Dando sequência ao debate aberto pelo artigo de Michael Hudson sobre as reais intenções de Donald Trump ao assassinar o general Qassem Suleimani, publicamos hoje a entrevista feita pela revista The Saker com o autor do artigo, visando a aprofundar alguns pontos levantados por ele.
Hudson reafirma que a ação de Trump no Oriente Médio está relacionada às dificuldades dos EUA em manter o financiamento de seu déficit externo.
Em sua visão, não passa pela cabeça dos dirigentes do complexo industrial do petróleo e das armas, assim como dos neoconservadores, perder o controle sobre a reciclagem do excedente petrolífero comercializado pela Arábia Saudita, nem deixar de contar com o “exército” de wahabis para desestabilizar os regimes rebeldes da região.
S.C.
A morte anunciada do US dólar
ENTREVISTA DE THE SAKER COM MICHAEL HUDSON
Depois de publicar o artigo de Michael Hudson “EUA intensificam sua guerra democrática pelo petróleo do Médio Oriente”, decidimos pedir ao Michael para responder a algumas perguntas. Michael concordou muito gentilmente
The Saker: Trump tem sido acusado de não pensar à frente, de não ter uma estratégia de longo prazo quanto às consequências do assassinato do general Suleimani. Será que os Estados Unidos têm de fato uma estratégia no Oriente Médio ou trata-se apenas de ações pontuais?
Michael Hudson: É claro que estrategistas americanos negarão que as ações recentes refletem uma estratégia deliberada, porque a sua estratégia a longo prazo é tão agressiva e exploradora que chocaria o público americano como sendo imoral e ofensiva se eles viessem a público e a declarassem.
O presidente Trump é apenas o motorista do táxi, ele leva os passageiros que aceitou – Pompeo, Bolton e os neoconservadores com a síndrome do transtorno iraniano – aonde quer que lhe digam que querem ser conduzidos. Eles querem fazer um assalto e ele está sendo usado como o motorista da fuga (aceitando totalmente seu papel). Seu plano é manter a principal fonte de receita internacional: a Arábia Saudita e os excedentes e recursos monetários em torno das exportações de petróleo do Oriente Médio. Eles vêem os EUA perdendo sua capacidade de enfrentar a Rússia e a China e procuram manter a Europa sob o seu controle através da monopolização de setores-chave, de modo a terem o poder de usar sanções para esmagar países que resistam a transferir o controle das suas economias e monopólios naturais a rentistas compradores dos EUA. Em suma, os estrategistas dos EUA gostariam de fazer com a Europa e o Médio Oriente exatamente o que fizeram com a Rússia sob Yeltsin: entregar infraestrutura pública, recursos naturais e o sistema bancário a proprietários dos EUA, confiando no crédito em US dólar para financiar seus gastos governamentais internos e o investimento privado.
Isto é basicamente uma captura de recursos. Suleimani estava na mesma posição de Allende do Chile, de Kadafi da Líbia, de Saddam do Iraque. O lema é aquele [atribuído a] Stalin: “Nenhuma pessoa, nenhum problema”.
The Saker: A sua resposta levanta uma pergunta acerca de Israel: No seu artigo recente mencionou Israel apenas duas vezes e foram só comentários de passagem. Além disso, você também diz claramente que o lobby do petróleo dos EUA é muito mais crucial que o lobby de Israel. Então aqui está a minha pergunta: com que base chegou a essa conclusão e quão poderoso acredita que seja o lobby de Israel em comparação com, digamos, o lobby do petróleo ou o complexo industrial militar dos EUA? Em que grau seus interesses coincidem e em que grau eles diferem?
Michael Hudson: Escrevi meu artigo para explicar as preocupações mais básicas da diplomacia internacional dos EUA: a balança de pagamentos (dolarizando a economia global, baseando as poupanças dos bancos centrais estrangeiros em empréstimos ao Tesouro dos EUA para financiar os gastos militares, que são os principais responsáveis pelas despesas internacionais e pelo déficit orçamentário interno), o petróleo (e a enorme receita produzida pelo comércio internacional de petróleo) e o recrutamento de combatentes estrangeiros (dada a impossibilidade de recrutar soldados americanos dos EUA em número suficiente). Desde o momento em que estas preocupações se tornaram críticas até hoje, Israel era encarado como uma base militar e um apoiador dos EUA, mas a política estadunidense fora formulada independentemente de Israel.
