Bolsonaro aprovou – ao não vetá-lo, na Lei nº 13.964 – o “juiz das garantias”, apesar do parecer do ministro Moro e da Advocacia Geral da União, recomendando o veto.
Moro, aliás, outra vez mostrou-se um capacho como poucos houve por aqui (e até em outros países), do tipo que aceita tudo, qualquer desrespeito, e por parte do que existe de pior no país – e apenas porque espera subir na vida às custas de aceitar (e até aplaudir) uma humilhação atrás da outra.
Já houve – e há – gente submissa na vida política do país. Mas, subserviente a Bolsonaro, um sujeito incapaz de algum pensamento que mereça esse nome, um indivíduo que trocou o Exército pelas milícias, um elemento rancorosamente hostil ao país, ao povo e à Justiça?!
Convenhamos que nem o antigo Petrônio – aquele bajulador de Nero – era assim.
Mas, voltemos ao “juiz das garantias”.
Bolsonaro preocupado com as “garantias” jurídicas e legais aos acusados em processos na Justiça (e aos investigados pela Polícia e pelo Ministério Público)???
Se fosse verdade, o Juízo Final estaria próximo.
Para um sujeito que é a favor de fechar o STF – jamais houve dúvidas de que Eduardo Bolsonaro apenas papagueava o pai, quando disse que “para fechar o STF só precisa de um cabo e um soldado” – é muita preocupação com as garantias.
Muita, mas muita mesmo.
É óbvio que Bolsonaro, explicitamente a favor da ditadura e da tortura, está se lixando para as “garantias” aos investigados e aos réus, até mesmo para as dos “milicianos” – pois ele prefere indultá-los.
Quem matou a charada (ainda que, com todo respeito, não fosse muito difícil) foi o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça:
“[A Lei que Bolsonaro sancionou] vai afetar imediatamente o caso de Flávio Bolsonaro e qualquer outro semelhante. O juiz que determina a realização de provas não será o mesmo que vai julgar.”
O que significa que o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio, não poderá continuar no caso Flávio Bolsonaro/Fabrício Queiroz.
O juiz Itabaiana é odiado por Bolsonaro porque autorizou as investigações da Polícia e do Ministério Público do Rio de Janeiro, depois que o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) detectou as anômalas movimentações financeiras de Queiroz – um faz-tudo de Bolsonaro desde que estavam no Exército – e do próprio Flávio Bolsonaro.
Parece ao leitor uma loucura que Bolsonaro tenha aprovado o “juiz das garantias” apenas para tirar Itabaiana do caso?
Certamente, é uma loucura. Mas ele acabou com o COAF pela mesma razão – porque o órgão detectou as movimentações suspeitas de Flávio Bolsonaro e de Fabrício Queiroz (inclusive um depósito de R$ 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro).
Em suma, ele tornou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), o principal órgão de inteligência anti-lavagem do país, uma repartição do Banco Central, que não conserva nem o nome, porque o órgão, instituído desde 1998, exerceu a sua função, ao detectar o labirinto bancário nas contas de Queiroz e Flávio Bolsonaro.
Diante disso, aprovar o “juiz das garantias” para afastar o juiz Itabaiana do caso de seu filho, até parece coisa de pouca monta.
Pensando bem, será que aprovar o “juiz das garantias” somente para afastar o juiz Itabaiana, será uma loucura maior do que nomear o Beato Salu para o Ministério das Relações Exteriores? Ou o erudito leitor de kafta para a Educação? Ou a mulher da goiabeira para aquele Ministério mix?
As motivações de Bolsonaro sempre são as mais mesquinhas, em geral para proteger ou beneficiar a si próprio. A família, para ele, é, meramente, uma extensão de si mesmo (o que, tão deturpadas são as coisas, corresponde a uma realidade, mas somente porque ele a tornou assim e a trata assim).
O juiz Itabaiana quebrou, com justificadas razões, o sigilo bancário de Flávio e de outras 93 pessoas (físicas e jurídicas) e autorizou busca e apreensão nos locais relacionados ao caso.
Por isso, os brasileiros ganharam um novo juiz – o “juiz de garantias” – que deverá estar em ação no prazo de 30 dias, segundo a lei que Bolsonaro sancionou -, com a mudança do ordenamento jurídico estabelecido pela Constituição de 1988.
