(HP, 24/06/2016)
John Pilger é um dos mais completos jornalistas do mundo. Foi correspondente de guerra no Vietnã, Camboja, Bangladesh e Biafra. Seu primeiro documentário, “The Quiet Mutiny” (1970), foi, exatamente, sobre a guerra do Vietnã, tema ao qual dedicou, também, “Vietnam: Still America’s War” (1974), “Do You Remember Vietnam?” (1978) e “Vietnam: The Last Battle” (1995).
Da opressão sobre os nativos de sua terra, a Austrália, até os crimes de Bush, Blair e Obama no Oriente Médio e no Afeganistão, passando pela ocupação de Timor Leste (“Death of a Nation: The Timor Conspiracy”, de 1994, filmado clandestinamente na própria ilha invadida por Suharto), pela agressão ao Iraque (“Paying the Price: Killing the Children of Iraq”), pela opressão sobre os palestinos (“Palestine Is Still the Issue”) e pelas intervenções dos EUA contra as democracias da América Latina (“The War on Democracy”), é difícil encontrar um assunto realmente importante – e relegado ao abafamento pela mídia imperialista – que Pilger não tenha abordado em seus filmes e seus escritos (é autor, além de 59 documentários, de 15 livros e uma peça teatral).
O artigo que publicamos hoje, foi por nós traduzido a partir do texto aparecido no site do autor (“johnpilger.com”). Trata-se de uma aguda análise sobre as eleições presidenciais norte-americanas, que tem a imprescindível qualidade de não fugir da verdade – e não enganar os leitores.
A bajulação em torno de Hillary Clinton parece-se muito com aquela que alguns quiseram montar ao redor de Dilma Rousseff: fazer com que as pessoas apoiem uma política reacionária, criminosa, sem vergonha e sem escrúpulos, em nome de uma suposta “esquerda” (o que nos EUA é chamado de “liberalismo”), tão fraudulenta e sem caráter que desaba à mera enunciação dos feitos e atos das heroínas dessa miséria mental e moral.
C.L.
JOHN PILGER
Uma censura virulenta, ainda que familiar, está prestes a abater-se sobre a campanha eleitoral dos EUA. Como a caricatura tosca, Donald Trump, parece quase certo que ganhe a indicação do Partido Republicano, Hillary Clinton está sendo incensada tanto como a “candidata das mulheres” quanto como a campeã do liberalismo americano em sua heroica luta contra o Mal.
Isso é conversa fiada, é claro; Hillary Clinton deixou um rastro de sangue e sofrimento ao redor do mundo e uma nítida marca de exploração e ganância em seu próprio país. Dizer isto, no entanto, está se tornando intolerável na terra da liberdade de expressão.
A campanha presidencial de Barack Obama, em 2008, deveria ter alertado até mesmo os mais distraídos. Obama baseou sua campanha da “esperança” quase inteiramente no fato de um afro-americano aspirar a liderança na terra da escravidão. Ele também era “anti-guerra”.
Obama nunca foi anti-guerra. Pelo contrário, como todos os presidentes americanos, ele era pró-guerra. Ele votou a favor do financiamento para a matança de George W. Bush no Iraque e estava planejando a escalada na invasão do Afeganistão. Nas semanas anteriores ao juramento presidencial, secretamente aprovou um ataque israelense a Gaza, o massacre conhecido como Operação Chumbo Fundido. Ele prometeu fechar o campo de concentração de Guantánamo e não o fez. Ele se comprometeu a ajudar o mundo a se tornar “livre de armas nucleares” e fez o oposto.
Como um novo tipo de gerente de marketing do status quo, o untuoso Obama foi uma escolha inspirada. Mesmo no final de sua presidência manchada de sangue, com a sua assinatura em drones que espalham infinitamente mais terror e morte em todo o mundo do que o desencadeado por jihadistas em Paris e Bruxelas, Obama é bajulado como “cool” (The Guardian).
Em 23 de março, Counterpunch publicou meu artigo, “Uma Guerra Mundial começou: quebre o silêncio” [“A World War has Begun: Break the Silence”]. Como tem sido a minha prática há anos, difundi o texto através de uma rede internacional, incluindo Truthout.com, o site americano liberal. Truthout publica algum jornalismo importante, inclusive importantes revelações de Dahr Jamail.
Truthout rejeitou o texto, porque, disse um editor, ele aparecera na Counterpunch e tinha quebrado “diretrizes”. Eu respondi que isso nunca tinha sido um problema ao longo de muitos anos e eu não sabia nada de diretrizes.
Diante da minha recalcitrância, foi então dado um outro significado. O artigo seria tolerado, desde que submetido a uma “revisão” e eu concordasse com alterações e exclusões feitas pelo “comitê editorial” da Truthout. O resultado foi o amaciamento e a censura da minha crítica à Hillary Clinton, e ao distanciamento dela de Trump. O trecho seguinte foi cortado:
Trump na mídia é uma figura odiosa. Mas isso só deveria despertar o nosso ceticismo. As visões de Trump sobre a migração são grotescas, mas ele não é mais grotesco que David Cameron. Não é Trump que é o Grande Deportador dos Estados Unidos, mas o vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama… O perigo para a maioria de nós não é Trump, mas Hillary Clinton. Ela não é independente. Ela encarna a resiliência e violência de um sistema… À medida que o dia da eleição presidencial se aproxima, Clinton será saudada como a primeira presidente mulher, independentemente de seus crimes e mentiras – assim como Barack Obama foi elogiado como o primeiro presidente negro e os liberais engoliram seu nonsense sobre “esperança”.
