Em fevereiro de 1933, Hitler e seus asseclas, ainda não consolidados no poder e precisando disto para iniciar a sua barbárie por toda a Europa, incendeiam o Reichstag, o parlamento alemão, e lançam a culpa sobre os comunistas. A farsa incrimina o Partido Comunista Alemão e a Internacional, da qual, na época, o líder búlgaro George Dimitrov era um dos dirigentes. Dimitrov deixou claro durante todo o seu julgamento que tratava-se de uma provocação do regime alemão e que os nazistas é que tinham ateado fogo no Reichstag. Mesmo não se encontrando em Berlim no dia do incêndio criminoso, mas sim em Munique, e podendo provar isso, Dimitrov não usou este argumento durante os interrogatórios e nem no julgamento. Achou melhor atacar politicamente os seus algozes. Concentrou-se na denúncia da farsa nazista.
O líder da Internacional desmoralizou a montagem feita por Hitler e seus capangas. Mostrou que o provocador holandês de nome Van Der Lubbe, autor do incêndio, não tinha ligação com os comunistas, mas sim com o vandalismo nazista. Como Tiradentes havia feito, e depois Lenin sistematizou, Dimitrov também não delegou sua defesa a advogados. Escreveu ele próprio os seus argumentos. Neles, foi categórico: “nem meus camaradas nem eu tínhamos nada que ver com o incêndio do Reichstag. Não tinha nem visto nem encontrado Van der Lubbe e nunca tinha falado com ele. Tal ato não podia ser cometido senão pelos inimigos da classe operária e do comunismo”, apontou.
Depois de um ano de luta, de um ano de denúncias contra a arrogância nazista, Dimitrov derrotou-os no tribunal. Por pressão da opinião pública, que nesta época ainda não tinha sido totalmente esmagada pela máquina nazista, Dimitrov vence o julgamento e Hitler é obrigado a libertá-lo. Ao sair da cadeia, afirma: “não ter medo da morte não é heroísmo pessoal. No fundo é uma peculiaridade dos revolucionários”.
MANDELA
Em um outro episódio, corrido na África do Sul, na década de 60 do século XX, também há muitas semelhanças com o processo de repressão na Inconfidência. A determinação de Nelson Mandela, líder inconteste do movimento contra o apartheid, durante sua prisão, tornou-se um exemplo seguido pelos amantes da liberdade em todo o mundo. Jovem, ainda estudante de direito, Mandela passou a integrar a oposição ao regime racista, que impunha a segregação aos negros, que eram a grande maioria da população da África do Sul. Mandela integrou-se ao Congresso Nacional Africano (CNA), em 1942, e dois anos depois fundou a Liga Jovem do CNA. Em 1948 quando apoiadores da política de segregação racial, do Partido Nacional, impuseram um novo governo, Mandela tornou-se ativo militante do CNA.
Tomou parte do Congresso do Povo, em 1955, que divulgou a Carta da Liberdade – documento contendo um programa fundamental para a causa anti-apartheid. Diante da violência crescente contra a população negra de seu país, Mandela e seus companheiros decidiram recorrer à luta armada. A decisão ocorreu logo após o massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960, quando a repressão do governo sul-africano atirou em manifestantes negros, desarmados, matando 69 pessoas e ferindo 180. Em agosto de 1962 Nelson Mandela é preso pelas autoridades sul-africanas com a ajuda da CIA. No julgamento, ele também fez a sua própria defesa. Nela ele acusou de forma contundente o regime: “estou sendo acusado por leis escritas por um parlamento que não me representa (…) Nesta corte estou em frente a um juiz branco, acusado por um promotor branco e escoltado por soldados brancos. Pode alguém, sincera e seriamente, achar que neste tipo de atmosfera a balança da justiça é honesta?”. Mandela considerou-se “não culpado”.
Em 12 de junho de 1964 foi sentenciado à prisão perpétua. No decorrer dos vinte e seis anos seguintes, Mandela se tornou de tal modo associado à luta de seu povo que o clamor “Libertem Nelson Mandela” se tornou bandeira de todas as campanhas e grupos anti-apartheid ao redor do mundo. Enquanto estava na prisão, Mandela enviou uma declaração para o CNA, que viria a público em 10 de Junho de 1980, em que dizia: “Unam-se! Mobilizem-se! Lutem!”. Mandela continuou na prisão até Fevereiro de 1990, quando a campanha do CNA e a pressão internacional conseguiram que ele fosse libertado em 11 de fevereiro. Depois de mais de 25 anos, saiu para tornar-se presidente da África do Sul.
Como estes, poderíamos citar vários outros. Poderíamos falar, por exemplo, de Fidel que, ao ser preso, após a tentativa, em 1953, da tomada do Quartel de Moncada, contra a ditadura de Batista Fulgêncio, transformou o seu julgamento num grande tribunal que condenou não a sua ação em Moncada, mas a humilhante submissão do regime de Batista ao domínio norte-americano.
REVOLUÇÃO FRANCESA
Poderíamos lembrar também de Gracchus Babeuf na seqüência da revolução francesa, ou de Louis Blanqui, em sua prisão, em 1832, também na França. Todos eles travaram uma luta titânica nos tribunais. O primeiro denunciando a traição à Revolução e o outro já desmascarando a degeneração da burguesia francesa. Poderíamos citar ainda Trinquet, Ferrét e Louise Michel, líderes da Comuna de Paris, que enfrentaram com altivez os juízes da reação no palco montado para tingir de “legalidade” os crimes praticados contra os líderes da primeira revolução operária mundial.
Ou até mesmo de Karl Marx, que no processo de Colônia, em 1849, desmascarou de forma contundente os juízes burgueses por estes terem se recusado a lutar contra o poder feudal em decomposição e terem-no acusado de fazê-lo em seu lugar. Engels chegou a dizer depois sobre este julgamento, o seguinte: “em primeiro lugar, vê-se aqui um comunista explicar aos jurados burgueses que o dever de sua própria classe é precisamente levar a cabo até as últimas conseqüências, os atos que cometeu e graças aos quais comparece, na qualidade de acusado, perante eles”.
Mais ainda. Podíamos lembrar o heroísmo do presidente iraquiano, Saddam Hussein, que usou seu julgamento para desmascarar de forma cabal, uma a uma, as mentiras de Bush e sua quadrilha, revelando ao mundo as intenções espúrias do império americano na agressão ao seu país. Saddam denunciou que o assassinato por Bush de milhares de iraquianos tinha como objetivo a conquista de seu petróleo. Ou, por fim, deveríamos destacar Slovodan Milosevick, que dos tribunais montados pelos agressores da Otan, deixou clara a intenção das potências imperialistas de esquartejar a nação Iugoslava para implantar o domínio de suas tropas e corporações na região.
Enfim, ao homenagearmos nesta data o grande herói brasileiro estamos também colocando o seu nome ao lado de outros grandes revolucionários da Humanidade. Ao fazermos isso, prestamos uma homenagem não apenas a ele, mas a todos os que, como o alferes, também mantiveram a altivez nas situações mais adversas. Como disse Lênin, há em todo o revolucionário uma marca registrada. Essa marca é o amor por seu povo e a determinação inquebrantável de lutar por ele. Este era o compromisso de Tiradentes.
SÉRGIO CRUZ