Recordo-me de um dia em 1973 ou 74 quando viajava com meu colega do Instituto Hudson, Uzi Arad (mais tarde chefe do Mossad e conselheiro de Netanyahu), para a Ásia, fazendo escala em São Francisco. Numa quase festa, um general dos EUA aproximou-se de Uzi, tocou-lhe no ombro e disse: “Você é nosso porta-aviões no Oriente Médio” e manifestou a sua amizade.
Uzi ficou um pouco envergonhado. Mas era assim que os militares dos EUA pensavam de Israel naquela época. Naquele tempo, as três tábuas da estratégia de política externa dos EUA que esbocei já estavam firmemente em vigor.
É claro que Netanyahu aplaudiu os movimentos dos EUA para fragmentar a Síria e a opção de Trump do assassinato. Mas a decisão é dos EUA e são os EUA que estão a atuar em defesa do padrão do dólar, do poder petrolífero e a mobilizar o exército wahabi da Arábia Saudita.
Israel ajusta-se na diplomacia global estruturada nos EUA, tal como a Turquia. Eles e outros países agem de modo oportunista, dentro do contexto estabelecido pela diplomacia dos EUA, para seguirem suas próprias políticas. Obviamente Israel quer garantir as Colinas de Golã; daí sua oposição à Síria e também sua luta com o Líbano; daí sua oposição ao Irã como apoiador de Assad e do Hezbollah. Isto se encaixa na política estadunidense.
Mas quando se trata da resposta global e interna dos EUA, são os Estados Unidos que são a força ativa determinante. E sua preocupação reside acima de tudo em proteger sua vaca leiteira da Arábia Saudita, bem como em trabalhar com os jihadistas sauditas para desestabilizar governos cuja política externa é independente da direção dos EUA – desde a Síria até à Rússia (wahabis na Chechênia) e China (wahabis na região uigur ocidental). Os sauditas fornecem a base para a dolarização dos EUA (reciclando suas receitas de petróleo em investimentos financeiros e compras de armas nos EUA) e também fornecendo e organizando os terroristas do ISIS e coordenando sua destruição com os objetivos dos EUA. Tanto o lobby do petróleo quanto o complexo industrial militar obtêm enormes benefícios econômicos dos sauditas.
Portanto, concentrar unilateralmente em Israel é uma digressão que se afasta do que realmente importa: a ordem internacional centrada nos EUA.
The Saker: No seu artigo recente você escreveu: “O assassinato pretendia escalar a presença da América no Iraque para manter o controle das reservas de petróleo da região”. Outros acreditam que o objectivo era precisamente o oposto: obter um pretexto para remover as forças americanas tanto do Iraque como do Síria. Quais são os seus motivos para acreditar que a sua hipótese é a mais provável?
Michael Hudson: Por que matar Suleimani ajudaria a remover a presença dos EUA? Ele foi o líder da luta contra o ISIS, especialmente na Síria. A política dos EUA era continuar a usar o ISIS para desestabilizar permanentemente a Síria e o Iraque, a fim de impedir que um crescente xiita chegasse do Irã ao Líbano – que aliás serviria como parte da iniciativa chinesa da Rota da Seda (Belt and Road). Assim, matou Suleimani para impedir a negociação de paz. Ele foi morto porque fora convidado pelo governo do Iraque para ajudar a mediar uma aproximação entre o Irã e a Arábia Saudita. Era isso que os Estados Unidos temiam acima de tudo, porque efetivamente impediria o seu controle da região e o esforço de Trump para agarrar o petróleo iraquiano e sírio.
Assim, utilizando a habitual dupla linguagem orwelliana, Suleimani foi acusado de ser um terrorista e assassinado de acordo com a Lei de Autorização militar de 2002 dos EUA que permite ao presidente movimentar-se contra a Al Qaeda sem autorização do Congresso. Trump utilizou-a para proteger os rebentos terroristas ISIS da Al Qaeda.
