WALTER NEVES
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS – USP
A questão da primeira saída dos hominínios[1] para fora da África é um dos temas mais debatidos na paleoantropologia[2]. Até recentemente, assumia-se que nossos ancestrais teriam deixado aquele continente há não mais que 2 milhões de anos e que o primeiro hominínio a fazê-lo teria sido o Homo erectus. Isso porque as evidências mais antigas de hominínios na Eurásia referem-se ao sítio de Dmanisi, na República da Geórgia, no Cáucaso, datado de 1,8 milhões de anos. Embora, em princípio, os cinco crânios ali encontrados até o momento tenham sido classificados como Homo erectus, há uma grande discussão se de fato esses crânios podem ser classificados como tal. Descobertas na China, publicadas em 2018, datadas, em princípio, por volta de 2,1 milhões de anos, recuaram a saída da África em pelo menos 200 mil anos. Essas datações obtidas na China têm sido, entretanto, contestadas, já que elas foram obtidas por apenas um método de datação: o paleomagnetismo[3].
No entanto, pesquisas efetuadas por uma equipe de pesquisadores brasileiros e italianos, das quais fiz parte, no vale do Rio Zarqa, no norte da Jordânia, entre 2013 e 2016, cujos resultados foram publicados em 2019, com grande repercussão no cenário internacional, retrocederam a primeira saída da África em cerca de 600 mil anos. Ferramentas Olduvaienses (a primeira indústria de pedra lascada reconhecidamente fabricada por humanos)[4] foram por nós ali encontradas com datações que variam de 2,5 a 2,0 milhões de anos, fazendo com que as datações de 2,1, encontradas na China, passassem a ser perfeitamente aceitáveis.
Nossa pesquisa no vale do Rio Zarqa (Formação Dawqara) questionou, também, qual teria sido o primeiro hominínio a deixar o continente africano. Como mencionado anteriormente, assumia-se, até então, que esse hominínio teria sido o Homo erectus. Entretanto, essa espécie só surgiu na África a partir de 2,0 milhões de anos. Nossas pesquisas mostraram, portanto, que essa espécie não pode ter sido a primeira a deixar a África. Em outras palavras, o primeiro hominínio a ter deixado a África teria sido o Homo habilis (com datações de até 2,8 milhões de anos no continente africano) e não o erectus. Isso explicaria porque os cinco crânios de Dmanisi apresentam grande variabilidade, sendo alguns similares ao habilis, outros ao erectus. Nossa proposta é que o Homo habilis teria deixado a África por volta de 2,5 milhões de anos, tendo chegado ao Cáucaso por volta de 1,8 milhões de anos, onde teria dado origem ao H.erectus que dali se expandiu por toda a Eurásia, tendo inclusive, retornado ao continente africano.
Diferentemente das descobertas chinesas, os vestígios arqueológicos por nós encontrados no Vale do Zarqa foram datados por três técnicas distintas de datação: paleomagnetismo, Argônio/Argônio e Urânio/Chumbo, sendo totalmente convergentes. Alguns colegas têm questionado, entretanto, que as ferramentas por nós encontradas na Jordânia seriam ecofatos e não artefatos. Ou seja, que elas teriam sido fabricadas por processos naturais (pedras batendo-se de forma aleatória), tendo em vista que foram encontradas em ambientes deposicionais fluviais altamente dinâmicos (cascalheiras). Urge, portanto, retornar à Jordânia para procurar por artefatos antigos em ambientes mais calmos, em termos de deposição sedimentar, para ter certeza que esses artefatos de pedra lascada foram de fato fabricados por nossos ancestrais.
Uma rápida inspeção efetuada por dois dos pesquisadores do projeto Zarqa no vale do Jordão, em 2015, indicaram, ainda que provisoriamente, a possível existência ali de deposições de sedimentos acumulados em praias e beiras de lagos. Se artefatos forem ali encontrados e datados da transição Plioceno/Pleistoceno[5], sua origem antrópica não poderá mais ser questionada e nossas descobertas no Zarqa serão validadas.
Antes de se proceder à elaboração de um projeto de pesquisa formal propriamente dito e buscar financiamento para o mesmo, algumas viagens preliminares terão que ser realizadas ao longo do Vale do Jordão, de preferência 50 km a montante e a jusante da foz do Rio Zarqa, mapeando-se formações com deposição pouco dinâmicas para só então proceder-se a um levantamento arqueológico propriamente dito. Aqui cabe ressaltar que essas viagens preliminares servirão também a dois outros propósitos: firmar parcerias com instituições jordanianas e obter do Departamento de Antiguidades daquele país as permissões necessárias para a realização, ali, de levantamentos arqueológicos. Nossa intenção é que isso ocorra ainda este ano ou no máximo no início de 2021.
[1] Linhagem evolutiva a que pertencemos juntamente com todos os nossos ancestrais bípedes. Os primeiros bípedes surgiram por volta de 7 milhões de anos na África.
[2] A Paleoantropologia é a disciplina que estuda a evolução humana.
[3] O polo magnético da Terra nem sempre coincidiu com o polo norte, mas oscilou entre ele e o polo sul. No primeiro caso chamamos o período de normal, no segundo caso, de inverso. Trabalhos efetuados por vários especialistas nas últimas cinco décadas foram capazes de datar quando os períodos de normalidade e de inversão magnética ocorreram.
[4] A indústria de pedra lascada mais antiga conhecida é assim chamada por ter sido encontrada e descrita pela primeira vez em Olduvai, na Tanzânia. Tratam-se de lascas naturalmente afiadas que são retiradas de um bloco, o núcleo, por pancadas controladas desferidas por uma outra pedra mais resistente. Isso é chamado de lascamento por percussão direta.
[5] Ou seja, por volta de 2.5 milhões de anos.