Sem nenhuma discussão da sociedade – e no prazo de 30 dias.
CONVERSAS
Moro não tem do que se queixar – e, se está se queixando, ninguém ouviu.
Toda a base em favor do “juiz das garantias” no Congresso, resumiu-se às conversas de Moro com o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Operação Lava Jato, divulgadas pelo site “The Intercept Brasil”.
Assim, o que se disse é que Moro estava investigando os réus, que depois julgou e condenou, o que é proibido desde a Constituição de 1988.
Independente da veracidade ou não do argumento, foi Moro que permitiu esse argumento – aliás, notavelmente convincente, diante das mensagens aparecidas em “The Intercept Brasil” e outros órgãos de informação.
Assim, o que menos importava para ele era o combate à corrupção – sua entrada no governo Bolsonaro, aliás, já era suficiente para percebê-lo.
O NOVO JUIZ
A deputada Margarete Coelho (PP-PI), autora da proposta de incluir o “juiz das garantias” no substitutivo ao “pacote anticrime” de Moro, declarou, na quinta-feira, que o novo juiz somente valeria para os processos abertos depois da nova lei entrar em vigor.
Foi desmentida, tacitamente, pelo relator do projeto, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG). E, realmente, como frisou o jurista Miguel Reale Júnior, não há nada, absolutamente nada, no texto da lei, que torne o “juiz das garantias” válido (e obrigatório) apenas para os processos abertos depois dela.
Mas o que é o “juiz das garantias”?
Em alguns países do mundo (a França é o principal exemplo) existe o chamado “juiz de instrução”, que conduz as investigações, mas não julga os acusados de um crime – tarefa que está a cargo de outro juiz, o “juiz de mérito”.
O “juiz de instrução” tem funções que, no Brasil, são, hoje, do Ministério Público (para que o leitor tenha uma ideia, o juiz de instrução François Roban, interpretado por Philippe Duclos na série francesa “Engrenages” – rebatizada, no Brasil, de “Spiral” – é uma excelente apresentação).
Assim, e sobretudo no governo Bolsonaro, o “juiz das garantias” não parece algo aberrante, exceto pelo fato de que, na França, desde pelo menos a década de 90, o “juizado de instrução” tem servido para postergar o julgamento dos casos de fraude financeira e corrupção (cf. o artigo do jurista francês, e ex-juiz de instrução, Hervé Lehman, “Un juge obsolète”, Le Monde 15/01/2009).
Mas há outro problema, levantado pela juíza Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB): o “juiz das garantias”, aprovado por Bolsonaro, não é o mesmo que o “juiz de instrução” dos franceses.
O “juiz das garantias” não apenas “investiga”, mas julga. Pela lei aprovada (artigo 3º-B, inciso XIV), ele é quem decide se a Justiça recebe ou não a denúncia, que tem origem nas investigações que ele próprio conduziu.
Trata-se, podemos dizer em linguagem de leigo, de um julgamento (“produz coisa julgada formal”, nas palavras da juíza), ainda que não o julgamento final do processo. E quem faz esse julgamento, pela lei assinada por Bolsonaro, é o “juiz das garantias” .
Mas isso significa abandonar o “sistema acusatório” (quem investiga não julga, quem julga não investiga), implantado com o fim da ditadura, pela Constituição de 1988.
Evidentemente, nada existe de inamovível em qualquer sistema. Porém, não se pode argumentar que o objetivo do “juiz das garantias” é separar realmente a investigação do julgamento – como está sendo argumentado pelos seus adeptos.
A juíza levanta outro aspecto importante – o “juiz das garantias” foi concebido para evitar os abusos do “juiz de instrução”:
“O juiz das garantias – e isso tem sido pouco esclarecido- foi concebido originalmente em outros países para enfrentar o juizado das instruções, instituto inexistente no Brasil, caracterizado pela realização de atividades investigativas sob a presidência de um juiz de direito. Por isso que a importação do juiz das garantias é feita como remédio para falsas patologias processuais e, pior ainda, de forma contraditória e atabalhoada” (cf. Renata Gil e Renee do Ó Souza, “O efeito iatrogênico do juiz das garantias”, OESP 26/12/2019”).
É verdade. Principalmente a última parte.
C.L.
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