Considerando minhas três tábuas da diplomacia dos EUA descritas acima, os Estados Unidos devem permanecer no Oriente Médio para manter a Arábia Saudita e tentar tornar o Iraque e a Síria estados clientes igualmente subservientes à balança de pagamentos e à política petrolífera dos EUA.
Certamente os sauditas devem perceber que, como suporte da agressão e terrorismo dos EUA no Oriente Médio, seu país (e suas reservas de petróleo) são o alvo mais óbvio. Suspeito que esta é a razão porque procuram uma aproximação com o Irã. E acho que isso está destinado a acontecer, pelo menos para proporcionar espaço para respirar e remover a ameaça. Os mísseis iranianos para o Iraque foram uma demonstração de quão fácil seria direcioná-los para os campos de petróleo sauditas. Qual seria então a avaliação do mercado das ações da Aramco?
The Saker: No seu artigo escreveu: “O grande déficit na balança de pagamentos dos EUA tem sido os gastos militares no exterior. Todos os déficits de pagamentos, a começar pela Guerra da Coreia em 1950-51 e estendendo-se à Guerra do Vietnã da década de 1960, foram responsáveis por forçar o dólar a retirar-se do ouro em 1971. O problema enfrentado pelos estrategistas militares dos EUA era como continuar a sustentar as 800 bases militares estadunidenses por todo o mundo e suportar as tropas aliadas sem perder a alavancagem financeira da América”. Quero perguntar uma questão básica e realmente primitiva a este respeito: como se preocupar com balança de pagamentos enquanto 1) os EUA continuam a imprimir moeda; 2) a maior parte do mundo ainda quer dólares. Será que isto não dá aos EUA um orçamento essencialmente “infinito”? Qual é o viés nesta lógica?
Michael Hudson: O Tesouro dos EUA pode criar dólares para gastar internamente e o Fed pode aumentar a capacidade do sistema bancário de criar dólar a crédito e pagar dívidas denominadas em US dólares. Mas eles não podem criar divisas estrangeiras para pagar a outros países, a menos que estes desejem aceitar dólares ad infinitum – e isso implica em arcar com os custos de financiar o déficit dos EUA em balança de pagamentos, obtendo apenas títulos de dívida (IOUs) em troca de recursos reais que venderão a compradores estadunidenses.
Esta foi a situação que surgiu há meio século. Os Estados Unidos podiam imprimir dólares em 1971, mas não podiam imprimir ouro.
Na década de 1920, o Reichsbank da Alemanha podia imprimir marcos alemães – trilhões deles. Quando se tratava de pagar a dívida das reparações da Alemanha ao estrangeiro, tudo o que ele pôde fazer foi lançar estes D-marcos no mercado de divisas estrangeiras. Isto esmagou a taxa de câmbio da moeda, forçando o preço das importações a subir proporcionalmente e provocando a hiperinflação alemã.
A questão é quantos dólares excedentes governos estrangeiros querem possuir. Suportar o padrão dólar acaba por suportar a diplomacia estrangeira dos EUA e sua política militar. Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, a maior parte do mundo em crescimento procura desdolarizar suas economias pela redução da dependência a exportações dos EUA, investimento dos EUA e empréstimos bancários dos EUA. Este movimento está criando uma alternativa ao dólar, provavelmente para substituí-lo com grupos de outras divisas e ativos nas reservas financeiras nacionais.
The Saker: No mesmo artigo você também escreve: “De modo que manter o dólar como a divisa de reserva do mundo tornou-se um esteio do gasto militar estadunidense”. Frequentemente ouvimos pessoas a dizerem que o dólar está prestes a afundar e que quando isto acontecer a economia dos EUA (e, segundo alguns, também a economia da UE) entrará em colapso. Na comunidade de inteligência há algo que se chama rastrear os “indicadores e advertências”. A pergunta que lhe faço é: quais são os “indicadores e advertências” econômicos de um possível (provável?) colapso do US dólar seguido por um colapso dos mercados financeiros mais ligados ao dólar? O que deverão pessoas como eu próprio (sou um ignorante em economia) manter debaixo de olho e procurar?