O “comitê editorial” claramente queria diluir o meu argumento de que Clinton representa um comprovado e extremo perigo para o mundo. Como toda censura, isto era inaceitável. Maya Schenwar, que dirige Truthout, escreveu-me para dizer que a minha relutância em submeter o meu trabalho a um “processo de revisão” significava que ela tinha de tirá-lo da sua “agenda de publicações”. Essa é a maneira do censor com palavras.
Na raiz desse episódio está uma indizível permanência. Esta é a necessidade, a compulsão, de muitos liberais nos Estados Unidos de abraçar um líder de dentro de um sistema que é comprovadamente imperial e violento. Como a “esperança” de Obama, o sexo de Clinton não é mais que uma fachada adequada.
Esta é uma compulsão histórica. Em seu ensaio de 1859, Sobre a Liberdade, ao qual os liberais modernos parecem prestar homenagem inabalável, John Stuart Mill descreveu o poder do império. “O despotismo é um modo legítimo de governo para lidar com bárbaros”, escreveu ele, “desde que o objetivo seja a sua melhoria, e os meios sejam justificados pelo seu efeito real, no fim”. Os “bárbaros” eram grandes partes da Humanidade, de quem era requerida “implícita obediência”.
“É um mito agradável e conveniente aquele de que os liberais são os pacificadores e os conservadores são os fomentadores da guerra”, escreveu o historiador britânico Hywel Williams em 2001, “mas o imperialismo ao modo liberal pode ser mais perigoso, por causa de sua natureza ilimitada – sua convicção de que representa uma forma de vida superior [enquanto nega a dos outros] – que leva ao fanatismo que considera a si mesmo apenas como o justo”. Ele tinha em mente um discurso de Tony Blair, depois dos ataques de 9/11, em que Blair prometia “reordenar este mundo em torno de nós”, de acordo com seus “valores morais”. A carnificina de um milhão de mortos no Iraque foi o resultado.
Os crimes de Blair não são incomuns. Desde 1945, cerca de 69 países – mais de um terço dos membros das Nações Unidas – sofreram alguns deles ou todos os seguintes. Eles foram invadidos, seus governos derrubados, seus movimentos populares suprimidos, suas eleições subvertidas e seu povo bombardeado. O historiador Mark Curtis estima o número de mortos na casa dos milhões. Com o desaparecimento dos impérios europeus, este tem sido o projeto do portador da chama liberal, o “excepcional” Estados Unidos, cujo celebrado presidente “progressista”, John F. Kennedy, de acordo com uma nova pesquisa, autorizou o bombardeio de Moscou durante a crise cubana, em 1962.
“Se tivermos de usar a força”, disse Madeleine Albright, secretária de Estado na administração liberal de Bill Clinton e hoje uma apaixonada cabo eleitoral de sua mulher, “é porque somos a América. Nós somos a nação indispensável. Nós estamos no alto. Nós vemos mais no futuro”.
Um dos mais horrendos crimes de Hillary Clinton foi a destruição da Líbia em 2011. Devido à insistência de Hillary, e com o apoio logístico norte-americano, a OTAN lançou 9.700 “incursões de ataque” contra a Líbia, de acordo com os seus próprios registros, dos quais foram destinados mais de um terço a alvos civis. Elas incluíam mísseis com ogivas de urânio. Ver as fotografias dos escombros de Misurata e Sirte, e as sepulturas em massa identificadas pela Cruz Vermelha. Ler o relatório da UNICEF sobre as crianças mortas, “a maioria [delas] com idade inferior a dez anos”.
No mundo acadêmico anglo-americano, seguido servilmente pela mídia liberal de ambos os lados do Atlântico, teóricos influentes conhecidos como “realistas liberais” têm, desde há muito, ensinado que imperialistas liberais – uma expressão que eles nunca utilizaram – são os mediadores da paz mundial e administradores de crises, ao invés de causa das crises. Eles expurgaram a humanidade do estudo das nações e congelaram-no com um jargão que serve ao poder belicista. Preparando nações inteiras para a autópsia, identificaram “estados fracassados” (países difíceis de explorar) e “estados vilões” (países resistentes à dominação ocidental).
Se o regime alvo é uma democracia ou uma ditadura, é irrelevante. No Oriente Médio, os colaboradores do liberalismo ocidental têm sido extremistas islâmicos, ultimamente a al-Qaeda, enquanto noções cínicas de democracia e direitos humanos servem de cobertura retórica para a conquista e o caos – como no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iêmen, Haiti, Honduras. Ver o registro público desses bons liberais, Bill e Hillary Clinton. O registro deles é um padrão ao qual Trump mal pode aspirar.