120 anos de nascimento do educador e defensor da escola pública
Por decisão do governador Rui Costa, 2020 será, na Bahia, o Ano Anísio Teixeira.
A ideia, divulgou o governo baiano, é “promover pela Bahia uma série de ações, como editais, eventos, premiações, celebrações e lançamentos de livros e produtos audiovisuais em homenagem ao intelectual e pensador social baiano Anísio Teixeira, pelo seu papel fundamental na história da Educação do Brasil. A proposta é incentivar e ampliar a divulgação da vida e obra de Anísio Teixeira”.
No dia 12 de julho de 2020, Anísio Teixeira completaria 120 anos.
Trata-se de uma iniciativa mais do que justa, sobretudo considerando os tempos atuais, de ataque à escola pública – da qual Anísio foi, entre os nossos educadores, o maior defensor – e, mais do que isso, considerando os ataques do atual governo federal à qualquer escola.
Nem sempre as coisas foram assim, evidentemente, e não vão continuar assim por muito tempo.
Em 1952, quando era diretor do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), no governo Getúlio Vargas, Anísio Teixeira expôs, na Câmara dos Deputados, o seu pressuposto para a educação – e, aliás, para a vida:
“O espírito do homem, em estado de liberdade, não age anarquicamente, mas perquire, estuda, procura orientar-se e escolhe o que associadamente, socialmente, deve fazer. Estrangulado é que salta para a rebeldia, o conformismo passivo, infecundo, ou a simulação. E o caso brasileiro, é muito mais este último caso” (cf. Sessão de 7 de julho de 1952 da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, in Anísio S. Teixeira, A Educação e a Crise Brasileira, CEN, 1956, pp. 188-189).
Mas isso não era uma subestimação do papel dos professores na Educação. Pelo contrário, ele se preocupou sempre com a formação dos mestres – desde a época em que fora “Inspetor-geral do ensino” na Bahia, aos 24 anos.
Em outros artigos, nos referimos à trajetória de Anísio Teixeira (v. HP 12/06/2013, Anísio Teixeira: a educação privada é um anacronismo; e HP 14/06/2013, Anísio Teixeira contra os privatizadores do ensino).
Aqui, queríamos acrescentar algo que nos parece relevante: o pensamento de Anísio Teixeira raramente movimentou-se no plano abstrato; sempre, ou quase sempre, é em função de problemas bastante concretos que ele pensa a Educação no Brasil.
Nesse sentido, não foi sua base filosófica – o pragmatismo de John Dewey – que o ajudou a abordar os problemas educacionais. Antes, ele parece ter se aproximado da filosofia de Dewey pela propensão – ou, vá lá, opção, ainda que possa ser inconsciente – a não se afastar dos problemas que queria resolver.
Como resultado, o pensamento de Anísio Teixeira esteve sempre em movimento. Na exposição que fez na Câmara, em 1952, disse ele:
“Referi-me a movimento de emancipação educativa — e não o fiz sem intenção. Não me parece que estejamos aqui para discutir como ‘disciplinar’ a educação nacional, mas como ‘promovê-la’, como desencadear as forças necessárias para levar a efeito um movimento, a mobilização geral de esforços e recursos para resolver o problema do direito dos direitos do brasileiro: o de se educar para ser cidadão, para ganhar a vida e para viver com decência e dignidade” (grifos e itálicos no original).
Essa perspectiva dinâmica fez, também, com que suas posições sobre algumas questões mudassem ao longo do tempo.
Ele foi o maior defensor, entre os educadores, da Educação pública, universal e gratuita (isto é, paga com os impostos que o Estado recebe da coletividade). Mas o papel do ensino público, na obra de Anísio, não é o mesmo – ou, melhor, não tem a mesma magnitude relativa – em todos os momentos dessa obra.
Porém, pode-se dizer sem possibilidade de erro, que esta magnitude somente cresceu ao longo do tempo. Mas, já em 1936, ele tinha formulado a questão:
“Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública. Não a escola sem prédios, sem asseio, sem higiene e sem mestres devidamente preparados, e, por conseguinte, sem eficiência e sem resultados. E sim a escola pública rica e eficiente, destinada a preparar o brasileiro para vencer e servir com eficiência dentro do país.”
O último trecho (“dentro do país”) não é pouca coisa.
Na dedicatória de “Capitães da Areia”, Jorge Amado escreveu:
“Para Aydano do Couto Ferraz, José Olympio, José Américo de Almeida, João Nascimento Filho e para Anísio Teixeira, amigo das crianças.”
