Bolsonaro, na terça-feira, último dia do ano, saiu de Aratu, na Bahia, para, segundo anunciou, passar o réveillon com a esposa, em Brasília.
Na sexta-feira (27/12), anunciara que passaria o ano na praia de Aratu e só voltaria no dia 5 de janeiro. Mas ele encurtou a temporada na praia em cinco dias.
Não resta dúvida – e, realmente, não restou – sobre o motivo dessa volta: o escândalo, talvez seja melhor dizer, a execração (é o nome, convenhamos) provocada por suas declarações de que sua esposa iria se submeter a uma cirurgia, portanto, ele iria (e foi) para a praia sem ela.
Será que não é possível esperar alguma coisa normal de Bolsonaro?
Pelo visto, não.
Assim, em quatro dias, ele percorreu mil quilômetros, de Brasília até Aratu, e mais mil quilômetros, de Aratu até Brasília – sem nenhum motivo governamental, mas com viagem e estadia às custas dos cofres públicos.
Teve que voltar porque esse povo não o deixa em paz, ou seja, não o deixa fazer o que quiser… Se não fosse por este povo, ele estaria muito bem, agora, lá em Aratu…
Mas, por que usamos as palavras “escândalo” e “execração”?
Primeiro, porque o sentimento geral foi esse. Quantos presidentes foram, até hoje, para a praia, ainda mais na passagem do ano, sem a esposa? Quantos declararam que a esposa não ia porque faria uma operação?
Aliás, esse é o segundo aspecto, quantos maridos fazem isso?
Porque, o episódio revela o apreço que ele tem pela família, a começar pela esposa.
Porém, Bolsonaro apresentou-se, na campanha eleitoral, antes da campanha, e agora, como “defensor da família”.
Então, que “família” é essa que ele defende, considerando o que aconteceu, de Brasília até Aratu?
Em sua obra mais conhecida, Sérgio Buarque de Holanda menciona um certo Bernardo Vieira de Melo:
“Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça dê um único passo no sentido de impedir o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso” (cf. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Companhia das Letras, 26ª edição, 1995, p. 82).
Gilberto Freyre também se refere ao mesmo caso:
“… o assassinato de Dª Ana, moça de ‘rara fermosura’, diz o cronista, filha do sargento-mor Nicolau Coelho e mulher de André Vieira de Melo. A escrava contou à mãe de André Vieira de Melo que Dª Ana ‘dava furtivas entradas a João Paes Barreto que com sacrílego desprezo do sacramento e de tão authorisadas pessoas injuriava o thalamo conjugal’. André Vieira de Melo quis desprezar as notícias. Mas tal foi a insistência de sua mãe e de seu pai que acabou mandando matar João Paes Barreto e envenenar a esposa. Dª Ana antes de tomar o veneno pediu que lhe trouxessem um padre para se confessar e um hábito de São Francisco para se amortalhar. Confessou-se e amortalhou-se. Deram-lhe então o veneno. Desconfiando da eficácia da potagem, deram-lhe outra. O resultado foi o segundo veneno desfazer os efeitos do primeiro. De modo que Dª Ana só veio a morrer depois, do ‘golpe de hum garrote que lhe deu a sogra’ na garganta” (cf. Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala, Global, 48ª edição, 2003, pp. 511-512).
O marido achava que era apenas fofoca (e, aliás, era), mas, como seu pai (e, por reflexo, a mãe) “insistiu” (ou seja, mandou), ele concordou com o assassinato da esposa…
Mas isso aconteceu em 1710. Bernardo Vieira de Melo foi um dos carrascos do Quilombo dos Palmares e dos índios do Rio Grande do Norte. Morreu quatro anos depois, na cadeia – mas não pelo assassinato de Dª Ana.
Há mais de 300 anos isso aconteceu.
