No dia 17 de janeiro de 1961, há 57 anos, era assassinado, sob bárbaras torturas, o líder da independência do Congo, Patrice Lumumba. Seu assassinato fora ordenado – como depois comprovou a Comissão Church, do Congresso dos EUA – pelo próprio presidente dos EUA, Dwight Eisenhower.
[NOTA: A Comissão presidida pelo senador Frank Church, que, em 1975-1976, investigou as atividades criminosas da CIA e outras agências norte-americanas, concluiu pela inocência do governo dos EUA na ação que resultou no assassinato de Lumumba, mas apenas porque os belgas teriam chegado primeiro. O texto referente à ordem de Eisenhower, no Relatório Church, é o seguinte: “A comissão coletou sólida evidência de uma conspiração para assassinar Patrice Lumumba. A forte hostilidade para com Lumumba, proclamada pelos mais altos níveis do governo, pode ter tido a intenção de iniciar uma operação de assassinato; no mínimo, ela engendrou tal operação. A evidência indica que é provável que a forte inquietação que o presidente Eisenhower expressou sobre Lumumba na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 18 de agosto de 1960 foi tomada por Allen Dulles [diretor da CIA e irmão do então secretário de Estado, John Foster Dulles] como uma autorização para assassinar Lumumba. Nota da Comissão Church: “De fato, um membro do Conselho presente à reunião de 18 de agosto acredita que testemunhou uma ordem presidencial para assassinar Lumumba” (cf. United States Senate, Select committee to study governmental operations with respect to intelligence activities, “Interim Report: III. Alleged Assassination Plots Involving Foreign Leaders”, pág. 13).]
Poucos homens, na História, tiveram que enfrentar tantas dificuldades – e, ao final, tanta crueldade – e portar-se com tanta dignidade e heroismo, quanto Patrice Lumumba.
No dia da Independência do Congo, 30 de junho de 1960, diante do rei da Bélgica (que pronunciou um dos mais arrogantes discursos já ouvidos em qualquer lugar do mundo, elogiando seu avô, Leopoldo II, um cavalo batizado que tornara o Congo uma fazenda pessoal, escravizara toda a população e instituíra o decepamento de braços como “castigo”, inclusive para crianças, desde que fossem negras), Lumumba fez um dos mais inesquecíveis pronunciamentos da História da Humanidade.
“… esta independência do Congo”, disse ele, “nenhum congolês digno deste nome jamais poderá esquecer, foi conquistada pela luta, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual não poupamos nem nossas forças, nem nossas privações, nossos sofrimentos, nem nosso sangue.
“Desta luta, que foi de lágrimas, fogo e sangue, estamos orgulhosos até ao mais profundo de nós mesmos, pois foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para por fim à humilhante escravidão que nos era imposta pela força.
“Qual foi a nossa sorte durante 80 anos de regime colonial, as nossas feridas estão ainda muito frescas e muito dolorosas para que nós possamos removê-las da nossa memória; nós conhecemos o trabalho exaustivo, exigido em troca de salários que não nos permitiam nem comer para matar a nossa fome, nem nos vestir ou morar decentemente, nem criar nossos filhos como seres amados.
“Nós conhecemos as ironias, os insultos, as pancadas que devíamos suportar, de manhã, de tarde e de noite, porque éramos negros.
“Quem esquecerá que a um negro se dizia ‘tu’, certamente não como se diz a um amigo, mas porque o respeitável ‘vous’ era reservado somente aos brancos?
“Nós conhecemos a pilhagem de nossas terras, espoliadas em nome de textos pretensamente legais, que não faziam mais do que reconhecer o direito do mais forte.
“Nós conhecemos o que era a lei não ser a mesma, caso se tratasse de um branco ou de um negro, confortável para uns, cruel e desumana para os outros.
“Nós conhecemos os sofrimentos atrozes dos que foram degredados por opiniões políticas ou por crenças religiosas, exilados em sua própria pátria, com sorte pior do que a morte.
“Nós conhecemos o que era haver casas magníficas para os brancos e palhoças miseráveis para os negros, ou, nas lojas ditas europeias, um negro nem poder entrar, ou, nas barcaças, um negro viajar como um galináceo, aos pés do branco em sua cabine de luxo.
“Quem esquecerá, enfim, os fuzilamentos onde pereceram tantos de nossos irmãos, as masmorras onde foram brutalmente atirados aqueles que não queriam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração?
“Tudo isso, meus irmãos, nós temos sofrido profundamente. Mas, também, tudo isso, nós, que fomos escolhidos, pelo voto dos seus representantes eleitos, para governar o nosso amado país, nós, que sofremos em nosso corpo e em nosso coração a opressão colonialista, dizemos a vocês, em voz alta: tudo isso finalmente acabou.”
Mais tarde, ele diria ao furibundo Baudoin, rei da Bélgica: “Nós não somos mais vossos macacos” (Nous ne sommes plus vos singes).
Infelizmente, os sofrimentos dos congoleses, desde o assassinato de Lumumba, prolongaram-se mais do que ele previa naquele dia de junho de 1960.
Porém, desde 1997, com a retomada do Congo pelo povo – com a liderança dos seguidores de Lumumba – o país está sendo reconstruído. As dificuldades a vencer, na situação criada no mundo após a queda dos países socialistas do Leste Europeu, são grandes. Mas o importante é que o vulto imenso de Patrice Lumumba inspira os passos de seu povo.
No 57º ano de sua heroica morte, publicamos hoje o poema de nosso grande Eduardo de Oliveira, dedicado ao herói congolês.
(Em nosso site, os leitores que se interessarem pela vida e obra de Lumumba, poderão acessar nosso texto O assassinato de Patrice Lumumba, escrito em 2003 e refeito em 2010.)
C.L.
BANZO
(Ao meu irmão Patrice Lumumba)
Por Eduardo de Oliveira
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Trago em meu corpo a marca das chibatas
como rubros degraus feitos de carne
pelos quais as carretas do progresso
iam buscar as brenhas do futuro.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh’alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos…
e que ainda hoje percutem nestas plagas.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh’alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos…
e que ainda hoje percutem nestas plagas.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África
pendurado na noite do meu povo.