Michael Hudson: O que é mais provável é um declínio lento, em grande parte devido à deflação da dívida e cortes em gastos sociais, nas economias da Eurozona e dos EUA. Naturalmente, o declínio forçará as companhias mais altamente alavancadas pela dívida a perderem seus títulos de pagamentos e serem conduzidas à insolvência. Este é o destino de economias thatcherizadas. Mas será longo e penosamente arrastado, em grande medida porque neste momento à esquerda há pouca alternativa socialista ao neoliberalismo.
As políticas protecionistas de Trump e as suas sanções estão forçando outros países a tornarem-se autossuficientes e independentes de fornecedores dos EUA, desde culturas agrícolas até aviões e armas militares, contra a ameaça estadunidense de um corte ou de sanções contra reparações, peças sobressalentes e serviços. As sansões à agricultura russa ajudou-a a tornar-se uma grande exportadora agrícola e tornou-a muito mais independente em hortaliças, produtos lácteos e queijo. Os EUA têm pouco a oferecer industrialmente, especialmente considerando o fato de que suas TI em comunicações são enxertadas com equipamento da espionagem estadunidense.
A Europa portanto está enfrentando pressão crescente do seu setor de negócios para escolher a aliança econômica não-EUA que está crescendo mais rapidamente e oferece um mercado de investimento mais lucrativo e é um fornecedor comercial mais seguro. Países se voltarão tanto quanto possível (diplomaticamente bem como financeiramente e economicamente) para fornecedores não-EUA porque os Estados Unidos não são confiáveis e porque estão sendo contraídos pelas políticas neoliberais apoiadas por Trump e os democratas assemelhados. O subproduto provavelmente será um movimento contínuo rumo ao ouro como uma alternativa ao dólar na liquidação de déficits de balanças de pagamentos.
The Saker: Finalmente, minha última pergunta: que país considera como o adversário mais capaz da atual ordem política e econômica mundial imposta pelos EUA? Quem você pensa que, nos EUA, o Estado Profundo e os neoconservadores mais temem? A China? A Rússia? Algum outro país? Como você os compararia na base desse critério?
Michael Hudson: O principal país [que ameaça] romper a hegemonia dos EUA são obviamente os próprios Estados Unidos. Esta é a grande contribuição de Trump. Ele está a unir o mundo num movimento rumo ao multicentrismo muito mais ostensivamente do que qualquer anti-americano poderia ter feito. E está fazendo tudo isso em nome do patriotismo e do nacionalismo americano – o supremo embrulho da retórica orwelliana!
Trump levou a Rússia e a China a juntarem-se com os outros membros da Organização de Cooperação de Shangai (SCO), incluindo um observador do Irã. Seu pedido para que a Otan se juntasse aos EUA nas capturas de petróleo e no seu apoio ao terrorismo no Oriente Médio e na confrontação militar com a Rússia na Ucrânia e alhures provavelmente levará a manifestações europeias contra a Otan e contra a ameaça dos EUA de III Guerra Mundial.
Nenhum país isolado pode conter a ordem mundial unipolar dos EUA. É preciso uma massa crítica de países. Isto já está a acontecer entre os países que listou acima. Eles estão simplesmente a atuar no seu próprio interesse comum, utilizando suas próprias divisas mútuas para comércio e investimento. O efeito é uma divisa multilateral alternativa e uma área comercial.
Os Estados Unidos estão agora apertando os parafusos exigindo que outros países sacrifiquem seu crescimento a fim de financiar o império unipolar estadunidense. Com efeito, países estrangeiros começam a responder aos Estados Unidos o que as dez tribos de Israel disseram quando se retiraram do sul do reino de Judá, cujo rei Roboão se recusou a aliviar suas exigências (1 Reis 12). Eles refletem o grito de Sheba filho de Bikri uma geração antes: “Cuide da sua própria casa, ó Davi!” A mensagem é: O que outros países têm a ganhar com a permanência no mundo neoliberalizado unipolar dos EUA, em comparação com o uso da sua própria riqueza para edificar suas próprias economias? É um problema antigo.
O dólar ainda desempenhará um papel no comércio e investimento dos EUA, mas ele será apenas mais uma divisa, mantida à distância até que finalmente abandone sua tentativa dominadora de despojar a riqueza de outros países. Contudo, a sua morte pode não ser uma visão bonita.
9/Janeiro/2020
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