Meu amigo Victor Ampílov passou, definitivamente, para a História.
Recordo quando o conheci, em frente ao Museu Lenin, em Moscou, na minha segunda viagem à Rússia.
Estávamos em meio a 1992 e a Rússia se esvaía – sem nenhum lugar comum ou força de expressão – em sangue.
Pela primeira vez, vi a realidade do que eu mesmo (e muitos outros) escrevera sobre o importacionismo neoliberal: era, realmente, uma “importação de quinquilharias”, em uma dimensão que nós nunca, naquela época, poderíamos conceber no Brasil. Tudo era importado: o refrigerante, a cerveja, o cigarro, o sabonete. Exceto vodka doméstica – algumas tinham gosto de álcool retificado – a Rússia, aparentemente, deixara de produzir.
O Museu Lenin era, então, um ponto de referência, porque, em alguns dias da semana, Ampílov promovia um comício, denunciando o regime de Yeltsin.
Victor liderara, já então, algumas das maiores manifestações contra a destruição brutal do seu país (para que o leitor tenha uma ideia do que estamos falando: a Rússia perdeu 45% do seu PIB entre 1989 e 1998 e a redução da expectativa de vida foi tão violenta que, em 2006, ela estava ainda cinco anos abaixo daquela de 1987; cf. Carlos Aguiar de Medeiros, “A economia política da transição na Rússia”, in “Uma Longa Transição: vinte anos de transformações na Rússia”, Ipea, 2011).
Lembro que Ampílov, na frente do Museu Lenin, usava um megafone, daqueles que eram comuns em nossas manifestações sob a ditadura, em 1978 ou 1979.
Lembro, também, de um grupo de senhoras da província de Tula, que ofereceu a Victor um saco de maçãs. Disse-me ele que Tula era famosa, entre outras coisas, por suas maçãs. E me passou uma delas. As maçãs eram, realmente, boas, mas algo diferentes daquelas que são comuns no Brasil ou na Argentina. Pareciam um pouco mais ácidas.
Ampílov nascera no campo – em um kolkhoz, uma cooperativa agrícola socialista, à beira de um dos rios que formam a bacia do grande Don. Tinha uma grande lembrança da mãe, que encabeçara, na prática, a família, depois que seu pai voltou inválido da Guerra contra o nazismo. Era uma mulher, contava, de grande espírito coletivo. No kolkhoz, a pior tarefa que existia era a limpeza da fossa. Sempre que era necessária, apareciam os relutantes – em suma, ninguém queria fazer esse serviço. Era sua mãe, quase sempre, que aceitava descer com um balde e limpar a fossa.
Eu sabia como isso era difícil – na minha infância, durante o tempo em que morei no campo de um município gaúcho, havia o mesmo problema. Porém, meu pai resolvera a questão de outro modo: sempre abrindo outra fossa e abandonando a que ficava cheia. Havia terra suficiente para isso. Mas, pelo que Ampílov contava, isso era impossível no campo russo. Quando a fossa ficava cheia, algum abnegado – geralmente sua mãe – tinha que esvaziá-la.
Nesse dia, em que encontrei pela primeira vez o meu amigo, ele deu-me um exemplar do jornal que editava (chamava-se, se bem me lembro, “Relâmpago”), com um dos artigos de Cláudio Campos sobre a história da União Soviética.
Eu não esperava voltar à Rússia, depois dos angustiantes meses que lá havia passado, no final de 1990, quando a URSS, sob Gorbachev, se esfrangalhava.
Porém, um grande amigo, que me sucedera no contato com a Rússia, Antonio Alves, e conhecera Ampílov, acho que em 1991, não estava mais, desgraçadamente, em nosso mundo. Na minha primeira viagem, eu não ouvira falar de Ampílov. Foi Antonio que o encontrara em Moscou – e o descreveu de modo altamente elogioso.
Então, em 1992, Antonio já não estava aqui. Mas havia que trazer Ampílov – e Nina Andreeva, dirigente do Partido Comunista dos Bolcheviques de Toda a União – ao Brasil, para um grande seminário internacional.
Assim, voltei à Rússia. A dificuldade da missão estava em que, naquela época, as relações entre Nina e Victor não eram das melhores. No entanto, tudo correu muito bem. Os problemas, e houve problemas, não decorreram em nada da relação entre os dois, mas da impressionante burocracia e corrupção que, na época de Yeltsin, afundavam a Rússia.
Victor era um homem bem humorado, brincalhão, com um jeito quase latino de tratar as questões – não tivesse ele, durante anos, morado na Nicarágua, onde foi repórter da TV soviética.
Ele, aliás, falava um espanhol perfeito – e, depois, dominou muito razoavelmente o português.
Na redação do HP, Ampílov espantava-se com o espaço que concedíamos às fotos. Nitidamente, o nível de leitura que havia na URSS, muito maior que o nosso, implicava em alguma diferença, na maneira de editar a página de um jornal.
Vou lembrar, apenas de passagem, pois outros já o fizeram – ou vão fazer – do período do (segundo) golpe de Yeltsin, em 1993, em que Ampílov foi um dos principais líderes da resistência, o que lhe custou a prisão e a tortura.
Entretanto, saiu de lá tão bem humorado quanto antes. Não era um homem que se abatia facilmente.
Da prisão, ele trouxe uma obra filosófica que escrevera, “Os Diálogos de Lefortovo”, que tive a honra de rever o texto final de sua tradução para o português.
Dizer que sua morte foi uma grande perda – a perda de um herói – seria dizer uma verdade óbvia. Mas o que é um herói? Um grande ser humano. Este era Victor Ampílov.
C.L.