Nessa época, em 1937, Anísio ainda não realizara a maior parte de suas obras – intelectuais e administrativas. Não fora, por exemplo, secretário geral da Capes ou diretor do INEP (governo Getúlio) nem reitor da Universidade de Brasília (governo Jango).
Agora, a Bahia declara que 2020 é o ano Anísio Teixeira.
Então, comemoremos do melhor modo: conhecendo a obra do baiano de Caetité – cidade de onde veio mais de um brasileiro ilustre.
Abaixo, transcrevemos um artigo de Anísio Teixeira.
Escolhemos “Educação e nacionalismo”, por abordar vários aspectos que são bastante atuais – e, também, por ser sucinto.
Antes que borbulhem discussões sobre aquilo que não interessa, chamamos atenção para dois pontos:
1) Anísio Teixeira jamais, em toda a sua vida, subestimou a importância da luta pelo controle nacional do petróleo; se, no texto, às vezes há uma aparente contraposição com a luta por uma educação nacional, é apenas porque a última é que era subestimada.
2) A expressão “democracia racial”, que hoje se tornou anátema, era comum em 1960 – e não significava ausência de racismo, tanto assim que a chamada Lei Afonso Arinos, assinada pelo presidente Vargas, que pela primeira vez tornou ilegal o racismo, é de 1951. O termo descrevia, mais, a miscigenação própria da população brasileira.
Aliás, isso é claro pela continuação do texto de Anísio (“e crítica aos defeitos maiores: a insensibilidade, por exemplo, para com a imensa parcela ainda não integrada da nação” etc.).
Sendo assim, leitor, eis o texto de Anísio Teixeira (C.L.).
Educação e nacionalismo
ANÍSIO TEIXEIRA
Impossível negar que estamos vivendo uma hora de vigor da consciência brasileira em relação a certos aspectos econômicos do nacionalismo. O monopólio estatal do petróleo, por exemplo, acabou por se fazer o símbolo do sentimento nacionalista. Mas o nacionalismo brasileiro não pode ser reduzido a símbolo nem ter apenas vida simbólica.
Nacionalismo é, fundamentalmente, a tomada de consciência pela nação de sua existência, de sua personalidade e dos interesses dos seus filhos. Pelo nacionalismo, os indivíduos da nação se fazem verdadeiramente irmãos e tudo que atinja a cada um passa a atingir a todos. Por isto mesmo, antes de mais nada, o nacionalismo aguça em cada um o sentimento de justiça para com os demais habitantes do país, impondo a participação de todos na vida nacional e fazendo crescer a coesão e a consciência de igualdade entre eles. Passam todos, efetivamente, a se sentirem cidadãos da mesma pátria, com direito à mútua solidariedade e a certa igualdade fundamental.
Não é, assim, o nacionalismo senão e apenas indiretamente um movimento de defesa do país contra inimigos externos. Muito mais do que isto, é um movimento da consciência da nação contra a divisão, o parcelamento dos seus filhos entre “favorecidos” e “desfavorecidos” e contra a alienação de sua cultura e de seus gostos, voltados antes para a imitação e a admiração do estrangeiro do que para o amor esclarecido de suas próprias coisas; e a favor da integração de todos na pátria comum, com um mínimo de justiça social, a favor do desenvolvimento de sua cultura como cultura própria e autônoma e a favor da solução de suas contradições econômicas e sociais e da correção gradual de seus defeitos maiores, que passam a ser reconhecidos sem desprezo, analisados com denodo e vigorosamente combatidos.
Esse movimento é, pois, acima de tudo uma mudança de mentalidade, um novo estado de espírito, uma emancipação, uma chegada à maioridade, uma afirmação de vontade afinal madura e superior: a plena consciência de um desígnio coletivo, capaz de dar à nação coerência e de lhe dirigir a vida.
Por que meios – mais do que quaisquer outros – se há de tornar realidade esse estado de espírito e essa afirmação de vontade?
Por certo que pelo novo comportamento dos indivíduos em face dos problemas nacionais, afinal sentidos, analisados e esclarecidos, e por cujas soluções radicais ou graduais passarão a lutar com disciplina, esforço e coerência. E isto é o que vimos tentando no campo do desenvolvimento econômico.
Mas, bastará isto? Tão importante, senão mais importante, terá de ser a transformação da escola brasileira, do nível primário ao superior, para fazê-la volver ao próprio país, ao estudo do Brasil, de sua língua, de sua história, de sua cultura e de seus problemas e das soluções que lhes estamos dando ou não lhes estamos dando. E isto é o que não vimos fazendo.