Porém, o que Bolsonaro chama de “família” segue basicamente esse padrão. Que a Constituição de 1988 tenha – pela primeira vez na História do Brasil – determinado que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (cf. CF, artigo 226, § 5º), é coisa que não lhe importa, até porque um de seus objetivos é rasgar a Constituição de 1988.
Entretanto, há coisas que hoje não se podem fazer: matar alguém abertamente, publicamente, e considerar o assassinato da mulher, ou da nora, uma questão privada, como fizeram os Vieira de Melo com Dª Ana.
Hoje, para fazer algo semelhante, é preciso contratar o Escritório do Crime. Para quem mora perto, não deve ser muito difícil…
Mas que aqueles filhos de Bolsonaro não diferem muito, na falta de identidade própria (nenhuma outra comparação aqui incluída), daquele André Vieira de Melo – que, por sinal, também acabou preso, em Lisboa, e também morreu na cadeia, como o pai -, lá isso não diferem muito.
Entretanto, claro, a situação da mulher na família é o termômetro mais sensível e mais importante do atraso, ou do avanço, de uma sociedade – ou do atraso (ou do avanço) de uma mentalidade.
Alguém tem dúvida de que, na história de Dª Ana, se fosse constatada a infidelidade do marido, nada aconteceria?
É a mesma mentalidade de Bolsonaro: se, durante o tempo que passou hospitalizado, após seu esfaqueamento em Juiz de Fora, sua esposa tivesse ido para a praia, a 1000 km de distância, o que faria seu marido?
Alguns – aliás, não poucos – bolsonaristas (e também alguns lulistas, pois, como em relação aos bolsonaristas, a burrice parece uma sombra dessa parte do espectro ideológico) proclamaram pela Internet que a cirurgia de Michelle, uma correção dos efeitos de outra cirurgia para desvio de septo nasal, seria coisa demasiado simples, para que Bolsonaro tivesse que lhe fazer companhia.
Pois, qual é a cirurgia, não é problema nosso. É problema dela. Poderia ser a retificação de uma unha encravada, e nada mudaria.
Além disso, se é assim, por que Bolsonaro acabou voltando para Brasília?
Ou será que estão acusando o seu mito de ser um demagogo sem escrúpulos?
Pois a questão é, precisamente, a demagogia de Bolsonaro sobre uma suposta “defesa da família”. Este, sim, é um problema público.
Que família?
Aquela em que um sujeito – um homem – manda e os outros, antes de tudo a mulher, obedecem?
Aquela em que a mulher, se disser ou fizer alguma coisa que não agrade ao ditador patriarcal, entra na bolacha, ou, talvez, no estilo dos ídolos de Bolsonaro, vai para o pau de arara?
Aquela em que o bordel (e outras relações por fora) é – para os homens, claro, somente para os homens – o complemento da vida conjugal?
Aquela em que a mulher é obrigada a fingir que não vê o assédio das suas filhas pelo próprio pai – ou pelos tios?
Pois, ao ir para a praia no réveillon, deixando a mulher sozinha (“ela está com um problema de… Problema não, vai fazer uma, talvez uma cirurgia nesses dias aí”), é esse tipo de família, em que só os homens têm direitos (e que direitos…), ou, mais precisamente, em que os homens determinam os direitos das mulheres – e esmagam os filhos – que apareceu como a “defesa da família” feita por Bolsonaro.
Não é um problema só para as mulheres. Isso também não faz bem aos homens. Bolsonaro, aliás, é um exemplo, como se dizia, modelar.
O fato de ter voltado para Brasília, em nada apaga o que aconteceu nem o que foi dito.
Patrícia Pillar estava com toda razão ao apontar que era Bolsonaro quem não acompanhava sua esposa; e não vice-versa.
Esse é um grau de civilização que, mesmo nós, que não somos otimistas em relação ao estado civilizatório de Bolsonaro, não esperávamos que ele fosse incapaz.
Entretanto, foi incapaz.
Só voltou para Brasília, como diz o povo do interior, no laço.
CARLOS LOPES
Matéria relacionada: