Com paralisações, atos de protesto e bloqueios de ferrovias e estradas, milhões de trabalhadores indianos atenderam à convocação das dez centrais sindicais e de outras organizações populares na quarta-feira para a ‘Bharat Bandh’ (Greve Geral) contra a ‘reforma trabalhista’ do governo Modi, as privatizações e o arrocho de aposentados e agricultores, e para exigir um salário-mínimo de 21 mil rúpias (294 dólares) e aposentadoria mínima de 10 mil rúpias (140 dólares).
As centrais, que representam 250 milhões de trabalhadores indianos, rechaçaram “as políticas anti-povo e anti-trabalhadores do governo do BJP”, o partido fundamentalista hindu no poder, e exigiram que Modi atenda à sua “Carta de 12 Pontos” por proteções sociais básicas e pela geração de empregos.
A greve também repudiou a malsinada emenda à lei de cidadania que exclui refugiados muçulmanos, bem como o plano do governo Modi de forçar todos os 1,3 bilhão de residentes do país a provar seu direito à cidadania indiana, brutal estratagema para acossar e discriminar os mais de 150 milhões de indianos de fé islâmica.
A única central que ficou de fora é aquela que funciona como um braço do governo, a Bharatiya Mazdoor Sangh (BMS). A ‘reforma’ de Modi foi apresentada ao parlamento em novembro passado, para facilitar demissões e precarizar ainda mais os empregos.
AMPLITUDE
De acordo com as centrais, a adesão à greve geral foi “total” nos estados de Kerala e de Manipur, e “quase total” no de Tripura, apesar da brutalidade da repressão. Em Bengala Ocidental, a adesão à greve foi “muito grande”, enquanto em Assam, Bihar, Jharkhand, Punjab, Odisha, Madhya Pradesh, Tamil Nadu, Maharashtra, entre outros estados, foi “bastante significativa”.
O protesto afetou particularmente os transportes, os bancos, os serviços públicos, telecomunicações e as universidades, em quase todos os estados do país. Agricultores pobres e trabalhadores rurais participaram em peso. A juventude, que já tem estado nas ruas contra o supremacismo hindu e suas leis racistas, também se uniu ao movimento em 60 universidades.
35 milhões de motoristas de ônibus, caminhões e riquixás se juntaram à greve, segundo a central sindical CITU, e em grande parte dos centros urbanos da Índia o transporte parou.
As paralisações atingiram montadoras e fábricas de autopeças, entre elas a Honda, no cinturão industrial Manesar-Gurgaon, nos arredores da capital da Índia, Nova Delhi, como registrou o Outlook India. Também foram afetadas, em outras regiões, a Volvo, Toyota, Bosch e a fabricante de pneus, Vikrant.
CONTRA AS LEILOATAS
Os eletricitários e os mineiros do carvão – setor também sob ameaça de privatização -, cruzaram os braços, assim como os trabalhadores em plantações de juta em Bengala Ocidental.
Em Mumbai (conhecida como Bombaim no tempo do domínio britânico), maior cidade da Índia, manifestantes repudiaram a privatização da estatal de petróleo Bharat Petroleum (BPCL). Os serviços de trem foram interrompidos em Calcutá.
A ameaça de privatização e de fusão de bancos públicos mobilizou milhões na Índia. Apesar das ameaças de punições do governo, foi enorme a adesão de servidores públicos. Em vários estados, particularmente nos governado pelo BPJ e aliados, a polícia reprimiu os manifestantes e realizou numerosas prisões.
A greve foi apoiada pelos dois partidos comunistas indianos – o PCI e o PCM -, por partidos regionais e pelo maior partido da oposição, o Congresso Indiano. “As políticas anti-povo e anti-trabalhista do governo Modi criaram um desemprego catastrófico e estão enfraquecendo nossas estatais para justificar sua venda aos empresários comparsas de Modi. Hoje, mais de 250 milhões de pessoas pediram Bharat Bandh 2020 em protesto. Eu os saúdo”, tuitou o líder do Partido do Congresso, Rahul Gandhi.
CONFISCO
O ataque aos sindicatos buscado pela ‘reforma’ de Modi é ainda mais sinistro, tendo em conta que mais de 90% da população ativa está na economia informal. Só com a chamada ‘desmonetização da moeda indiana’ – a troca forçada das notas de maior valor via rede bancária quando a imensa maioria não tinha conta em banco, um verdadeiro confisco -, acompanhada pela imposição de pesado imposto sobre vendas e serviços, mais de 3 milhões de pequenas e médias empresas foram levadas a fechar as portas, agravando o desemprego, que já é de quase 8% – uma enormidade, em um país com a população da Índia, e que, conforme o Banco Mundial, precisa criar a cada ano 1,3 milhão de empregos só para atender aos que ingressam no mer cado de trabalho.
A greve geral ocorreu três dias depois que bandos de arruaceiros correligionários do BJP invadiram o campus da Universidade que leva o nome do fundador da república indiana, espancando estudantes e professores, o que causou grande indignação.
EPIDEMIA DE SUICÍDIOS
Com metade da população ainda vivendo no campo, é dramática a situação dos agricultores, achacados pelas multinacionais das sementes transgênicas e agrotóxicos, pelo endividamento e pela falta de preço mínimo justo, o que levou 12 mil agricultores arruinados ao suicídio a cada ano do primeiro mandato de Modi.
A privatização e o favorecimento dos rentistas fez com que, de apenas dois bilionários em meados da década de 1990, a Índia agora tenha 131, só eles com riqueza equivalente a 15% do PIB. Os 1% mais ricos já detêm 68% de toda a riqueza, um aumento de quase 20 pontos percentuais nos últimos cinco anos, segundo a deputada comunista Brinda Karat. Mas, com uma população só inferior à da China em tamanho, deu para cevar uma classe média enorme em termos absolutos, em meio à imensa massa de destituídos e trabalhadores informais.
HINDUTVA
Se no terreno democrático o governo Modi tem se caracterizado pelo assalto aos princípios básicos da Constituição Indiana de 1950, em particular, o secularismo e a diversidade étnica e religiosa do país, e apologia do hinduísmo bramanista, o Hindutva, do ponto de vista da soberania nem de perto é comparável ao atual governo brasileiro, recordista em subserviência a Trump.
Modi está determinado a fazer a Índia – que até à dominação britânica era um dos principais países do mundo – retomar essa condição, por essa via que ele escolheu. Mantém excelente relação com a Rússia, de quem adquiriu o sistema de defesa antiaéreo S-400, apesar de todas as pressões de Washington, com quem busca também pontos de convergência. Desenvolveu uma relação pessoal com o presidente chinês Ji Xinping e integra os Brics e o Tratado de Shangai.
CANETAS MONTBLANC
Até onde vai essa tentativa de quadrar o círculo ainda resta ser visto. Como ironizou um ex-embaixador indiano, M. K. Bhadrakumar, sobre os líderes supremacistas hinduístas: ao mesmo tempo em que sentem que chegaram “à modernidade” por “exibirem canetas Montblanc, enfiarem lenços de seda nos bolsos do casaco ou usarem relógios de pulso Patek Philippe”, sonham em arrastar a Índia “a uma época primitiva que se assemelha às guerras religiosas na Europa medieval”.
ANTONIO PIMENTA