Com efeito. Da escola primária nem se pode falar, pois, reduzida a quatro anos de curso, ministrado em turnos de meio e um terço de dia, mal chega a ensinar as técnicas fundamentais da cultura escrita. Na escola secundária, entretanto, já se afirmam gritantes os aspectos desnacionalizantes. A língua portuguesa é ensinada no mesmo pé de igualdade de várias línguas estrangeiras e de uma língua morta. A importância da história do passado e do estrangeiro é infinitamente maior que a da história nacional. Na geografia, o mesmo. A cultura nacional, o desenvolvimento nacional, a história contemporânea do Brasil, ninguém poderá dizer que sejam estudadas na escola secundária brasileira. E não o são também na Universidade. Na Faculdade de Filosofia, a língua portuguesa e a literatura brasileira são uma fração do departamento de línguas neolatinas. Um jovem pode formar-se sem tomar contato com nenhum dos livros da imensa brasiliana, que já possui o país. Sem conhecer um só dos seus autores, pois não se pode considerar conhecê-lo saber-lhes os nomes e um ou outro excerto antológico.
Com uma escola assim desnacionalizada e desnacionalizante, como esperar que a juventude se sinta esclarecida para conduzir, como vanguarda que é, o movimento nacionalista? Que admirar limite ela seu nacionalismo ao petróleo, que por mais importante que seja, não constitui senão simbolicamente a emancipação nacional?
Esta emancipação não nos virá pelo petróleo, mas pelo homem brasileiro, infinitamente mais importante que o petróleo. Este homem brasileiro é que será o construtor do Brasil. E quem o tem de formar será a escola brasileira.
A escola brasileira é que lhe irá ensinar a compreender o Brasil, mostrar-lhe a sua evolução, apresentar-lhe a sua estrutura social em transformação, indicando-lhe os defeitos arcaicos, as qualidades novas em surgimento, dar-lhe consciência dos seus triunfos e dos seus característicos, com exaltação dos aspectos originais – a sua democracia racial, por exemplo – e crítica aos defeitos maiores: a insensibilidade, por exemplo, para com a imensa parcela ainda não integrada da nação – os analfabetos, os miseráveis, a população rural que vegeta por esse imenso país afora; o espírito de aproveitamento, que o estado de pobreza gera em todos os que sobem à tona e escapam à desgraça de ser no país apenas povo, a corrupção generalizada que é, mais do que tudo, manifestação de alienação, que o Brasil não é um bem comum, mas algo antes apropriado por privilegiados e hoje assaltado pelos que conseguem tomar um pouco das mãos de tais privilegiados e ganhar, deste modo, o direito de também explorá-lo em seu próprio benefício.
Se o nacionalismo, concebido em seus aspectos negativos, for a tomada de consciência dos que prejudicam o crescimento da nação, dos inimigos desse desenvolvimento, não há como não descobri-los tanto no interior quanto no exterior. E os inimigos do interior serão todos os que explorem e roubem o Brasil, seja pelo ato francamente espoliativo, seja por dificultarem que os meus recursos públicos se apliquem com as prioridades, a eficiência e a justiça indispensáveis, a fim de que se integrem na pátria todos os seus filhos, dentro de um mínimo de igualdade e decência.
A primeira tomada de consciência, pois, será a tomada de consciência de nossa atual pobreza e a austeridade com que nos teremos de conduzir, para apressar essa integração.
Nacionalismo será assim antes de tudo uma aguda consciência de toda e qualquer situação de privilégio, acompanhada do desejo real e profundo de reparar essa situação de privilégio com os sacrifícios necessários para a correção da injustiça.
Como o entendo, o nacionalismo não corresponderá a nenhuma obsessão petrolífera, a nenhuma busca de bodes expiatórios no estrangeiro, mas a uma tomada de consciência do nosso atraso, à lúcida percepção de suas causas e à corajosa correção de todas as nossas atitudes, de todos os nossos comportamentos, que, de um ou outro modo, constituem as raízes desse subdesenvolvimento econômico, político, social e cultural.
Só a escola, e uma escola verdadeiramente de estudos e de conhecimento do Brasil, poderá mostrar-nos o caminho para esse imenso esforço de emancipação nacional. Tal escola não poderá ser a escola privada, mas a escola pública, pois só esta poderá vir a inspirar-se nessa suprema missão pública, a de nacionalizar o Brasil.
(Publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.34, n.80, out./dez. 1960. p.205-208; extraído da Biblioteca Virtual Anísio Teixeira, excelente site mantido pela Universidade Federal da Bahia.)
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