A entrevista de Lula ao site de notícias UOL, publicada no último domingo (26/01), é uma demonstração daquilo que ocorre quando alguém coloca seus interesses – e, no caso, interesses bem mesquinhos – acima dos interesses do povo e do país.
Há de quase tudo – e tudo errado. Inclusive a transformação de Bolsonaro em vítima da Globo, o que não é pouco transformismo. Sobretudo nesse momento, em que todo o país é assolado, à beira de tornar-se terra devastada.
Há, por exemplo, a brilhante perspectiva de vida que Lula apresenta para o povo brasileiro: “O milagre no Brasil foi o pobre ser solução. Coloca o pobre no orçamento da economia, dê o direito dele comprar o leite, o pão, o almoço e a janta, dê o direito dele trabalhar, dê o direito de financiar um puxadinho…”.
Será que o povo brasileiro está condenado a essa mediocridade? Pois essa é a perspectiva que Lula apresenta em relação ao momento atual. Aliás, ele acha que chegar a isso (“o direito de financiar um puxadinho”) é um milagre.
Há, também, declarações de que “o PT está disposto, como sempre esteve, a fazer aliança política”, o que é de um ridículo atroz, porque todo mundo sabe que não é verdade. Mais ainda, significa que Lula chama de “aliança” o que é submissão, algo confirmado pela continuação: “Com o segundo turno, todo o partido político tem direito de ter o seu candidato, de ter o seu tempinho na televisão, de defender o seu programa [no primeiro turno]. Se não for para o segundo turno, esse partido, então, faz aliança para apoiar alguém que foi”.
O que significa que, se depender dele – e depende – não haverá aliança alguma. Ele próprio diz isso claramente quanto ao Recife, Fortaleza, João Pessoa, Natal e Salvador. O PT (isto é, Lula) aceita que outros partidos se submetam. Fora isso, nada.
Se não é possível nem no Recife, onde o PSB tem a Prefeitura e o governo do Estado – e teve duas vezes e meia mais votos para deputado federal – o PT fazer aliança, pode-se concluir como “está disposto, como sempre esteve, a fazer aliança política”.
Entretanto, ele não acha a mesma coisa em relação a Bolsonaro. Não é brincadeira, leitor. Aliás, para nós, nem mesmo é surpreendente.
FRENTE
Diz Lula que a Globo é (ou é capaz de ser) pior que o nazismo. Já Bolsonaro, é um injustiçado, a quem a imprensa – quer dizer, a Globo – impede de falar.
Antes que nos acusem de forçar a barra, vejamos esses trechos da entrevista de Lula:
1) “O que a Globo está fazendo com o Intercept, era capaz que o nazismo não fizesse. Ela só teve coragem de citar o Intercept duas vezes: quando o Intercept publicou o nome do Faustão, que acho que tinha dado aula pro Moro, e quando foi citar o nome do Roberto D’Ávila, que tinha trabalhado para arrecadar dinheiro para o meu filme. A Globo não fez sequer matéria contra a fajutice da denúncia do Ministério Público [contra o jornalista Glenn Greenwald, diretor do site]. Então, isso é censura” (grifo nosso).
2) “Acho que tem crítica que ele [Bolsonaro] faz que é correta. Dê a ele o mesmo direito que dá aos outros, direito de falar, abra para ele falar. Na greve dos jornalistas de 1979, os donos de jornais descobriram que não precisavam tanto de jornalistas, que poderiam fazer jornalismo sem precisar do jornalista. Agora, o Bolsonaro está provando que é possível fazer notícia sem precisar dos jornais, da televisão. Ele faz por ele mesmo. Aliás, o Trump já fez escola…”
Faz lembrar a época em que o principal alvo do PT, e de Lula, era a oposição à ditadura – e não a ditadura. Apesar de não ser expressa desse modo, era uma definição tão ferrenha, tão bestial, que deixou marcas indeléveis: a expulsão de dois deputados federais – Bete Mendes e Airton Soares – que somaram-se ao conjunto da oposição; a recusa a apoiar – e votar em – Tancredo Neves contra o então candidato da ditadura, Paulo Maluf; a recusa a assinar a Constituição que condensou a luta contra a ditadura – a Carta mais democrática e nacionalista que o país já teve.
Mais de 30 anos depois, Lula descobriu que o principal inimigo do país é a Globo – e não Bolsonaro.
O mesmo Lula que, quando presidente, sem permitir qualquer discussão sobre o assunto, renovou as concessões da Globo por 15 anos (v. Diário Oficial da União, Nº 72, terça-feira, 15 de abril de 2008, seção 1, p. 5).
Na época, a expectativa era, pelo menos, a abertura de algum debate (v. Altamiro Borges, “O vencimento das concessões da TV Globo”).
Debalde.
Lula renovou as concessões, por 15 anos, em um momento que a Globo estava longe de ser um baluarte – ou mesmo uma poça – de democracia.
Mas, agora, fora do governo, descobriu que a Globo é pior que o nazismo e que Bolsonaro é uma vítima da Globo – assim como ele próprio. Existe, portanto, uma identidade entre os dois, pelo menos nessa questão: “Dê a ele o mesmo direito que dá aos outros, direito de falar, abra para ele falar”.
“Outros”, quem? Desde quando faltou espaço na mídia para Bolsonaro falar, inclusive as coisas mais monstruosas e criminosas?
Por exemplo:
“O voto não vai mudar nada no Brasil. Só vai mudar infelizmente quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com FHC, não vamos deixar ele pra fora, não. Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra, morrem inocentes”.
Essa continua sendo a política, se é que se pode chamar assim, de Bolsonaro. Daí a nenhuma preocupação em formar uma base parlamentar do governo. Daí o completo desprezo pelos partidos, a começar pelo seu.
Se ele não partiu para o que sempre pregou e berrou, é porque as forças democráticas do país não permitiram.
Bolsonaro – e não a Globo – é o maior risco para a democracia no Brasil. Os nazistinhas que pululam no governo – como aquele fã de Goebbels que não conseguiu se sustentar no cargo – não são acidentes. Os filhos de Bolsonaro, inclusive aquele que há poucos dias declarou preferir os nazistas, que instalaram Auschwitz, aos comunistas, que libertaram os sobreviventes de Auschwitz, também não são acidentes. São, aliás, meras extensões do pai.
Também não é acidente que Bolsonaro tenha se orgulhado de que “o meu bisavô foi soldado de Hitler”, algo que, provavelmente, inventou – e, se inventou, é pior do que se fosse verdade.
Ou que tenha declarado: “Profissionalmente, ele [Hitler] foi um grande estrategista… quando você tem um general, aqui no Brasil ou em qualquer exército do mundo, aquele general tem que estar pronto para aniquilar outro país, destruir outro país, para defender o seu povo”.
Ou que tenha ido para a Índia, no momento em que os chefes de Estado do mundo estão na Polônia, celebrando a libertação do campo de extermínio de Auschwitz.
Porém, segundo a declaração de Lula, Bolsonaro, como ele próprio, é uma vítima do “nazismo” da Globo. Ou, mais precisamente, de coisas que nem o nazismo foi capaz.
Para isso, não hesitou em recorrer a uma mentira escancarada sobre a cobertura da Globo às revelações das conversas do então juiz Sérgio Moro com o procurador Deltan Dallagnol, realizadas pelo site The Intercept Brasil.
Pode-se criticar essa cobertura por várias razões ou por vários ângulos. Mas o que Lula disse é, meramente, mentira. Tão descarada que até alguns lulistas apressaram-se a descomprometer-se com ela, algo que não é comum nesse pessoal que adora uma “narrativa”.
Esta “descoberta” de Lula se dá quando a Globo melhorou quanto a espelhar a verdade, exatamente por sua cobertura do governo Bolsonaro.
Pois, neste momento, como na época da ditadura, Lula está fazendo – ou tentando fazer – uma aliança com Bolsonaro contra a frente que se opõe a essa calamidade em forma de governo que aflige o país. Ou, mais precisamente, para impedir que se consolide uma ampla frente democrática contra Bolsonaro e o golpismo fascista.
A Globo é o espantalho que ele sacode, com o objetivo de sabotar a frente democrática, pois é claro que, no Brasil de hoje, falar em ampla frente democrática com a Globo por inimiga é algo que pertence ao terreno das alucinações sombrias e grotescas.
Daí, também, os quase elogios de Lula a Bolsonaro:
“… a gente não tem que ficar perguntando se Bolsonaro cresceu, se ele caiu, ele tem que governar quatro anos, ele foi eleito para cumprir um mandato de quatro anos. E ele que governe com a maior competência possível porque, se for bem, tem o direito a ser candidato à reeleição. E quem está no mandato e tiver o mínimo de competência, tem dificuldade de perder a eleição. Mesmo quem votou contra o Bolsonaro tem que saber o seguinte: ele é presidente. Eu vou ficar sentado na cadeira, dizendo que ele não presta e torcendo para que dê tudo errado? Não. Nós temos que torcer para que estas pessoas governem pensando na maioria do povo brasileiro. Ele tem a obrigação de governar pensando no bem, no ser humano, no mais pobre, no país, na nossa soberania, nos nossos estudantes, no nosso povo trabalhador.”
Bolsonaro está arrasando o país. Nunca houve um governo tão antinacional, tão antipopular e tão burro neste país. Mas, em vez de unir-se aos que se opõem a ele, Lula recomenda que “nós temos que torcer para que estas pessoas governem pensando na maioria do povo brasileiro”.
Bolsonaro? Guedes? Damares? Weintraub? O beato Salu do Itamaraty, que acredita que Trump é a encarnação de Deus?
Lula não é idiota. O que ele não quer é a existência de uma ampla frente de oposição. Daí, a promoção desses débeis mentais a pessoas que podem “governar pensando na maioria do povo brasileiro”.
Uma ampla frente democrática, acha Lula, faria com que perdesse peso político, pois é impossível uma ampla frente em torno dele.
Como os interesses de Lula são mais importantes que os interesses do país e do povo, que fiquemos todos acoelhados em torno dele, até a eleição de 2022 – na qual, aliás, ele, Lula, é inelegível.
Portanto, que facilitemos a vida para Bolsonaro, porque a união das forças democráticas do país não pode – e não vai ser – em torno de Lula.
Que isso possa significar o cancelamento das próprias eleições de 2022 – isto é, um golpe de Estado nazi-bolsonarista, perto do qual a ditadura de 64 poderá parecer um iluminado jardim de infância – não é coisa que perturbe a alguém cuja única prioridade é o próprio umbigo.
CARLOS LOPES